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Registro de Imóveis eletrônico – O Nó Górdio da Regulamentação
Sérgio Jacomino
23/08/2018
Neste pequeno post sigo com a proposta de submeter aos registradores e demais interessados questões que me parecem relevantes relativamente aos meios eletrônicos e os serviços registrais.
Vamos tocar no fenômeno que venho chamando, à falta de melhor expressão, de tropismo digital. Os novos meios de comunicação e informação não só transportam e carregam, mas traduzem e transformam o emissor, o destinatário e a mensagem, nas lições de Marshall McLuhan. O “meio é a mensagem”, deliciosa boutade do professor de Literatura de Toronto.
Esse fenômeno é nítido em todos os setores da sociedade. Como deixar de apreciá-lo com a devida atenção em nosso próprio contexto? (SJ).
Escrituras de autoria ou instrumentos prêt-à-porter?
Sempre me recordo do corpo pragmático da Summa Totivs Artis Notariæ Rolandina, forjada nos altos fornos da história, e das notáveis escrituras de autoria acompanhadas de uma exuberante esfragística e ornadas pela semiologia singular dos notários medievais.
Como deixar de se lembrar dos autos processuais lusitanos, com sua praxe secular sedimentada em termos, juntadas, vistos, conclusões, cotas e margeamento? Autos de autoria, rios de narrativas.
Mas os autos de autoria cedem passo aos processos digitais.
Tropismo digital.
Os contratos de adesão, os registros-formulários, os instrumentos estereotipados, baseados em padrões pré-estabelecidos, começam a se espraiar em todas as direções.
[Joshua Davis – tropism]
Especialmente agora, com o impulso de novas tecnologias de informação e comunicação, esse processo se acelera e se constroem infovias especialmente conformadas aos veículos digitais.
Não só o que entra no sistema, mas o que sai começa a sofrer uma espécie de tropismo digital.
A essência são apenas dados
Lembremo-nos, para ficarmos somente nos exemplos da área registral imobiliária, do Dec.-Lei 58/1937 (inc. III do art. 1º c.c. § 2º do art. 18), das instituições e incorporações imobiliárias (§ 3º do art. 67 da Lei 4.591/1964), dos contratos-padrão da Lei 6.766/1979 (inc. VI do art. 18 c.c. art. 27). Em todos esses casos se previu o uso de contratos-padrão, arquivados no RI para posterior exame, conferência e consulta de quaisquer interessados.
No âmbito do crédito imobiliário, os instrumentos sujeitos a registro deveriam, desde a década de 60, consignar “exclusivamente as cláusulas, termos ou condições variáveis ou específicas” (art. 61 da Lei 4.380/1964), vale dizer: somente as variáveis acedem ao registro, já que as “cláusulas legais, regulamentares, regimentais ou, ainda, quaisquer normas administrativas ou técnicas e, portanto, comuns a todos os mutuários não figurarão expressamente nas respectivas escrituras” que serão levadas a registro (§ 1º do dito art. 61).
Ao abolir o reconhecimento de firmas desses instrumentos, deixando a conferência e atribuição de autoria ao agente do crédito imobiliário, tal fato abriu a porta do Registro Imobiliário para a recepção de tais contratos por meios eletrônicos sem qualquer outro requisito de notarização (item 113 do Cap. XX das NSCGJSP).
Registro Mercantil e o mercado imobiliário
O Diretor do Departamento de Registro Empresarial e Integração – DREI, colocou em consulta pública a minuta de regra que disporá sobre a padronização nacional na formulação de exigências, estabelecendo, em listas fechadas, o rol exaustivo de exigências. Trata-se da Consulta Pública 5/2018 – DREI. [mirror]
Diz a minuta que os Registros Públicos Mercantis “devem ser exercidos, em todo território nacional, de maneira uniforme, harmônica e interdependente”.
O que se busca aqui? Harmonia, uniformidade, padrões, diminuição de custos em decorrência de superação de assimetrias. Embora as Juntas Comerciais funcionem de modo independente em cada estado da federação, pareceu-lhes imperioso evitar a ocorrência de assimetrias entre as unidades estaduais no tratamento da mesma matéria. Busca-se a uniformidade e equilíbrio entre os órgãos que compõem o corpo registral mercantil, sua interdependência e organicidade.
Exigências – notas devolutivas.
Um dos elementos que têm sido identificados como barreiras para o desenvolvimento do mercado imobiliário é “o excesso de burocracia e o tempo na obtenção da documentação necessária para lançamento, vendas, contratação de financiamento, repasse e entrega dos empreendimentos” imobiliários. A advertência é da CBIC – Câmara Brasileira da Industria da Construção. Eixos críticos, nesse contexto, “são os procedimentos cartorários, que não seguem um padrão, sendo muito específicos em cada localidade, o que dificulta uma atuação nacional”. [acesso aqui. Mirror].
É preciso compreender que a liberdade e autonomia do registrador, garantidas pela lei, devem ser exercidas em sua própria ordem e de modo prudente e limitado.
O registrador não pode afrontar, escudado tão-somente em sua autonomia e independência jurídica, o padrão que se forma a partir de sucessivas e iterativas decisões administrativas ou entendimentos consagrados no âmbito da própria corporação.
Notas devolutivas genéricas, formuladas sem o rigor necessário, sem a fundamentação legal e/ou jurídico, inocula no sistema o germe da desuniformidade, gerando custos e perda de tempo, redundando em ineficiência e aborrecimentos.
O cão e sua cauda longa
Vamos lá, o que as notas devolutivas e a cauda do cão têm a ver Registro de Imóveis? Tudo. Vejamos.
As notas devolutivas dos cartórios buscam expressão e respostas decalcadas de um jargão ultra-formalista, autorreferente, rebarbativo, não-interdependente, incoeso, verborrágico, redundante. Como a verba tabeliônica e, em regra, também o cacoete de linguagem da própria praxe cartorária.
Ao defendermos padrões já superados de articulação da linguagem dos registros, estamos como o pobre cão: correndo atrás da própria cauda.
Monstro de Horácio
Calma! Não sou contra os cartórios. Convido-os a um pequeno exercício: escolham uma matrícula robusta e contem exatamente quantas expressões são meros pivôs para sustentação do discurso narrativo dos atos de registro. Agora, contem quantas variáveis e quantas constantes há numa peça notarial ou registral. Teremos aí um grau da resistência simbólica à virtualização de dados.
Esse fenômeno ocorre na entrada (input), mas também na saída (output). Quem não se espanta com as cópias reprográficas de matrículas? Monstro de Horácio.
Central Nacional de Registro – CNR
Não, não é o que parece ser. A CNR é uma iniciativa do mesmo Diretor do Departamento de Registro Empresarial e Integração – DREI, que pôs em consulta pública um termos de referência “que almeja a contratação de solução tecnológica para integrar informações, serviços e processos relativos à abertura e legalização de empresas e pessoas jurídicas, provisoriamente denominada Central Nacional de Registro – CNR”. [Acesso aqui. Mirror].
As transformações tecnológicas antevistas pelo Registro do Comércio são um índice claro do impacto das novas tecnologias da informação e comunicação nas atividades registrais. Esse movimento é incontível. Não há como postergar uma resposta efetiva a demandas sociais e econômicas.
A analogia com o SREI-ONR é perfeitamente adequada e cabível. Do mesmo modo que o Projeto CNJ/LSITec do Registro de Imóveis eletrônico, o CNR do Registro do Comércio vai respeitar a singularidade e a identidade de cada Junta Comercial do país, integrando “informações, serviços e processos relativos à abertura e legalização de empresas e pessoas jurídicas”. O SAEC (Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado) previsto na documentação técnica do SREI responde à mesma lógica, com a diferença de que veio muito antes que o projeto CNR e pode mesmo ser ultrapassado por este.
Os meios digitais são detergentes
Os meios eletrônicos tornam tudo liso, rápido, aparam as rugosidades e asperezas do discurso narrativo. Os conteúdos livres de coimas simbólicas transitam pelas redes digitais em tempo real, aqui e agora. Isso tem a ver com os padrões de desenvolvimento da sociedade interconectada. É possível a comunicação entre máquinas, com redução de tempo e de custos. Busca-se a conciliação entre a singularidade da delegação pessoal e harmonia intra-sistemática: uniformidade e interdependência.
Vejam muito bem o fenômeno de transformação dos conteúdos do Registro Mercantil determinada pelas exigências decalcadas de padrões eletrônicos. Busca-se uniformidade e interdependência. Como conseguiremos aqui esse padrão no Registro de Imóveis?
O ato normativo do DREI visa a atacar a ocorrência de “exigências genéricas formuladas sem rigoroso enquadramento, acolhidas sob categorias imprecisas, e.g. ‘outras’”. Elas “vulneram a impessoalidade, uniformidade e harmonia do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins”.
Uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa
É evidente que não são comparáveis os padrões de atuação do agente administrativo que cumpre, com limitada discricionariedade, os requisitos impostos pela administração e o registrador imobiliário, que goza de independência jurídica na qualificação registral (art. 28 c.c. art. 3º da Lei 8.935/1994).
Essa distinção, embora fundamental e deva ser levada em consideração em qualquer análise que se pretenda empreender nesta matéria, ainda assim não empana as conclusões a que busco atingir com o apoio do meu paciente leitor.
Quero simplesmente apontar um grande movimento de transformações que ocorrem diante de nós, em áreas conexas de registros públicos, pelo advento de novas tecnologias de informação e comunicação.
“Sei que nada será como está, amanhã ou depois de amanhã”.
“Algo acontece agora. Você está preparado? – eis o mote de minha campanha. Reitero ano e meio após a mesma pergunta. Renovo o desafio.
Nós estamos vivendo um tempo de grandes transformações. “Nada será como está, amanhã ou depois de amanhã”, na linda canção do Milton Nascimento.
Leiam a proposta da Consulta Pública 5/2018 – DREI e tirem suas próprias conclusões.
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