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V. Exa. quer dizer que estou mentindo?
Hugo de Brito Machado Segundo
09/08/2022
Outro dia, assistia a uma sessão de julgamento em um tribunal, aguardando a apreciação de recurso interposto por empresa cujos interesses, como advogado, eu patrocinava. Geralmente assisto e presto atenção às sustentações orais dos colegas, e aos debates havidos entre os julgadores, nos processos que antecedem o meu. Oportunidade para aprendizado e diversão.
Em determinado momento, um advogado, depois de ouvir pacientemente o longo voto do relator, pediu para fazer um “esclarecimento de fato”, nos termos do artigo 7.º, X, da Lei 8.906/94. Diante deste pedido, o relator mostrou-se muito irritado — os julgamentos pelo zoom permitem ver mais de perto as feições e as alterações na fisionomia de quem deles participa — e objetou:
– Vossa Excelência quer dizer que eu estou mentindo?
O advogado, surpreso, mas sem perder a cordialidade, esclareceu.
– De forma nenhuma, Excelência. Eu JAMAIS faria isso. Mas há um aspecto de seu voto que traz um elemento inteiramente novo, se considerarmos o que foi afirmado na sentença, e a apelante entende necessário esclarecer esse ponto, se lhe for permitido.
Ainda bastante irritado, o julgador passou a palavra ao advogado, dizendo:
– Pois nos diga então qual é A SUA verdade.
Feito o esclarecimento pelo advogado, todos que assistiam a sessão viram ser inteiramente pertinente sua manifestação. Explicou ele que, em primeira instância, o juiz considerara a controvérsia como sendo “meramente de Direito.” Teve os fatos relevantes ao julgamento do processo, todos, como incontroversos, negando às partes o direito à instrução. Em seguida, por força de sua compreensão em torno das normas aplicáveis aos tais fatos incontroversos, julgou improcedente o pedido.
Em sua apelação, portanto, a parte autora partiu da premissa de que os fatos eram incontroversos, atacando a interpretação que o juiz deu às normas aplicáveis. Invocou em seu favor, inclusive, precedentes daquele mesmo Tribunal, e do mesmo relator, em torno da questão de direito. Mas o relator deixou de aplicar o próprio precedente, por afirmar que a controvérsia seria “de fato”, e que a autora não teria “feito o dever de casa” quanto à prova de suas alegações.
Daí o esclarecimento do colega, de que realmente a prova não fora feita, porque a questão fora tida como “de Direito” tanto pela parte adversa como pelo juízo singular, que havia impedido a produção de provas, que teve por desnecessária. Daí a surpresa, e o esclarecimento deste ponto para que, se o entendimento do Tribunal fosse outro, que anulasse a sentença, que não poderia ser confirmada por um fundamento contrário, oposto e incompatível com o nela utilizado. Se algum fato precisasse ser esclarecido, o processo deveria retornar à primeira instância para isso, até porque havia pedido da autora nesse sentido, rejeitado pelo juiz por suposta desnecessidade.
Estabeleceu-se então uma confusão, pois alguns membros da turma entenderam que a questão era mesmo apenas de direito, escapando com isso de anular a sentença, mas, quanto ao mérito, acompanharam o relator, sem fundamentação adicional, sendo que este negava provimento à apelação por considerar a questão como de fato.
Sobre esclarecimento
Isso, porém, nem importa aqui. Não interessa o mérito do processo do colega que muito lutou para trazer à discussão o que tinha ocorrido nos autos (que não era apenas “a sua” verdade), tampouco o seu desfecho. O que desejo trazer à reflexão da leitora, neste artigo, em face do episódio que o acaso me fez assistir, é a forma antipática a sustentação oral é vista, e, pior ainda, a feitura de eventuais esclarecimentos de fato. Lembra a ideia que a Santa Inquisição fazia do direito de defesa: uma heresia, pois pressupõe o direito de o acusado mentir, ou a incapacidade do julgador de descobrir a verdade sozinho.
É exatamente assim que os advogados parecem ser vistos, notadamente quando de sua participação nos julgamentos colegiados. Pessoas que só servem para atrapalhar e alongar a sessão, com informações que os julgadores já têm, ou não consideram necessárias. Não é pessoal, esclarece o julgador que afirma “até ter gente na família que é advogado”.
Não se exclui a possibilidade de algumas sustentações orais realmente não trazerem informações novas. Colegas que só repetem o que já consta dos autos, que se supõem lidos por todos. Ou que se alongam explicando conceitos que não são controvertidos. Talvez alguns façam isso mesmo. Mas o custo de não os ter, ou de se lhes negar antecipadamente o direito de falar, é muito maior.
Mas e se com isso as sessões demoram mais? Trata-se de algo que pode de fato ocorrer, mas é preciso lembrar de dois pontos. Primeiro, há outras formas de fazê-las mais céleres, como a produção de votos curtos, que não precisam ser lidos por minutos ou mesmo horas, às vezes a repetir o que já consta de outras peças dos autos e não é essencial para que se conheçam as razões do entendimento adotado pelo julgador. E, segundo, proferir julgamentos céleres não é o único objetivo do Poder Judiciário. É preciso que sejam corretos, à luz do direito que estão aplicar, e a atuação de profissionais com competência para apontar falhas e pedir sua correção é essencial a isso. Tal como em um hospital, em cujo âmbito de nada adianta realizar um número recorde de cirurgias, em curtíssimo tempo, ao custo de uma alta taxa de mortalidade.
Especificamente quanto ao esclarecimento de fato, não se deve considerar, a priori, que ele implica imputar ao julgador a prolação proposital de inverdades. Uma série de motivos podem levar uma Corte a não considerar um fato, ou a equivocar-se quanto a uma situação havida nos autos, o que é não apenas normal, mas razão de ser de tudo que decorre do devido processo legal. Não é preciso ter o magistrado por mentiroso para que se permitam às partes esclarecimentos destinados a contribuir com a correção do julgado. Do contrário, como dito, assume-se a postura da Santa Inquisição, vendo-se o exercício do direito de defesa como uma ofensa, apenas por pressupor que o julgador, como todo ser humano, também é falho.
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