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A delinquência ao volante

José Osmir Fiorelli

José Osmir Fiorelli

30/11/2023

O volante do (principalmente) automóvel parece convidar significativa parcela da população à prática de variados tipos de delitos, desde a “fila dupla para pegar a criança na escola” até o homicídio, passando pela direção perigosa, pela condução em estado de embriaguez e outros.

Os delitos associados à condução de veículos possuem colorido especial e merecem tratamento à parte, porque:

ocorrem de maneira generalizada

Impressiona a quantidade de infrações cometidas, produzidas por pessoas que, fora do volante, apresentam comportamentos que pouco ou nada têm a ver com os que manifesta quando dirigem. O volante torna-se ícone da transgressão socialmente tolerada; 

a infinidade de infrações torna literalmente impossível detectá-las e puni-las. 

O condutor do veículo perde a expectativa de ser identificado e, mais ainda, de ser punido. Ele sabe que o número de agentes encarregados de detectar e punir filas duplas nas ruas é insignificante; que o excesso de velocidade não pode ser medido sem radar; que não existem policiais do trânsito em quantidade suficiente para identificar lâmpadas queimadas e itens de segurança em falta ou vencidos nos veículos etc.;

⮚ o condutor de veículo encontra uma identidade comportamental com inúmeras outras pessoas. 

Modelos que ele reconhece também praticam delitos. Funciona um princípio inconsciente de isonomia…;

é impossível não observar o mau comportamento de autoridades. 

Elas são vistas dirigindo perigosamente, de maneira irresponsável, cometendo variadas infrações e, além disso, utilizando-se de seus poderes para proteger filhos, cônjuges e parentes quando estes cometem crimes no trânsito; isso faz com que a população em geral desenvolva a percepção para a existência da impunidade e ou do direito a ela;

existe indiscutível conivência de amigos e familiares em relação aos crimes praticados no trânsito. 

Mesmo quando há homicídio, a tendência é a ocultação e, sendo impossível, a busca de atenuantes; esta certeza também confere um suporte emocional que contribui para fortalecer a crença na impunidade; exemplo emblemático aconteceu na cidade de Sorocaba, em 2014, quando, segundo noticiou a mídia, um indivíduo, vindo de uma “balada”, bêbado, atropelou e matou cinco pessoas, além de ferir com gravidade várias outras; a promotoria, surpreendentemente, classificou o crime como culposo, à época, sob a alegação de que o cidadão teria dormido ao volante;

nas grandes cidades, as distâncias tornaram-se um desafio. 

O modelo urbano conduziu ao distanciamento entre lar, escola e trabalho, no espaço e no tempo, o que acentua a tendência à condução imprudente; além disso, a situação caótica do trânsito produz fenômenos relacionados com a perda de percepção de detalhes (relação figura e fundo, entre outros) que facilitam a redução da atenção e promovem um dirigir estereotipado, quase que mecânico, que não funciona em situações inesperadas;

o reduzido espírito de cidadania e a “coisificação” do outro tornam o pedestre um atrapalho na via pública. 

Pedestres (e outros condutores) não passam de concorrentes em busca de um espaço restrito; o veículo torna-se uma bolha emocional onde o indivíduo foge do purgatório que o circunda; qualquer estímulo proveniente desse ambiente é percebido como invasão e provocação a ser rechaçada;

⮚ As campanhas pela direção responsável e respeito às leis de trânsito ainda esbarram e se confundem com as inúmeras omissões das mesmas autoridades que as propõem.

Um destaque especial merece a publicidade que cerca o automóvel, estimuladora desse estado de coisas; ela baseia-se no binômio velocidade e sedução. Condução audaciosa, conquista sexual e sucesso compõem uma receita de bolo repetida à exaustão. A imagem de segurança e conforto é reservada para uma classe seleta e requintada de clientes.

Em um país de ruas congestionadas e estradas esburacadas, o mínimo a se pensar a respeito do estímulo às arrancadas, às ultrapassagens e ao excesso de velocidade (responsável pela criação de uma figura em torno dessa imagem tão arriscada quanto nociva) seria que a propaganda roda na contramão do possível e estaciona em lugar proibido para a cidadania.

A produção cinematográfica de Hollywood, que tem o dom de transitar entre a máxima criatividade e a impensável estupidez, acrescenta lenha na fogueira da construção dessa percepção distorcida do conceito de dirigir, por meio da indefectível perseguição impossível em alta velocidade através de ruas repletas de pessoas em filmes de ação.

Em síntese, uma complexa estrutura sociocultural proporciona ingredientes para o caldo de crenças relacionadas com a condução imprudente e irresponsável. Esse doutorado de delinquência no trânsito se completa pela força do condicionamento. O indivíduo adquire os hábitos de dirigir perigosamente, em alta velocidade, estacionar em qualquer local etc. O volante aumenta o peso do pé e reduz o respeito ao próximo. A volta para a normalidade civilizada não se consegue com uma simples marcha-a-ré nos comportamentos.

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