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Não há o que não se consiga quando o processo aplicado é o faz de conta

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Não há o que não se consiga quando o processo aplicado é o ‘faz-de-conta’

Hugo de Brito Machado Segundo

Hugo de Brito Machado Segundo

06/05/2024

Lembro de ouvir do professor Marco Aurélio Greco, em um dos saudosos congressos organizados pela editora Dialética (Grandes Questões Atuais do Direito Tributário…), que, nos anos 1970, as discussões em matéria tributária giravam, precipuamente, em torno da incompatibilidade de instruções normativas ou de portarias com os decretos.

Depois, nos anos 1980, passaram a orbitar a incompatibilidade entre decretos e leis tributárias. Nos anos 1990, foram as leis que entraram na berlinda, sendo contrastadas com o texto constitucional. Tudo para, nos anos 2000, se começar a questionar a validade de emendas constitucionais. Isso seria uma mostra, em suas palavras, do esgotamento de um modelo afeito a questões formais. A forma o Estado muda. Batemos no teto, dizia ele.

Mesmo pondo de lado os limites de uma simplificação deste naipe, e de uma organização cronológica que existe mais na mente do organizador do que na realidade organizada, o argumento faz sentido, e nos leva a pensar, dentre outras coisas, na importância do processo legislativo.

A legalidade, como o próprio professor Marco Aurélio refere em seus escritos, não tem apenas a função formal protetiva, a exigir regras prévias, públicas, cognoscíveis pelo sujeito passivo da relação, destinadas a dar a ela um mínimo de previsibilidade.

Importância da participação popular na elaboração das leis

Em sociedades democráticas como a brasileira, tem também uma função, ainda pouco explorada, de permitir à população participar, de alguma maneira, do processo de elaboração das leis. No seu conteúdo.

Em vez de cruzar os braços, ausentar-se das discussões públicas sobre o modelo de tributação que queremos para nossa sociedade, e depois individualmente reclamar junto ao Judiciário daquilo que nos incomoda, enquanto cidadãos devemos participar dos debates, das discussões, para que finalmente a relação tributária distancie-se da relação de poder, assim entendida aquela que nasce, se desenvolve e se extingue nos termos unilaterais da vontade de um de seus polos.

No Direito Tributário, tem-se relação obrigacional cujos contornos são delineados por lei feita pelo credor; aplicada pelo credor, que determina se ocorreram, ou não, os fatos nela previstos, e o teor de suas consequências, e cujos conflitos que surjam dessas duas atividades são também pelo credor equacionados.

É a tríplice função, a que alude Ramón Valdés Costa, e que serve de marco teórico para o belo livro de James Marins, “Defesa e Vulnerabilidade do Contribuinte” (São Paulo: Dialética, 2009).

A separação de poderes, surgida depois de séculos de tentativa e erro (e derramamento de sangue), e de abusos havidos justamente nessa relação (e que motivaram as revoluções que a trouxeram), é uma tentativa, só uma tentativa, de minimizar isso.

Caso, contudo, a sociedade efetivamente eleja representantes, dos mais variados matizes políticos e perfil ideológicos, que representem sua pluralidade no parlamento, e depois ativamente participe dos debates nesse parlamento, cobrando seus representantes por medidas e normatizações, e se insurgindo contra alterações que considere indesejadas, os efeitos dessa concentração de funções serão inegavelmente minimizados.

A reforma tributária inclusive inclui, na Constituição, princípios, agora cogentes, relacionados ao tema (CF/88, artigo 145, §3.º). É o caso da transparência, e da cooperação, que reclamam, já na gestação das leis tributárias, clareza de propósitos, participação da sociedade e amplo debate com todos os afetados.

É preciso, contudo, que os parlamentos, inclusive os estaduais, distrital e municipais, estejam cientes disso, deixando de atuar, como têm atuado em alguns casos, especialmente em matéria tributária, como meros departamentos, ou secretarias, do Poder Executivo, limitando-se a chancelar, em dias, ou mesmo em horas, de forma híbrida por telas de celular ligadas só na hora de dizer “sim” para projetos encaminhados pelo governador, projetos de leis que não passam por qualquer discussão, e sem a mínima publicidade.

Exemplos de abuso

No âmbito do estado do Ceará, há dois exemplos emblemáticos. A Lei 18.305/2023, aprovada em poucos dias pela Assembleia Legislativa, em regime de urgência, sem sequer aguardar a criação das comissões permanentes (nas quais as minorias têm alguma voz), em fevereiro de 2023.

Sua única finalidade foi a de elevar a alíquota modal do ICMS, de 18% para 20%. Para que o regime de urgência, se a lei, aprovada em fevereiro de 2023, só poderia entrar em vigor, por força do princípio da anterioridade tributária, em janeiro de 2024, quase um ano depois?

A única explicação é a de estancar qualquer debate com a sociedade sobre o referido aumento, afastando-se a possibilidade de esta pressionar parlamentares e estes, com medo de futura cobrança nas urnas (sim, a democracia representativa serve para isso!), não aprovarem o aumento.Reprodução

A participação dos afetados pelo resultado de um processo, qualquer que seja ele, inclusive e sobretudo o legislativo, é essencial à legitimidade de seu resultado. Peço licença à leitora para mostrar, aqui, foto tirada na Câmara Municipal de Fortaleza, em sessão na qual esta pretendia aprovar lei regulamentando a atividade dos “trenzinhos da alegria”.

Se os parlamentares, representantes do povo da cidade, editarão normas que afetarão a liberdade (profissional), ou o patrimônio (o “ganha pão”) do povo dessa cidade, é legítimo, como consequência do devido processo legal (aplicável também ao processo legislativo), que os afetados sejam ouvidos, ou possam pelo menos assistir os debates, para ver como cada parlamentar se posicionou, como votou, as ideias que defendeu.

Daí por que Power Rangers e Chaves foram ao debate. Se se legisla sobre médicos, sobre educadores físicos, sobre apostas esportivas, os interessados participam do debate. E por que a legislação sobre um tributo que todos pagamos é aprovada secretamente, em poucos dias, em regime de urgência, sem que ninguém fique sabendo?

O outro exemplo é a Lei 18.665/2023, também do estado do Ceará, esta aprovada em dezembro de 2023. A par de ratificar o aumento levado a efeito pela Lei 18.305/2023, esta última modifica quase duzentos artigos da legislação do ICMS.

Aprovada também em regime de urgência, em poucos dias e com o Natal no meio deles, a “mensagem” que acompanhou o respectivo projeto de lei, enviada pelo Governador, dizia que sua finalidade era adaptar a legislação do ICMS cearense “às demais normas integrantes da legislação tributária de âmbito nacional e às decisões emanadas dos tribunais pátrios, evitando o surgimento de contendas judiciais que possam acarretar prejuízos ao contribuinte e ao Fisco.”

Os parlamentares que achavam que sabiam o que estavam votando, achavam que votavam a adequação da legislação ao entendimento já consolidado do STF e do STJ, para evitar conflitos judiciais entre fisco e contribuintes. Mas a Lei 18.665/2023, em verdade, delega para o decreto do governador o trato de praticamente tudo em matéria de ICMS, inclusive:

(i) estabelecimento de isenções (para que sejam agraciados apenas alguns, enquanto todos os demais amargam os 20% já aprovados sem discussão);
(ii) definição de hipóteses de substituição tribututária;
(iii) criação de regimes especiais para microempresas (Simples);
(iv) criação de regimes especiais de tributação a serem pactuados com cada contribuinte individualmente, ou com cada setor, por meio de “termos de acordo”, os quais ensejam a aplicação de um regramento acordado e inteiramente diverso daquele previsto em lei.

Tudo em agressão à legalidade, à separação de poderes, e ao entendimento do STF, inclusive firmado em repercussão geral (Tema 456 de repercussão geral).

Não bastasse isso, a lei transforma o Cadastro Geral de Fazenda (CGF) em autorização para o exercício de atividade econômica, o qual pode ser sumariamente cassado quando o Fisco entende que o contribuinte incorre em inadimplência ou comete alguma outra falta (violando a Súmula 70/STF); amplia as hipóteses de apreensão de mercadorias como forma coercitiva para a cobrança de tributos (violando Súmula 323/STF), altera a contagem de prazos de decadência, restringe o alcance do princípio da não cumulatividade, enfim, tem um catálogo imenso de contrariedades ao texto constitucional e ao entendimento dos tribunais brasileiros.

Mesmo sem entrar na discussão de tantas inconstitucionalidades materiais, o caso chama a atenção, de novo, para a importância do processo legislativo, e dos princípios que a reforma tributária inseriu (será que foi só para enfeitar?) no texto constitucional: pode a mensagem de um projeto de lei afirmar que ele cuida de uma coisa, com um propósito, quando seu teor faz o contrário disso? E pode esse projeto ser aprovado em regime de urgência, em poucos dias, sem que se permita à sociedade qualquer debate prévio a respeito?

Desta vez, a questão foi submetida ao crivo do Supremo Tribunal Federal (ADI 7.716/CE), que inclusive já declarou um “jabuti” inconstitucional justamente por ter sido inserido de modo a frustrar o debate democrático em torno do tema legislado, por parte daqueles que por ele seriam afetados (ADI 5.127).

Espera-se que a Corte, não só pelo desrespeito material à Constituição e aos seus precedentes, mas pelo completo descaso ao processo legislativo, ao parlamento e à separação de poderes (e, com eles, à própria democracia), afirme a impossibilidade de se manter esse modelo de “faz de conta” legislativo. Até porque, neste caso, o céu será o limite para o fisco, visto que, nas palavras de Monteiro Lobato, “não há o que não se consiga quando o processo aplicado é o Faz-de-Conta”. (“A Reforma da Natureza”. São Paulo: Brasiliense, 1974, p. 68-70)

Fonte: ConJur

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