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TRIBUTÁRIO
PIS-Cofins sobre receitas auferidas e não recebidas: o problema da tributação da inadimplência e o distinguishing na aplicação da tese fixada no Tema 87
Solon Sehn
21/11/2023
No regime não cumulativo do PIS-Cofins, as receitas que integram a base de cálculo das contribuições devem ser reconhecidas de acordo com o princípio da competência1. Portanto, os acréscimos patrimoniais tributáveis são considerados auferidos ou ganhos quando surge o direito ao seu recebimento, independentemente da efetiva percepção da prestação pecuniária correspondente. Assim, v.g., na compra e venda de uma mercadoria, a receita deve ser adicionada à base de cálculo quando o produto for entregue ao comprador, mesmo que ainda não tenha ocorrido o pagamento. Isso porque é nesse momento que surge o direito ao recebimento do preço por parte do vendedor (CC, art. 491).
O princípio da competência faz com que, em caso de mora ou de inadimplência, ocorra a tributação de valores não recebidos e que, muitas vezes, são de recuperação impossível. Trata-se de uma distorção que, no Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), é neutralizada pelo permissivo legal que autoriza a dedução das perdas no recebimento de créditos como despesas, para determinação do lucro real, nos termos do art. 9º da Lei nº 9.430/1996:
“Art. 9º As perdas no recebimento de créditos decorrentes das atividades da pessoa jurídica poderão ser deduzidas como despesas, para determinação do lucro real, observado o disposto neste artigo.
[…]
§ 7º Para os contratos inadimplidos a partir da data de publicação da Medida Provisória nº 656, de 7 de outubro de 2014, poderão ser registrados como perda os créditos: (Incluído pela Lei nº 13.097, de 2015)
I – em relação aos quais tenha havido a declaração de insolvência do devedor, em sentença emanada do Poder Judiciário; (Incluído pela Lei nº 13.097, de 2015)
II – sem garantia, de valor: (Incluído pela Lei nº 13.097, de 2015)
a) até R$ 15.000,00 (quinze mil reais), por operação, vencidos há mais de seis meses, independentemente de iniciados os procedimentos judiciais para o seu recebimento;
b) acima de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) até R$ 100.000,00 (cem mil reais), por operação, vencidos há mais de um ano, independentemente de iniciados os procedimentos judiciais para o seu recebimento, mantida a cobrança administrativa; e (Incluído pela Lei nº 13.097, de 2015)
c) superior a R$ 100.000,00 (cem mil reais), vencidos há mais de um ano, desde que iniciados e mantidos os procedimentos judiciais para o seu recebimento; (Incluído pela Lei nº 13.097, de 2015)
III – com garantia, vencidos há mais de dois anos, de valor: (Incluído pela Lei nº 13.097, de 2015)
a) até R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), independentemente de iniciados os procedimentos judiciais para o seu recebimento ou o arresto das garantias; e (Incluído pela Lei nº 13.097, de 2015)
b) superior a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), desde que iniciados e mantidos os procedimentos judiciais para o seu recebimento ou o arresto das garantias; e (Incluído pela Lei nº 13.097, de 2015)
IV – contra devedor declarado falido ou pessoa jurídica em concordata ou recuperação judicial, relativamente à parcela que exceder o valor que esta tenha se comprometido a pagar, observado o disposto no § 5º. (Incluído pela Lei nº 13.097, de 2015)”
PIS-Cofins e princípio da competência
No PIS-Cofins, entretanto, não há instrumento análogo2, o que gera prejuízos para os mais variados segmentos econômicos3. Em alguns setores, isso é bastante sério, como nas empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos de saneamento, que têm parcela significativa dos seus escassos recursos destinados ao pagamento de PIS-Cofins sobre valores inadimplidos, em prejuízo do investimento no saneamento básico da população. Por isso, seria sensato alterar a legislação tributária, prevendo algum mecanismo de mitigação dessa grave anomalia. Sensatez, entretanto, é o que menos se vê nos últimos anos nas alterações legislativas em matéria tributária no Brasil, de sorte que a solução certamente deverá ficar a cargo do intérprete-aplicador. Isso porque – não há dúvidas – a tributação da inadimplência não é compatível com os princípios da razoabilidade e da capacidade contributiva.
Jurisprudência
No âmbito jurisprudencial, ao julgar o Recurso Extraordinário (RE) nº 586.482, o Supremo Tribunal Federal (STJ) decidiu em regime de repercussão geral que: “as vendas inadimplidas não podem se excluídas da base de cálculo da contribuição ao PIS e da Cofins, visto que integram a receita da pessoa jurídica” (Tema nº 87).
Nesse recurso, o STF negou a equiparação entre vendas inadimplidas e vendas canceladas, afastando a exclusão da base de cálculo do PIS-Cofins com fundamento no art. 1º, § 3º, V, “a”, da Lei nº 10.833/2003, e no art. 1º, § 3º, V, “a”, da Lei nº 10.637/2002, ambos com a mesma redação: “Art. 1º […] § 3º Não integram a base de cálculo a que se refere este artigo as receitas: […] V – referentes a: […] a) vendas canceladas e aos descontos incondicionais concedidos” (g.n.).
Cumpre destacar, para uma melhor compreensão da controvérsia, a ementa do acórdão:
“TRIBUTÁRIO. CONSTITUCIONAL. COFINS/PIS. VENDAS INADIMPLIDAS. ASPECTO TEMPORAL DA HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA. REGIME DE COMPETÊNCIA. EXCLUSÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. IMPOSSIBILIDADE DE EQUIPARAÇÃO COM AS HIPÓTESES DE CANCELAMENTO DA VENDA.
1. O Sistema Tributário Nacional fixou o regime de competência como regra geral para a apuração dos resultados da empresa, e não o regime de caixa. (art. 177 da Lei 6.404/76).
2. Quanto ao aspecto temporal da hipótese de incidência da COFINS e da contribuição para o PIS, portanto, temos que o fato gerador da obrigação ocorre com o aperfeiçoamento do contrato de compra e venda (entrega do produto), e não com o recebimento do preço acordado. O resultado da venda, na esteira da jurisprudência da Corte, apurado segundo o regime legal de competência, constitui o faturamento da pessoa jurídica, compondo o aspecto material da hipótese de incidência da contribuição ao PIS e da COFINS, consistindo situação hábil ao nascimento da obrigação tributária. O inadimplemento é evento posterior que não compõe o critério material da hipótese de incidência das referidas contribuições.
3. No âmbito legislativo, não há disposição permitindo a exclusão das chamadas vendas inadimplidas da base de cálculo das contribuições em questão. As situações posteriores ao nascimento da obrigação tributária, que se constituem como excludentes do crédito tributário, contempladas na legislação do PIS e da COFINS, ocorrem apenas quando fato superveniente venha a anular o fato gerador do tributo, nunca quando o fato gerador subsista perfeito e acabado, como ocorre com as vendas inadimplidas.
4. Nas hipóteses de cancelamento da venda, a própria lei exclui da tributação valores que, por não constituírem efetivos ingressos de novas receitas para a pessoa jurídica, não são dotados de capacidade contributiva.
5. As vendas canceladas não podem ser equiparadas às vendas inadimplidas porque, diferentemente dos casos de cancelamento de vendas, em que o negócio jurídico é desfeito, extinguindo-se, assim, as obrigações do credor e do devedor, as vendas inadimplidas – a despeito de poderem resultar no cancelamento das vendas e na consequente devolução da mercadoria –, enquanto não sejam efetivamente canceladas, importam em crédito para o vendedor oponível ao comprador.
6. Recurso extraordinário a que se nega provimento”4.
Trata-se de interpretação acertada. Não se pode equiparar uma obrigação inadimplida com a venda cancelada. Nesta, ao contrário daquela, há um distrato do negócio jurídico, com a consequente devolução da mercadoria e retorno das partes ao status quo ante. Ademais, diante da simples mora do devedor, cumpre ao credor exercer a pretensão, exigindo do devedor a prestação pecuniária correspondente.
A tese fixada pelo STF no RE nº 586.482 (Tema nº 87) deve ser estendida a todos os recursos fundados em idêntica controvérsia de direito (CPC, arts. 1.036 e 1.039). Ao mesmo tempo, como precedente vinculante (CPC, art. 489, VI), seus motivos determinantes (ratio decidendi)devem ser obrigatoriamente aplicados aos processos idênticos ou semelhantes, até eventual superação do entendimento anterior (overruling). Não há vinculação, entretanto, quando o caso justifica uma distinção(distinguishing).
No caso das vendas inadimplidas, deve-se ter presente que a tese foi fixada pelo STF em um caso de mora do devedor, isto é, diante de um inadimplemento relativo ou temporário da prestação. Em situações dessa natureza, o que se tem é um simples atraso no recebimento, sem caracterizar uma perda propriamente dita. Diferente, porém, são as situações em que há um inadimplemento absoluto. Nelas o devedor não realizou a prestação nem tampouco pode fazê-lo, porque essa não é mais útil ao credor ou em razão de ter se tornado impossível. Nesses casos, caracterizada a impossibilidade de recebimento pela insolvência do devedor ou outro fator juridicamente relevante (v.g., o valor do crédito supera os custos de cobrança), a exigência do PIS-Cofins não se compatibiliza com o princípio constitucional da capacidade contributiva. Há, portanto, um evidente pagamento indevido, que justifica o distinguishing para reconhecer o direito à repetição do indébito, mediante aplicação dos procedimentos previstos para o pedido de restituição ou declaração de compensação (PER/DCOMP).
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NOTAS
1 A não cumulatividade do PIS-Cofins aplica-se aos contribuintes que apuram o Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) no lucro real, ressalvadas as exceções previstas no art. 10 da Lei nº 10.833/2003. Assim, as receitas devem ser reconhecidas na forma art. 187, § 1º, “a” da Lei 6.404/1976, que determina o cômputo das receitas, para efeitos de determinação do resultado do exercício, quando ganhas, independente de sua realização em moeda.
2 A legislação oferece apenas soluções parciais, como no caso das empresas submetidas ao lucro presumido, que podem optar pela aplicação do regime de caixa (art. 20 da Medida Provisória 2.158-35/2001).
3 Sobre os prejuízos no segmento de telecomunicações, ver: COELHO, Eduardo Junqueira. Da indevida exigência de PIS/Cofins sobre receitas não recebidas em virtude de inadimplência do devedor. In: MOREIRA, André Mendes; RABELO FILHO, Antônio Reinaldo; CORREIA, Armênio Lopes (org.) Direito das telecomunicações e tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 92 e ss.
4 STF. T. Pleno. RE 586.482. Rel. Min. Dias Toffoli. DJe-119 de 19.06.2012.