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Jogar para Viver: Metáfora Futebolística para uma Justiça Multiportas Enraizada no Mundo da Vida

Carlos Eduardo de Vasconcelos
23/06/2025
RESUMO
Este artigo, para fins pedagógicos, propõe uma metáfora que relaciona o universo do futebol com o Sistema de Justiça Multiportas no Brasil, com base nas ideias desenvolvidas no capítulo 10 da obra Mediação de Conflitos e Práticas Restaurativas. O trabalho busca destacar a centralidade do mundo da vida como fundamento para a dogmática e a hermenêutica jurídica, questionando a tradição de juridificação excessiva das relações sociais. A metáfora futebolística permite visualizar as três camadas estruturantes do sistema: as regras de conduta, as estratégias e práticas dos jogadores e a instância de regras sobre regras, representada pelos fundamentos constitucionais.
Palavras-chave: Justiça Multiportas. Mundo da Vida. Dogmática Jurídica. Hermenêutica. Futebol.
1 Introdução
O avanço dos métodos consensuais de resolução de disputas no Brasil demanda uma mudança paradigmática no modo de compreender o próprio sistema jurídico. O modelo Multiportas convida os operadores do direito a transitar de uma lógica de monopólio jurisdicional para uma lógica de pluralidade procedimental. Nesse cenário, a metáfora futebolística surge como facilitação pedagógica e epistemológica, capaz de ilustrar, com leveza e profundidade, as estruturas e tensões do sistema.
2 O Mundo da Vida como Ponto de Partida
No futebol, o que dá sentido ao jogo não é o regulamento em si, mas a experiência vivida pelos jogadores, treinadores e torcedores. O entusiasmo coletivo nasce da credibilidade e criatividade em campo, das estratégias cuidadosamente elaboradas, das motivações individuais e coletivas que movem os protagonistas. De forma análoga, no sistema jurídico, o mundo da vida é o campo onde os conflitos nascem, se desenvolvem e clamam por soluções.
Segundo Habermas (1987), o mundo da vida é o espaço da comunicação cotidiana, onde se constroem significados compartilhados. No contexto da justiça Multiportas, é nele que se definem as necessidades reais das partes e a viabilidade de caminhos como a negociação, a mediação, a conciliação, a facilitação e/ou a arbitragem.
3 Dogmática e Hermenêutica: Regras e Interpretação a Serviço da Vida
As regras de conduta, equivalentes ao regulamento da partida, têm papel estruturante. Elas garantem previsibilidade, segurança e estabilidade ao sistema. Contudo, como lembra Streck (2014), a dogmática jurídica não pode ser vista como um fim em si mesma, mas como uma construção histórica e interpretativa que deve dialogar com a realidade.
A hermenêutica jurídica, por sua vez, funciona como o olhar do técnico e do comentarista: um esforço constante de interpretação situada, capaz de ajustar a leitura das normas às contingências e complexidades da vida social.
4 Regras Sobre Regras: Constituição e Princípios como Instância de Controle Ético
Assim como a justiça esportiva atua como instância de controle ético das regras no campo do futebol, a Constituição Federal e os princípios fundamentais do direito brasileiro cumprem a função de estabelecer as “regras sobre as regras”. Trata-se de uma camada metanormativa que orienta a produção, a interpretação e a aplicação do direito. A Constituição, neste modelo, é o pacto ético-político que delimita os contornos da atuação estatal e dos mecanismos de resolução de disputas, garantindo a dignidade da pessoa humana, o acesso à justiça e a proporcionalidade das decisões (SARLET, 2002).
5 Considerações Finais
A metáfora futebolística permite visualizar que a justiça não começa nem termina nas regras. O jogo jurídico só ganha sentido quando conectado às dinâmicas do mundo da vida, hoje facilitadas e impulsionadas pela inteligência artificial. No contexto do sistema Multiportas, isso significa colocar os sujeitos, suas histórias e suas necessidades no centro do processo, utilizando a dogmática e a hermenêutica como positivismo ético estabilizador — e não como obstáculos.
Assim como a seleção brasileira conquista o coração dos torcedores por jogar com alma, a justiça só se realizará plenamente quando for capaz de escutar e responder às complexidades humanas que a sustentam.
REFERÊNCIAS
HABERMAS, Jürgen. Teoria da Ação Comunicativa. Vol. 2: Sobre a Crítica da Razão Funcionalista. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.
VASCONCELOS, Carlos Eduardo. Mediação de Conflitos e Práticas Restaurativas. 8. ed. São Paulo: Método, 2023.

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