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TRIBUTÁRIO
Autorizou-se a quebra do sigilo bancário: e agora?
Hugo de Brito Machado Segundo
27/12/2019
Desde a edição da Lei Complementar 105/2001, discute-se a constitucionalidade de se permitir a autoridades da Administração Fazendária que acessem, sem prévia autorização judicial, dados bancários de cidadãos contribuintes. O questionamento não era se o direito ao sigilo seria absoluto, ou se poderia ser quebrado ou relativizado, mas se seria necessária a prévia interveniência de uma autoridade judiciária para tanto.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que em um momento anterior sinalizava pela possibilidade de quebra apenas mediante ordem judicial, terminou, apreciando a validade da aludida LC 105/2001, decidindo pela sua constitucionalidade, em julgado que discutiu menos a importância de uma prévia autorização judicial, e mais os efeitos de referidas quebras sobre o combate à evasão fiscal (ADIs 2.390, 2.397, 2.859 e 2.386, e RE 601.314).
Mais recentemente, quanto a este assunto, o Supremo Tribunal Federal fez algo que de algum modo não é tão raro em sua jurisprudência: tomou decisões posteriores que contrariam o que servira de base para decisões anteriores, que não obstante são mantidas. Fundamentos são assim transformados em falsas promessas. Com efeito, um dos principais argumentos a favor da quebra permitida pela LC 105/2001 era o de que não se estaria diante, propriamente, de uma quebra, mas de uma “transferência” do sigilo, que seria resguardado pelas autoridades fazendárias, no âmbito do chamado “sigilo fiscal”. Para outros fins, os dados bancários continuariam dependendo de autorização judicial para serem acessados. Entretanto, em momento posterior, apreciando, por exemplo, o RE 1.055.941/SP, o STF admitiu que tais dados, uma vez obtidos pela Receita, sejam compartilhados com autoridades policiais e com o Ministério Público, para fins de apuração de crimes relacionados aos mesmos fatos.
Em suma, diante da LC 105/2001, e de toda a jurisprudência que se formou em torno dela, foi, e de algum modo continua sendo, bastante discutida a questão de saber em que circunstâncias o sigilo bancário de um contribuinte pode ser quebrado por autoridades da Administração Fazendária, sem prévia ordem judicial. Talvez seja o caso, contudo, de questionar outro aspecto, logicamente posterior, e da maior relevância: como a Administração Tributária deve interpretar as informações assim obtidas? O normal é que, de posse dos extratos bancários de um contribuinte, o Fisco verifique a informação, ou esclareça a dúvida, que o levou a proceder à quebra do sigilo. A quebra não deve ser levada a efeito como um início de investigação, examinando-se os dados assim obtidos para “ver se existe algo” a ser apurado. Ao contrário, deve ser levada a efeito em face de elementos que justifiquem alguma suspeita, a serem confirmados – ou afastados – pelos dados assim obtidos.
Não tem sido rara, porém, a ocorrência da seguinte situação: surge uma suspeita, o sigilo é quebrado e a suspeita – que inicialmente justificara a quebra – é afastada. Entretanto, como o Fisco já está de posse dos extratos bancários do referido contribuinte, referentes a diversos anos, intima-o para comprovar a origem de todos os depósitos ali indicados, inclusive daqueles que nada têm a ver com o motivo inicial da quebra. O contribuinte tem então de lembrar, ao cabo de diversos anos, a origem e a justificativa de cada ingresso havido em sua conta. Os que não forem considerados como devidamente justificados serão considerados rendimentos não declarados, submetidos assim à incidência do imposto de renda (Lei 9.430/96, art. 42).
Veja-se: a conta bancária pode ter sido declarada para fins de imposto de renda, com os seus saldos inicial e final, apurados com a quebra, correspondendo aos montantes indicados na declaração, sendo tudo compatível com os rendimentos recebidos e declarados (e tributados) no período. O contribuinte pode não ter qualquer outro sinal exterior de riqueza, patrimônio a descoberto ou mesmo padrão de vida incompatível com os rendimentos declarados. Nada. Mas, se não conseguir lembrar a origem de determinado depósito havido em sua conta, quatro anos antes, pagará imposto de renda sobre ele. Aliás, o contribuinte até pode lembrar, mas isso não será suficiente: ele terá de convencer a autoridade lançadora dessa origem. Suponha-se que o contribuinte tenha sacado recursos de uma conta, utilizado parte deles e depositado novamente o restante: se não conseguir provar isso – e há como? – a autoridade afirmará que o depósito consiste em uma “riqueza nova”, lançando sobre ela o imposto de renda.
Pode parecer pouco plausível que alguém receba depósitos em sua conta e não lembre a origem. Para alguém que possui apenas uma fonte de renda, um salário, por exemplo, qualquer outro crédito será excepcional e, nessa condição, mais fácil de ser lembrado e eventualmente documentado. Mas, no caso de profissionais liberais, ou de quem possui mais de uma fonte de renda, ou de quem efetua vendas, intermediações etc., o controle pode ser mais difícil. Sobretudo depois de muitos anos. E, não só o controle, mas a efetiva comprovação, sendo este o maior problema: é do contribuinte o ônus de provar que não está devendo o tributo? Se for prestado o esclarecimento, mas remanescer alguma dúvida, ela deverá ser interpretada em favor de quem? Caso o contribuinte apresente justificativa, mas ela não seja “cabal” (na ótica da autoridade), a incerteza quanto à possibilidade de se considerar o depósito como um “rendimento não declarado” deve ensejar a realização do lançamento?
A questão, com efeito, relaciona-se ao devido processo legal, ao ônus da prova e ao dever de fundamentação dos atos administrativos, estando-lhe subjacente a própria ideia de presunção de inocência. Talvez seja o caso, portanto, de resgatar a ideia que amparava a Súmula 182 do extinto Tribunal Federal de Recursos, segundo a qual “é ilegítimo o lançamento do imposto de renda arbitrado com base apenas em depósitos bancários”. Não que se devam proteger os sonegadores, ou dificultar o trabalho do Fisco. Pelo contrário. O problema é usar um depósito bancário, sozinho, como única evidência da existência de omissão de rendimentos, e exigir, com extremo rigor, a prova em contrário por parte do contribuinte, para além de qualquer dúvida razoável.
Depósitos não explicados, somados a padrão de vida incompatível, patrimônio descoberto, saldos iniciais e finais diversos dos declarados, ou mesmo contas que sequer foram declaradas, ou em nome de laranjas, são elementos que, juntos, claramente podem justificar a presunção de omissão de rendimentos, mas a mera existência de um depósito, isolado, não necessariamente. Sobretudo quando o contribuinte tem uma justificativa para esse depósito, pondo-se a questão em torno de uma maior ou menor transigência da autoridade administrativa para aceitar essa justificativa. Não é coerente dispensar a autoridade de indicar meios probatórios capazes de conduzir a um mínimo convencimento a respeito da existência de rendimentos omitidos, e, ao mesmo tempo, atirar às costas do contribuinte o ônus de provar, além de qualquer dúvida razoável, a alegativa segundo a qual um determinado depósito não é rendimento omitido.
Tanto a questão é constitucional, e se relaciona a garantias fundamentais do processo, que o Supremo Tribunal Federal reconheceu sua repercussão geral (RE 855.649/RS – RG, Tema 842). Espera-se, nessa ordem de ideias, que a complacência da Corte com a forma como as mais diversas informações podem ser obtidas e compartilhadas seja acompanhada de algum rigor na maneira como as autoridades devem interpretar e utilizar tais dados.
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