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TRIBUTÁRIO
Fresh start e o crédito tributário
Paulo Penalva Santos
02/01/2024
O presente artigo trata da extinção das obrigações do falido, com as alterações promovidas pela lei 14.112/2020, que permite o devedor recomeçar sua atividade econômica, livre das restrições que a falência lhe havia imposto. De fato, a lei 14.112/2020 abrandou o excessivo rigor dos requisitos para a extinção das obrigações, adotando um sistema semelhante ao denominado fresh start, que tem por objetivo facilitar a retomada das atividades empresariais do devedor.
Porém, em relação ao crédito tributário, as reformas realizadas pela lei 14.112/2020 não resolvem a questão, porque o art. 146, III da Constituição da República prevê que compete à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria tributária, não cabendo à lei ordinária dispor sobre a extinção das obrigações tributárias.
Assim, o desafio aqui será encontrar a solução do problema aplicando-se o Código Tributário Nacional, que trata especificamente da matéria.
Os novos critérios para extinção das obrigações do falido
Antes de analisar a questão do crédito tributário, cumpre destacar as modificações trazidas pela lei 14.112/2020 que simplificaram substancialmente o procedimento de extinção das obrigações do falido, permitindo o denominado fresh start.
Nos mesmos moldes do art. 138 do decreto-lei 7.661/1945 (“DL 7.661/1945”), a lei atual só autoriza o devedor falido a exercer novamente a atividade empresarial após a declaração de extinção de suas obrigações, matéria essa atualmente regida pelo art. 158 da lei 11.101/2005.
Na redação original do art. 158 da lei 11.101/2005, encerrada a falência, o devedor poderia requerer a extinção das suas obrigações, nas seguintes hipóteses: i) pagamento de todos os créditos; ii) o pagamento, depois de realizado todo o ativo, de mais de 50% dos créditos quirografários; iii) o decurso do prazo de cinco anos, contado do encerramento da falência, se o falido não tiver sido condenado por crime falimentar; e iv) o decurso do prazo de dez anos, contado do encerramento da falência, se o falido tiver sido condenado por crime falimentar. Vale notar que o termo inicial dos prazos de cinco ou dez anos era o encerramento da falência.
A lei 14.112/2020 representou um enorme avanço, ao simplificar e reduzir os requisitos para a extinção das obrigações. Além de revogar as exigências previstas nos incisos III e IV, que, respectivamente tratavam do decurso do prazo de cinco anos, sem condenação por crime falimentar, e de dez anos se o falido fosse condenado por crime falimentar, em ambos os casos contado o prazo do enceramento da falência, a lei deu nova redação ao inciso II e introduziu os incisos V e VI do art. 158, nos seguintes termos:
“II – o pagamento, após realizado todo o ativo, de mais de 25% (vinte e cinco por cento) dos créditos quirografários, facultado ao falido o depósito da quantia necessária para atingir a referida porcentagem se para isso não tiver sido suficiente a integral liquidação do ativo; […]
V – o decurso do prazo de 3 (três) anos, contado da decretação da falência, ressalvada a utilização dos bens arrecadados anteriormente, que serão destinados à liquidação para a satisfação dos credores habilitados ou com pedido de reserva realizado;
VI – o encerramento da falência nos termos dos arts. 114-A ou 156 desta lei.”
Ou seja, o termo inicial do prazo para extinção das obrigações do falido não é mais o encerramento da falência, mas sim sua decretação. Por sua vez, o encerramento da falência, que antes era o termo inicial dos prazos de cinco ou dez anos, passa a ser, por si só, fundamento suficiente para extinção das obrigações do falido.
Importante destacar que há diferença sobre a aplicação dos incisos V e VI do art. 158, aos processos em curso. Nos termos do art. 5º, § 1º, inc. IV, da lei 14.112/2020, o inciso V aplica-se somente às falências decretadas após o início da vigência da mesma lei 14.112/2020, ou seja, não se aplica aos processos anteriores. Ao contrário, o art. 5º, § 4º, da lei 14.112/2020 estabelece que o inc. VI tem aplicação imediata, inclusive às falências regidas pelo DL 7.661/1945.
Também o art. 159 foi alterado, reduzindo o prazo de trinta para cinco dias, para que os credores possam se opor ao pedido de extinção das obrigações formulado pelo falido. Note-se que o legislador reduziu a matéria a ser alegada pelos credores, Ministério Público e o administrador judicial, que só podem se manifestar sobre inconsistências formais e objetivas.
Dentre os credores legitimados a contestar o pedido de declaração de extinção das obrigações do falido estão as Fazendas Públicas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que nos termos do inciso XIII do art. 99, acrescentado pela lei 14.112/2020, são intimadas eletronicamente da decretação da quebra.
A intenção do legislador em viabilizar o retorno do agente econômico às suas atividades empresariais encontra-se ainda em outros dispositivos da lei 14.112/2020. De um lado, o art. 75 dispõe que a falência visa “fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à sua atividade econômica”. Da mesma forma, a nova lei fixou prazo de 180 dias para a realização de todo o ativo, contado da data da lavratura do auto de arrecadação. Salvo por impossibilidade justificada, o descumprimento dessa obrigação acarretará a destituição do administrador judicial (art. 22, alínea j). Ressalta a preocupação do legislador em fixar uma sanção severa para o administrador judicial que descumprir, injustificadamente, essa obrigação de encerrar a liquidação do ativo com celeridade.
A extinção das obrigações do falido e o crédito tributário
A finalidade específica desse instituto é a extinção de todas as obrigações na falência, como prevê expressamente o §3º do art. 159, com a nova redação dada pela lei 14.112/2020.
Porém, em relação ao crédito tributário, a extinção das obrigações tem uma peculiaridade própria, pois o art. 191 da lei 5.172/1966 (“CTN”) é expresso no sentido de exigir a prova da quitação de todos os tributos.
O curioso é que essa redação do art. 191 foi introduzida pela LC 118/2005, a mesma que alterou o art. 186 para sujeitar o crédito tributário à falência. Assim, o legislador apresenta sinais trocados, uma vez que ao mesmo tempo em que avança e reconhece a realidade, sujeitando o crédito fiscal à quebra, também retroage, impedindo que a declaração de extinção das obrigações abranja os tributos.
Há evidente conflito entre a norma do art. 186, que submete o crédito tributário ao sistema falimentar, e a regra do art. 191. No momento em que o CTN reconhece a sujeição do crédito da Fazenda Pública ao sistema falimentar, o qual tem normas específicas sobre a extinção das obrigações, não faz sentido a regra do art. 191. Esse dispositivo do art. 191 era coerente quando o crédito tributário não se sujeitava ao concurso falimentar – hipótese em que poderia ser declarada a extinção das obrigações na falência, sem abranger o crédito tributário, o qual não se sujeitava ao concurso de credores.
O Superior Tribunal de Justiça analisou, em duas oportunidades, a aplicação do art. 191 do CTN na vigência do DL 7.661/1945, em acórdãos da lavra do Ministro Raul Araújo e da Ministra Nancy Andrighi. Como à época o crédito tributário não se sujeitava ao concurso de credores, o Superior Tribunal de Justiça concluiu que a extinção das obrigações poderia ser declarada, mas o que, obviamente, não abrangeria os tributos.1-2
A interpretação isolada do art. 191 do CTN levaria à conclusão de que o falido estaria impedido de exercer os direitos que a falência restringiu até a liquidação total do passivo tributário, o que de fato seria impossível de ocorrer, ainda mais quando a falência for extinta após a realização de todo o ativo (art. 154 da lei 11.101/2005). Uma alternativa seria adotar a orientação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, na vigência do DL 7.661/1945, no sentido de que a extinção das obrigações poderia ser declarada, mas não abrangeria as obrigações relativas a tributos, cuja cobrança, à época não se sujeitavam à falência, de modo que, juridicamente, o falido poderia de voltar a exercer a atividade empresária, mas não ficaria livre das obrigações tributárias.
Contudo, tais interpretações devem ser repelidas, por incompatíveis com o escopo da extinção das obrigações, de modo a estimular a retomada da atividade produtiva. Por certo, a solução sobre a extinção do crédito tributário na falência deve estar no CTN, e não na lei ordinária. Isso porque cabe à lei complementar – no caso, o CTN – estabelecer normas gerais referentes a obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários, nos termos do art. 146 da Constituição da República.
Cumpre frisar que a solução sobre a extinção do crédito tributário na falência é apresentada pelo próprio CTN, o qual no art. 156 inclui entre as hipóteses de extinção do crédito tributário a decisão judicial passada em julgado (inciso X).
No caso das obrigações do falido, nos termos do 159 da lei 11.101/2005, a extinção se dá com o trânsito em julgado da sentença que declarar extintas as suas obrigações. Na hipótese, a sentença tem natureza constitutiva e não declaratória.
O § 3º do art. 159 da lei 11.101/2005 dispõe que o juiz proferirá sentença que “declare extintas todas as obrigações do falido, inclusive as de natureza trabalhista”, sem fazer referência expressa ao crédito tributário. Mas a referência apenas ao crédito trabalhista não é suficiente para concluir que a declaração de extinção das obrigações do falido não abrangeria as de natureza tributária, pois o fundamento para a extinção do crédito tributário estaria caracterizado pela sentença de extinção das obrigações passada em julgado, como prevê o art. 156 inciso X do CTN.
Conclusão
A lei 14.112/2020 simplificou significativamente o instituto da extinção das obrigações do falido, não se podendo deixar de reconhecer que o novo regramento tem a mesma preocupação do sistema denominado fresh start, no sentido de facilitar um recomeço para o devedor, que se liberta das restrições impostas pela falência, livre para voltar a empreender.
O grande desafio seria a extinção das obrigações tributárias, cuja solução deve passar necessariamente pelos dispositivos do CTN, uma vez que cabe à lei complementar, e não à lei ordinária, dispor sobre normas gerais de direito tributário. Nessa linha de raciocínio, é razoável concluir que a aplicação do art. 156, X, do CTN ao encerramento da falência é a interpretação que melhor harmoniza a lei ordinária à lei complementar.
Assim interpretadas sistematicamente as normas do § 3º do art. 159 da lei 11.101/2005, com a redação dada pela lei 14.112/2020 e do art. 156, X, do CTN, conclui-se que a sentença, ao declarar extintas as obrigações do falido, extinguirá todas as suas obrigações, inclusive as de natureza tributária.
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NOTAS
1 “RECURSO ESPECIAL. EMPRESARIAL. FALÊNCIA. AÇÃO DECLARATÓRIA DE EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES DO FALIDO (DL 7.661/45, ART. 135, III). DECURSO DO PRAZO PRESCRICIONAL DE CINCO ANOS. TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA DE ENCERRAMENTO DA FALÊNCIA. AUSÊNCIA DE PRÁTICA DE CRIME FALIMENTAR. PROVA DE QUITAÇÃO DOS TRIBUTOS FISCAIS (CTN, ARTS. 187 E 191). RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. A declaração de extinção das obrigações do falido poderá referir-se somente às obrigações que foram habilitadas ou consideradas no processo falimentar, não tendo, nessa hipótese, o falido a necessidade de apresentar a quitação dos créditos fiscais para conseguir o reconhecimento da extinção daquelas suas obrigações, em menor extensão, sem repercussão no campo tributário. 2. Sendo o art. 187 do Código Tributário Nacional – CTN taxativo ao dispor que a cobrança judicial do crédito tributário não está sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento, e não prevendo o CTN ser a falência uma das causas de suspensão da prescrição do crédito tributário (art. 151), não há como se deixar de inferir que o crédito fiscal não se sujeita aos efeitos da falência. 3. Desse modo, o pedido de extinção das obrigações do falido poderá ser deferido: I) em maior abrangência, quando satisfeitos os requisitos da Lei Falimentar e também os do art. 191 do CTN, mediante a “prova de quitação de todos os tributos”; ou II) em menor extensão, quando atendidos apenas os requisitos da Lei Falimentar, mas sem a prova de quitação de todos os tributos, caso em que as obrigações tributárias não serão alcançadas pelo deferimento do pedido de extinção. 4. Recurso especial parcialmente provido para julgar procedente o pedido de extinção das obrigações do falido, em menor extensão, sem repercussão no campo tributário. (STJ – REsp: 834932 MG 2006/0053594-4, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 25/08/2015, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/10/2015)” e “RECURSO ESPECIAL. FALÊNCIA. DL 7.661/1945. EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES DO FALIDO. DECURSO DO PRAZO DE CINCO ANOS. PROVA DA QUITAÇÃO DE TRIBUTOS. DESNECESSIDADE. 1- Extinção das obrigações do falido requerida em 16/8/2012. Recurso especial interposto em 19/8/2016 e atribuído à Relatora em 26/8/2016. 2- Controvérsia que se cinge em definir se a decretação da extinção das obrigações do falido prescinde da apresentação de prova da quitação de tributos. 3- No regime do DL 7.661/1945, os créditos tributários não se sujeitam ao concurso de credores instaurado por ocasião da decretação da quebra do devedor (art. 187), de modo que, por decorrência lógica, não apresentam qualquer relevância na fase final do encerramento da falência, na medida em que as obrigações do falido que serão extintas cingem-se unicamente àquelas submetidas ao juízo falimentar. 4- Recurso especial provido. (STJ – REsp: 1426422 RJ 2013/0414746-5, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 28/03/2017, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/03/2017).
Também nesse sentido é a lição de João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli e Rodrigo Tellechea aos examinarem essa questão do crédito tributário e o encerramento da falência (Recuperação de Empresas e Falência. 3ª ed. São Paulo: Almedina, 2018, pp. 996/997).
2 A regra do art. 191 do CTN aplica-se somente aos tributos, e não às multas tributárias, que são obrigações acessórias excluídas do conceito de tributo, conforme dispõe o art. 3º. do CTN: “Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”. (grifo nosso). Aliás, o CTN (art. 186, III) e a Lei nº 11.101/2005 (art. 83, VII), também fazem essa distinção entre tributo e sanção de ato ilícito (multas e penalidades), que têm classificações distintas na falência.