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TRIBUTÁRIO

Não se pode fundar a ação judicial em um slide

Hugo de Brito Machado Segundo

Hugo de Brito Machado Segundo

17/10/2024

Nos debates públicos sobre a reforma tributária, principalmente agora, em que se discutem os projetos de lei complementar que regulamentarão a EC 132/2023, tenho observado um fenômeno curioso. Vejo exposições orais nas quais se defendem ideias com as quais concordo integralmente. Os slides de powerpoint que as acompanham são belíssimos. Em face deles, aprovados os projetos de lei, tudo passará a ser maravilhoso, pelo menos no que tange à tributação sobre o consumo.

O problema é que muitas vezes esses slides não correspondem ao texto do projeto de lei complementar (PLP) a que dizem respeito. Dia desses, no Senado, cheguei a abrir o computador na sessão em que se discutia certo tema, para conferir, porque cheguei a pensar que vivia em uma realidade paralela, dentro do multiverso, na qual o texto que lia era outro. Depois de o reler, por algumas vezes, confirmei que não era. O slide é que não correspondia ao texto mesmo.

Em contexto no qual os parlamentares muitas vezes votam os textos sem tê-los lido inteiramente, ou sequer sem ter tido acesso a eles previamente, ou sem ter capacidade técnica para isso (sem nenhum demérito para eles, que têm outros ofícios e formações; mesmo para tributaristas o tema é muito complicado!) trata-se de algo preocupante, pois acabam confiando no que consta dos tais powerpoints.

Consta do slide, mas não do PLP

Um belo exemplo é a promessa de crédito amplo. Já vi vários slides que a explicitam, deixando clara a única exceção admissível, conforme o texto constitucional: operações com bens ou serviços destinados ao consumo ou ao uso pessoal do contribuinte ou de seus sócios ou empregados. Como não são relacionados à atividade tributada, é natural que não gerem créditos, tendo os slides elaborados desenhos para mostrar que isso está de acordo com o princípio da neutralidade. O problema é que não é isso o que consta do PLP 68, pelo menos na versão aprovada pela Câmara dos Deputados e encaminhada ao Senado Federal há alguns meses.

No PLP 68, ao lado de um artigo que “considera” certos bens e serviços como sendo “sempre” de uso ou consumo pessoal, independentemente de o serem ou não, há vários outros que, sem razão aparente, simplesmente afirmam que o direito de crédito, nas situações que especificam, “fica vedado”, ou que a apropriação do crédito “fica vedada”. Pesquisa por essas expressões, somando-se o seu uso no gênero masculino e no feminino, dá lugar a 14 ocorrências ao longo do texto legal. Algumas talvez se justifiquem. Outras certamente não. Mas o slide faz de conta que elas não existem, o que leva quem confia apenas nele a sequer colocá-las sob discussão. Aprova-se o crédito amplo, mas o que entra em vigor é outra coisa.

Veja-se o exemplo dos gastos com hospedagem. O artigo 281 do PLP 68/2024 afirma simplesmente que “fica vedada a apropriação de créditos de IBS e CBS pelo adquirente dos serviços de hotelaria…”.

Suponha-se, contudo, que se trata de companhia aérea, que tem como inerente, ínsito, inafastável à sua atividade o custeio de hospedagem para pilotos e tripulantes. Ou mesmo de passageiros, quando perdem conexões, voos são cancelados etc. Dir-se-á que são serviços “de uso pessoal”? Há como prestar serviço de transporte aéreo sem isso? É da maior evidência que não. O mesmo pode ser dito de contribuintes cuja atividade exige deslocamento físico. Mas “ficam vedados” os créditos, embora muitos dos slides que se usam para convencer parlamentares a não alterar os PLPs recebidos do Executivo insistam nas maravilhas do crédito amplo e advoguem a correção – em nome da neutralidade – da única vedação que supostamente constaria do texto.

Outro exemplo é o condicionamento do direito ao tal “crédito amplo” ao efetivo adimplemento de elos anteriores da cadeia, o que pode gerar acumulação, seja porque a incidência já pode gerar custo ao adquirente, mesmo que não haja adimplemento (do contrário, qual a razão do crime do artigo 2.º, II, da Lei 8.137/90? Alô, coerência!), seja porque o pagamento em atraso, por parte do elo anterior, muito tempo depois da operação, impossibilitará o aproveitamento do crédito.

A Constituição é claríssima: trata-se de uma exceção, admissível apenas em casos de split payment e de pagamento pelo adquirente (156-A, §5º, II, da CF/88), situações que eliminam tais riscos. Se a operação anterior não for objeto de quaisquer dessas hipóteses, o direito ao crédito não pode ser condicionado ao pagamento. E isso consta dos slides. Mas, de novo, não do PLP 68. Nele, pelo menos no que a Câmara aprovou e tenho na tela de meu computador enquanto escrevo estas linhas, consta, no artigo 29:

Embora tenha uma redação cujo ranço puxa para o lado de transformar a exceção em regra, o artigo continua admitindo que só no caso de split payment e de recolhimento pelo adquirente haverá o condicionamento do crédito ao pagamento. Mas, adiante, vários outros artigos o contradizem, como o artigo 28:

E, além dele, muitíssimos outros, espalhados pelo PLP 68. Aqui, um CTRL+F usando a expressão “ficam condicionados” fornece nada menos que seis resultados, a exemplo, por amostragem, deste:

O progressivo arbítrio das normas

Não é o propósito deste artigo, quero salientar, discutir a validade ou mesmo a conveniência de restringir dessa maneira o direito ao crédito vendido como “amplo” quando da aprovação da EC 132/2023. A ideia é simplesmente compartilhar uma perplexidade, de que os slides que vendem a reforma aos parlamentares, que nem sempre leem ou compreendem inteiramente as tecnicidades dos projetos que aprovam, nos pontos mais sensíveis, não necessariamente correspondem ao texto legal cuja aprovação sem mudanças advogam.

Daí várias reflexões podem ser feitas.

A primeira, a de que o contribuinte pode se preparar, já, para os regulamentos.

Algum tempo lidando com questões tributárias me fez observar a existência de um princípio sociológico (não jurídico), que batizei de progressivo arbítrio das normas tributárias conforme menor sua hierarquia. Quanto mais se “desce” na pirâmide hierárquica de normas, mais arbitrárias e parciais ficam estas, em favor de quem maior influência tem em sua elaboração, que é a parte credora. Os artigos da Constituição enumeram belos princípios, como capacidade contributiva, igualdade, e, agora, até justiça fiscal, transparência e cooperação. Parecem as aulas de religião que eu era obrigado a assistir na escola quando era pequeno, em que as crianças repetiam certos mantras sem saber bem o que significavam, só para depois, no recreio, fazerem tudo ao contrário.

Quando se desce para as leis, e, depois, decretos, portarias, instruções normativas, a balança vai pendendo cada vez mais para o lado do credor da relação. Se no PLP já está assim, com artigos que parecem dizer uma coisa mas nos detalhes fazem o contrário (e a presença de tais surpresinhas já é em si uma violação aos princípios da transparência e da cooperação), antecipe você, leitora, como virão os atos infralegais, aos quais, a propósito, o texto do PLP 68 delega o delegável e também o indelegável. Um CTRL+F em “nos termos do regulamento” e “na forma do regulamento”, somados os dois resultados, fornece quase cinquenta ocorrências. Algumas legítimas, outras nem tanto, como definição de alíquotas e elementos de base de cálculo. Mas isso já é tema para outro artigo.

Outra reflexão diz respeito à judicialização, que os entusiastas da reforma dizem que vai acabar, ou reduzir bastante, pois tudo vai ficar muito simples e transparente. Pode ser que os autores dos slides que defendem a aprovação sem mudanças de um texto de PLP que discrepa do próprio slide de verdade estejam lendo nos textos legais o que colocam nos slides. E pode ser que quem escreve estas linhas aqui entenda o PLP de outro modo, ou já saiba, por experiência de quem atua na prática, que o Fisco vai interpretá-lo de outro modo. Cada um lê o texto ao seu modo, o que sugere, sim, muitos conflitos à vista. Mas, nesse caso, todo o problema é que não poderemos ingressar com um mandado de segurança para corrigir a ilegalidade invocando o slide como fundamento. Então é melhor cuidar de dar atenção aos textos, e não aos slides de quem pede para que sejam aprovados acriticamente, para corrigir os PLPs enquanto há tempo.

Fonte: ConJur


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