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Tributário
TRIBUTÁRIO
Restos a Pagar
Kiyoshi Harada
14/11/2018
A execução orçamentária no Brasil tradicionalmente nunca obedeceu aos parâmetros legais e constitucionais.
Inúmeros princípios orçamentários previstos no art. 167 da CF, bem como os dispositivos pertinentes da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF, da Lei Complementar nº 101/2000 e da Lei nº 4.320/1964, que traça normas gerais de Direito Financeiro, nunca foram respeitados.
Se fossem aplicar o disposto no art. 85, inciso VI, da CF c.c. o art. 10 da Lei nº 1.079/1950, que dispõe sob crime de responsabilidade por atentado à lei orçamentária, seguramente, todos os governantes teriam sofrido o impeachment.
O descumprimento de normas da Lei Orçamentária Anual – LOA, em parte, decorre do irrealismo da proposta orçamentária anual aprovada pelo Congresso Nacional que não reflete a política governamental, não passando o orçamento anual de mera ficção jurídica para cumprir a formalidade constitucional.
De fato, do ponto de vista formal, o orçamento anual, que se articula com a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei do Plano Plurianual, assume a característica de um verdadeiro orçamento-programa, tanto é que alguns doutrinadores lhe conferem natureza impositiva, e não meramente autorizativa. Mas, materialmente, as verbas consignadas no orçamento anual não são direcionadas segundo as prioridades eleitas na execução de políticas públicas. Daí o hábito que já se tornou uma rotina de toda LOA conter a tradicional delegação legislativa para que o chefe do Executivo promova por Decreto a abertura de crédito adicional suplementar mediante anulação parcial da dotação em até 20% de cada subtítulo, utilização das verbas de contingenciamento e do superávit na arrecadação, entre outras fontes. No orçamento de 2018, a previsão de receita é de R$ 3.575.230.380.469,00, significando que o Executivo poderá alterar as dotações orçamentárias em até R$ 715.046.076.093,80. O que pior é que a faculdade contida na delegação legislativa vem sendo utilizada para abertura de crédito extraordinário a fim de custear despesas correntes, quando a Constituição o reserva apenas para as hipóteses de despesas imprevisíveis e urgentes para fazer face à eclosão de guerras externas, comoção intestina e calamidade pública (arts. 167, § 3º, da CF e 40, incisos I, II e III, da Lei nº 4.320/1964), apesar das decisões do STF declarando a inconstitucionalidade da abertura desses créditos extraordinários.[1] Existe ainda a chamada contabilidade criativa que faz que se transforme uma situação deficitária em um superávit, mediante aumento de receitas fictícias. Por exemplo, em 2016, foi inserida na proposta orçamentária de 2017 a estimativa de receita da CPMF que estava apenas no plano de sua eventual recriação e que não aconteceu. Na prática, isso correspondeu à elaboração de um orçamento negativo rompendo o princípio do equilíbrio orçamentário.
Há, ainda, a desmontagem parcial do orçamento que se dá por meio da Desvinculação de Receitas da União – DRU,[2] que vem sendo prorrogada periodicamente por sucessivas emendas constitucionais e desvincula do orçamento anual o equivalente a 30% de toda a arrecadação tributária da União.[3] No orçamento de 2018, aprovado pela Lei nº 13.527/2018, a previsão de arrecadação de tributos federais é de R$ 1.334.500.797,952. Logo, o Executivo pode retirar do orçamento anual a importância de 400.350.239.385,60 que o governo gasta à sua discrição, ficando de fora do efetivo controle e fiscalização, por ausência de elementos de despesas. A última prorrogação da DRU deu-se pela EC nº 93/2016, para vigorar até 31-12-2023, poupando pela primeira vez as contribuições sociais destinadas à Previdência Social, mas estendendo esse mecanismo demolidor do orçamento anual aos Estados e ao Distrito Federal.
Finalmente, outro mecanismo de desmontagem do orçamento anual, que deveria refletir a vontade da população no direcionamento das despesas, está no uso abusivo de Restos a Pagar, que outra coisa não é senão uma forma de postergação do pagamento de despesas do exercício para ser realizado no exercício subsequente. Os valores empenhados, liquidados ou não, e não pagos até o seu final do exercício financeiro são inscritos como Restos a Pagar, onerando o orçamento do exercício subsequente que já começa com uma situação deficitária.
Como bem leciona Doris de Miranda Coutinho:
“O uso do instrumento, por si só não é reprovado. A imprevisibilidade natural de execução orçamentária ao longo de um exercício financeiro delimitado justifica que algum gasto já empenhado seja realizado em momento posterior, e isso tem previsão legal. Não se vê, contudo, na realidade, esse tipo de moderação. Ao invés disso, observa-se o uso e abuso deste recurso, criando uma espécie de orçamento paralelo. Uma realidade alterada que poderia ser chamada de orçamento-de-volta-para-o-futuro.” [4]
Não é por outra razão, que o art. 41 da LRF, que dispunha sobre Restos a Pagar, foi inteiramente vetado pelo Executivo, que, a nosso ver, não agiu com acerto, como veremos.
Dispunha o art. 41 citado:
“Art. 41. Observados os limites globais de empenho e movimentação financeira, serão inscritas em Restos a Pagar:
I – as despesas legalmente empenhadas e liquidadas, mas não pagas no exercício;
II – as despesas empenhadas e não liquidadas que correspondam a compromissos efetivamente assumidos em virtude de:
- normas legais e contratos administrativos;
- convênio, ajuste, acordo ou congênere, com outro ente da Federação, já assinado, publicado e em andamento.
§1º Considera-se em andamento o convênio, ajuste, acordo ou congênere cujo objeto esteja sendo alcançado no todo ou em parte.
§2º Após deduzido de suas disponibilidades de caixa, o montante das inscrições realizadas na forma dos incisos I e II do caput, o Poder ou órgão referidos no art. 20 poderá inscrever as demais despesas empenhadas, até o limite do saldo remanescente.
§3º Os empenhos não liquidados e não inscritos serão cancelados.”
Razões do veto: “A exemplo de vários outros limites e restrições contidos no projeto de lei complementar, o sentido original da introdução de uma regra para Restos a Pagar era promover o equilíbrio entre as aspirações da sociedade e os recursos que esta coloca à disposição do governo, evitando déficits imoderados e reiterados. Nesse intuito, os Restos a Pagar deveriam ficar limitados às disponibilidades de caixa como forma de não transferir despesa de um exercício para outro sem a correspondente fonte de despesa. A redação final do dispositivo, no entanto, não manteve esse sentido original que se assentava na restrição básica de contrapartida entre a disponibilidade financeira e a autorização orçamentária. O dispositivo permite, primeiro, inscrever em Restos a Pagar várias despesas para apenas depois, condicionar a inscrição das demais à existência de recursos em caixa. Tal prática fere o princípio do equilíbrio fiscal, pois faz com que sejam assumidos compromissos sem a disponibilidade financeira necessária para saldá-los, cria transtornos para a execução do orçamento e, finalmente, ocasiona o crescimento de Restos a Pagar que equivale, em termos financeiros, a crescimento de dívida pública. Assim, sugere-se oposição de veto a este dispositivo, por ser contrário ao interesse público.”
Na realidade o dispositivo vetado comportava outra leitura por meio de uma interpretação sistemática, de sorte a preservar o princípio do equilíbrio fiscal invocado nas razões do veto. Realmente, o art. 41 permitia a inscrição em Restos a Pagar, independentemente de liquidação da despesa, desde que houvesse disponibilidade de caixa, bem como outras despesas sem disponibilidade de caixa, até o limite do montante previsto na reserva de contingência.[5] O § 3º determinava o cancelamento dos empenhos não liquidados e não inscritos. Não vemos, pois, como esse artigo vetado punha em risco o equilíbrio fiscal.
Assim, a matéria concernente a Restos a Pagar continua sendo regida pelo art. 37 da Lei nº 4.320/1964 que assim prescreve:
“Art. 37. As despesas de exercícios encerrados, para os quais o orçamento respectivo consignava crédito próprio, com saldo suficiente para atendê-las, que não se tenham processado na época própria, bem como os Restos a Pagar com prescrição interrompida e os compromissos reconhecidos após o encerramento do exercício correspondente poderão ser pagos à conta de dotação específica consignada no orçamento, discriminada por elementos, obedecida sempre que possível, a ordem cronológica.”
Por sua vez, dispõe o art. 22 e parágrafos do Decreto nº 93.872, de 23 de dezembro de 1986:
“Art. 22. As despesas de exercícios encerrados, para as quais o orçamento respectivo consignava crédito próprio com saldo suficiente para atendê-las, que não se tenham processado na época própria, bem como os Restos a Pagar com prescrição interrompida, e os compromissos reconhecidos após o encerramento do exercício correspondente, poderão ser pagos à conta de dotação destinada a atender despesas de exercícios anteriores, respeitada a categoria econômica própria (Lei nº 4.320, art. 37).
§1º O reconhecimento da obrigação de pagamento, de que trata este artigo, cabe à autoridade competente para empenhar a despesa.
§2º Para os efeitos deste artigo considera-se:
- despesas que não se tenham processado na época própria, aquelas cujo empenho tenha sido considerado insubsistente e anulado no encerramento do exercício correspondente, mas que, dentro do prazo estabelecido, o credor tenha cumprido a sua obrigação;
- restos a pagar com prescrição interrompida, a despesa cuja inscrição como restos a pagar tenha sido cancelada, mas vigente o direito do credor;
- compromissos reconhecidos após o encerramento do exercício, a obrigação de pagamento criada em virtude de lei, mas somente reconhecido o direito do reclamante após o encerramento do exercício correspondente.”
Na prática, a operacionalização dos Restos a Pagar vem sendo feita da seguinte maneira:
- o reconhecimento da dívida pelo ordenador da despesa para o pagamento a título de “Despesas de Exercícios Anteriores”;
- se inexistente essa rubrica no exercício corrente impõe-se a abertura de crédito adicional e especial, tendo como fonte de custeio a anulação parcial ou total de dotações de menor prioridade.
De fato, não cabe ao Poder Público invocar sua própria negligência gerencial para deixar de pagar as despesas resultantes de contrato regularmente firmado e executado, ou protelar seu pagamento com transgressão do princípio da ordem cronológica, inserto no art. 5º da Lei nº 8.666/1993, sob pena de violação do princípio da moralidade pública e do princípio da razoabilidade que se impõe como um limite à ação do próprio legislador.[6]
Se aquela preocupação que motivou o equivocado veto ao art. 41 da LRF estivesse presente na mente dos governantes por ocasião da execução orçamentária, o País não teria acumulado um déficit primário de 124 bilhões[7] em 2017, quando no ano de 2013 havíamos alcançado o recorde de 91,3 bilhões de superávit primário. A previsão atual[8] de déficit primário para o exercício de 2018 é da ordem de 148,1 bilhões.
Todas as normas de natureza orçamentária, bem como as de natureza fiscal voltadas para a preservação da gestão fiscal responsável que cominam penas de natureza administrativa, financeira e penal vêm sendo ignoradas em bloco na prática. Primeiro, tentam alterá-las a pretexto de melhorá-las; não dando certo, passam por cima delas e nada acontece. Só para ter uma ideia, os arts. 339-A a 339-H, acrescidos ao Código Penal pela Lei nº 10.028, de 19 de outubro de 2000, para tutelar a LC nº 101/2000 – LRF, nunca foram aplicados, apesar da sua transgressão costumeira. Basta lembrar-se dos empréstimos a fundo perdido aos governos bolivarianos, sem autorização legislativa; realização de despesas não previstas na LOA; aumento de despesas de pessoal nos seis meses que antecedem o final de mandato ou legislatura; inscrição em Restos a Pagar acima do limite legal etc. Aqui vale relembrar o que sempre afirmamos: não há lei que transforme o ímprobo em probo, nem o desonesto em honesto. Nenhuma lei é auto-operativa.
[1] ADI nº 2.925, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 4-3-2005; ADI 4.049, Rel. Min. Carlos Britto, DJe de 8-5-2009.
[2] Denominação dada pela EC nº 27/2000 ao antigo Fundo de Estabilização Fiscal – FEF, sucessor do Fundo Social de Emergência – FSE.
[3] DRU é sucessora do FEF que por sua vez sucedeu ao FSE. Ver item 5.7.5.
[4]Finanças Públicas: Travessia entre o passado e o futuro. São Paulo: Blucher, 2018, p. 31.
[5] Reserva de contingência significa verbas inseridas no orçamento global sem especificação de elementos de despesas para sua livre utilização, quando necessária, mediante abertura de créditos adicionais suplementares. Ela tem origem no art. 91 do Decreto-lei nº 200, de 25-2-1967, posteriormente alterado pelo Decreto-lei nº 900, de 29-9-1969. Sua função é a de atender possíveis situações de riscos fiscais imprevistos.
[6] Ver nosso parecer sobre pagamento de despesas do exercício anterior em que figura como consulente o SINICESP, publicado na nossa coletânea Prática do direito tributário e financeiro, v. 3. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2008, p. 165-189.
[7] A projeção inicial era de 159 bilhões.
[8] Dia 18-10-2018, data em que estamos procedendo à atualização de dados. A previsão original era de 159 bilhões de déficit primário.
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