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Las lanzas o La rendición de Breda

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A formação do preço no leilão ou olho no lance

Gustavo Martins de Almeida

Gustavo Martins de Almeida

17/06/2024

O mercado de arte tem suas particularidades, dentre elas a venda por leilões e a efetivação dos lances que determinam o preço da obra: como é expressa a vontade de quem quer aumentar o preço de uma obra posta à venda, em leilão extrajudicial, visando à sua aquisição, e descartar o valor até então prevalente, se não por forma verbal?

Geralmente, para a efetivação de lances formadores de preço em leilão de obras de arte são usados gestos. Não consegui localizar na literatura jurídica estudos sobre a manifestação de vontade expressada corporalmente; um aceno corresponde a um aumento da oferta de preço para a obra posta à venda, sobrepondo-se a anterior, até que o leiloeiro bata o martelo e declare a vencedora.

Aos elementos essenciais do negócio jurídico – objeto, forma lícita, vontade das partes – o preço é de vital importância no contrato. Este artigo pretende analisar brevemente a formação do preço e manifestação de vontade por gestos no leilão presencial de obras de arte.

Leilão de bens

Segundo HUMBERTO THEODORO JUNIOR, “Na concepção jurídica, hasta pública1 (que o NCPC prefere denominar leilão judicial) é a alienação de bens em pregão (isto é, em oferta pública) promovida pelo Poder Público.”2, “o leiloeiro vai sempre subindo o preço do bem até haver apenas um interessado”3.

A nomenclatura varia no mundo. Asta em italiano, em espanhol subasta (venda sob asta), em inglês o termo usado é auction, que vem do latim auctionem, auctio, augere, aumentar (o preço). Já em francês a palavra equivalente a leilão é vente aux enchéres (venda por ofertas), e em alemão Versteigerung.

Hasta deriva de haste, lança, que era cravada no chão na antiguidade para significar a posse dos bens e ânimo de sua alienação. A lança é símbolo histórico de poder, como a que mata o dragão de São Jorge, ensina o dicionário Larousse de Símbolos.

Essa simbologia, presente em toda a evolução do procedimento de venda pública de obras de arte, remanesce nos tempos de hoje.

Muito embora seja crescente o uso do prático leilão eletrônico, por suas diversas modalidades, o leilão presencial, principalmente na área de obras de arte, ostenta um glamour de misto entre tradição e poder. O curioso é que o aspecto essencial da formação do preço e manifestação da vontade nesse sentido se dá por meio de gestos e sinais por parte dos ofertantes, poucas vezes por voz.

Antes de serem incluídos em leilão os bens sofrem prévio exame, por vezes expertise mais profunda e, aceitos, são incluídos e descritos em catálogo. Precedido pela publicação de edital, na data designada é aberto o leilão, e o leiloeiro anuncia sucessivamente cada bem a ser vendido, chamado genericamente de lote, seguindo-se as ofertas respectivas.

Lances de leilão

Informado verbalmente pelo leiloeiro o preço inicial de cada lote, sucedem as propostas de compra, geralmente gestuais. Os assistentes vão sinalizando os seus lances, ou, por assim dizer, arremessando suas lanças. Como observa RALPH LERNER:

“Um lance constitui uma oferta de um potencial comprador para pagar um preço específico pela propriedade que está sendo leiloada. Dito em termos contratuais tradicionais, o bem à venda é apresentado pelo leiloeiro como um convite para fazer uma oferta; os licitantes fazem ofertas pelo bem, com lances mais altos cancelando os mais baixos à medida que o leilão avança. Um contrato é formado quando uma oferta na forma de lance mais alto é aceita pelo leiloeiro. As licitações são geralmente feitas oralmente pelos participantes da venda, mas uma ‘raquete’ levantada, por exemplo, como meio de comunicação visual combinada com o leiloeiro, é uma forma comum de transmitir uma licitação. Ocasionalmente, um sinal de lance mais elaborado ou secreto – como um piscar de olhos, um movimento de dedo ou um tapinha no queixo – é previamente combinado com o leiloeiro.4

Direito comparado

Na França o procedimento segue a mesma linha, como diz FRANÇOIS DURET ROBERT:

“Teoricamente, o leilão deve ser oral, a parte interessada declarando sua oferta em voz alta. Mas, na realidade, os frequentadores costumam usar sinais, e a jurisprudência admite a validade dessa prática. ‘O leilão por sinal é costume nas salas de vendas; é lícito desde que não seja oculto ou fictício e que seja levado ao conhecimento do público; e para fazer isso, o leiloeiro tem o hábito de, antes de bater o martelo, dizer qual lado vem a oferta’.5

Presenciei, em casa de leilões, o aceno de uma pessoa para alguém que entrava no recinto do pregão. O leiloeiro registrou o movimento como lance, mas logo interrompeu o procedimento, e indagou se era mesmo um lance ou simples cumprimento, tendo o espectador negado qualquer oferta. Advertiu o espectador para evitar gestos que dessem margem à interpretação de oferta, cancelou o valor anunciado e prosseguiu com o leilão.

O direito português já se ocupou dessa hipótese como informa DAVID AZULAY:

“Abordando a questão, Hermann Isay menciona como exemplo explicativo o caso de um leilão de vinhos, em que, segundo o costume local, um simples levantar da mão representava um lance majorando o anterior em 100 marcos. Um forasteiro, distraidamente, saúda um conhecido levantando a mão. No entanto, o pregoeiro interpreta o ato como uma oferta e adjudica-lhe o bem em leilão. Não há dúvidas, pois, de que inexistiu, na hipótese, qualquer consciência na declaração emitida pelo forasteiro. Não havia, no caso, qualquer vontade em se oferecer um lance maior do que o anterior. Assim é que, de acordo com o Código Civil português, esta declaração não produz qualquer efeito.”67

A expressão corporal tem efeitos jurídicos significativos nesse tipo de procedimento de compra e venda. No contrato de casamento a manifestação é verbal; nos contratos em geral por meio da assinatura, e-mail ou clique, e pelo silêncio, menos frequentemente.

Mas no direito brasileiro não conheço contrato no qual a vontade se manifesta por gestos, independente da expressão verbal. Mesmo no caso de surdos mudos o Código Civil alude a expressão de sua vontade por leitura ou assinatura (arts. 1.866 e 1.873). Poderia ser equiparada a aceitação e cumprimento, imediato, de mandato verbal por meio da execução de tarefa atribuída ao mandatário, como lembra CARLOS ROBERTO BARBOSA MOREIRA, (arts. 655 e 656 do Código Civil brasileiro).

O canto do leiloeiro. Principalmente em obras de arte, o leiloeiro narra e gaba as virtudes do lote, em andamento entre o vivace e o alegricissimo, visando a estimular a superação dos lanves. Várias vezes repete o preço do lote, puxando ofertas superiores e considerando, ora as qualidades do bem, ora a inferioridade do preço até então atingido.

Lançar em inglês é “to bid”, daí o neologismo “bidar”, utilizado quando brasileiros anunciam que vão lançar em leilão de obras de arte ou de títulos mobiliários. Com olhos de lince o leiloeiro escaneia a plateia atentamente, pressentindo de onde podem vir os lances e estimulando a sua efetivação. Um dedo indicador levantado pode equivaler a um aumento de 100.000 unidades monetárias.

Não raro leilões milionários são concluídos em poucos minutos, atingindo os preços alturas recordes. Papel de destaque têm as ofertas via telefone, igualmente, muitas vezes, transmitidas por gestos dos representantes presentes às salas de leilões.

Evoluindo as ofertas da assistência, chega um momento de estagnação na qual o leiloeiro (auctioneer em inglês, ou comissaire priseur em francês) alerta para o “fair warning!”. É o gentil aviso de que vai vender por falta de maior oferta; equivale ao “dou-lhe, dou-lhe duas”, no Brasil.

Não havendo mais ofertas é batido o martelo, símbolo dos leiloeiros, e pronunciada a palavra vendido, ou adjugé, em francês, está encerrado o leilão e seguem-se as providencias finais, como pagamento do preço e, se possível, a retirada imediata do bem.

Normalmente o preço de venda na sessão, o hammer price (preço do martelo), nos leilões internacionais, é divulgado com o acréscimo do valor da comissão (buyer’s premium) da casa de leilões, na base de 5% a 20% sobre o preço final. Curioso é que. no mesmo recinto, estão presentes vários licitantes, sem que se saiba quem ao final arrematará o lote, e que um dos símbolos da conclusão da venda é sonoro, a batida do martelo. Juridicamente poderia se denominar o procedimento de “pacto dinâmico de melhor comprador” de um lote.

Mercado aquecido

O crescente aumento de volume de vendas e preços de obras de arte no mundo inteiro retrata o enorme interesse recente por esse setor, que conjuga patrimônio e satisfação pessoal, sendo que as transmissões on line facilitam o acesso aos seletos e efervescentes auditórios onde ocorrem transferências de propriedades. Por exemplo, dentre vários, https://www.youtube.com/watch?v=j9kh3rkUbfA.

No Brasil o mercado cresce igualmente, assim como a qualidade de artistas nacionais que são cotados no mercado internacional. Aqui, a profissão de leiloeiro é regulada pelo Decreto 21.981, de 19.10.1932, destacando para este artigo a existência dos livros de diário e registros de leilões, a serem legalizados nas Juntas Comerciais, e a possibilidade de leilões serem feitos por não leiloeiros, apenas para fins beneficentes (arts. 31, 32 e 45).

O registro dos leiloeiros é de suma importância para acompanhar as cotações de obras de artistas. Há os leiloeiros que encerraram suas atividades, e seus documentos são de grande valia histórica, pois retratam a transição dos bens ao longo do tempo, colaborando para a provenance ou tracking record de obras de arte. No momento, por conta de pesquisa, procuro o acervo do famoso leiloeiro Afonso Nunes, que encerrou suas intensas atividades, e aparentemente não disponibilizou registros de suas operações.

Uma palavra sobre colecionismo de obras de arte. Como ensina o mestre MARCÍLIO FRANCA, “as coisas que compõem uma coleção não se encontram ligadas fisicamente: é a vontade do colecionador que as conecta”8. As coleções privadas se dissolvem e se recompõem posteriormente; pode-se dizer que, “além disso, as coleções privadas se destinam a ser gradualmente absorvidas pelas instituições públicas”9.

Segundo ADELAIDE DUARTE o colecionador é um “maníaco inofensivo”10, e na descrição de MAURICE RHEIMS “ele tem o talento do caçador, a alma do policial, a objetividade do historiador, a prudência do mercado de cavalos.”11.

Concluindo essa breve análise sobre uma das várias facetas dos leilões, além de algumas informações periféricas sobre esse relevante e rico mercado, destaco a curiosa forma de construção do preço nas vendas de obras de arte, na modalidade presencial, através de gestos sucessivos de possíveis adquirentes dos lotes ofertados, concorrendo no mesmo local.

Justamente essa atipicidade gera um glamour, pois simples gestos podem representar batalhas em torno de bem artístico, e a satisfação do colecionador ao incorporar a seu acervo, material e afetivo, o objeto desejado.

LEIA TAMBÉM


NOTAS

1 Código Civil, arts. 447, 497 e 1.237

2 Curso de Direito Processual Civil, Gen|Forense, 49ª ed., p. 564

3 LUIS URBANO AFONSO e ALEXANDRA FERNANDES, Mercados de Arte, Edições Sílabo, Lisboa, 2019, p. 350

4 A bid constitutes an offer by a prospective buyer to pay a specified price for the property being auctioned. Put in traditional contract terms, property for sale is presented by the auctioneer as an invitation make an offer; bidders make offers for the property, with higher bids canceling lower ones as the bidding progresses. A contract is formed when an offer in the form of the highest bid is accepted by the auctioneer. Bids are usually made orally by those attending the sale, but a raised paddle, for example, as a means of visual communication arranged with the auctioneer, is a common way to convey a bid. On occasion, a more elaborate or secretive bidding signal-such as the wink of an eye, the flick of a finger, or a pat on the chin-is worked out with the auctioneer in advance. “ (Art Law, PLI NY,4ª ed., p. 305

5 Théoriquement, l’enchère devrait être orale, l’intéressé énonçant son offre à haute voix. Mais, en réalité, les habitués font souvent usage de signes, ct la jurisprudence a admis la validité de cette manière de faire: <<< L’enchère par signe est d’usage dans les salles de vente; elle est licite à condition qu’elle ne soit pas occulte ou fictive et qu’elle soit portée à la connaissance du public; et pour ce faire, le commissaire-priseur a l’habitude, avant d’abattre son marteau, de dire de quel côté vient l’enchère. Droit du Marché de L’ art, Dalloz, 2013, p. 159/150

6 https://www.jusbrasil.com.br/artigos/elementos-do-contrato-vontade-ausencia-de-vontade-e-vicios-da-vontade/557994572

7 Código Civil de Portugal Artigo 246.º

(Falta de consciência da declaração e coacção física)

“A declaração não produz qualquer efeito, se o declarante não tiver a consciência de fazer uma declaração negocial ou for coagido pela força física a emiti-la; mas, se a falta de consciência da declaração foi devida a culpa, fica o declarante obrigado a indemnizar o declaratário.”

8 Coleções de Arte no Direito Brasileiro e Comparado, Ed. Quartier Latin, São Paulo, 2023, p. 63

9 PIERRE SALMON, De la collection au musée. Bruxelas, Éditions de la Baconniére, 1958, p. 98. ‘Les collections privées sont du reste destinées à être progressivement absorbées par les institutions publiques. ‘

10 Da Coleção ao Museu, Ed. Caleidoscópio, Portugal 2016, p. 30

11 Les Collectioneurs. De la curiosité, de la beauté, du goût, de la mode,et de la spéculation, Paris, Edition Ramsay, 202., p. 19 ‘ il a le flair du chasseur, l’âme du policier, l’objectivité de l’historien, la prudence du marché de chevaux.’.

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