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A falta de transparência de uma legalidade insuficiente

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A falta de transparência de uma legalidade insuficiente

CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL

VALIDADE JURÍDICA

Hugo de Brito Machado Segundo

Hugo de Brito Machado Segundo

27/03/2025

Tem-se cogitado, inclusive na jurisprudência de nossas cortes superiores, uma “legalidade suficiente”, distinta e menos exigente que a “legalidade estrita” de que os tributaristas geralmente tratam.

Seria ela fruto do reconhecimento de que a lei não pode, porque não é factualmente possível, tratar de tudo. Ao prever o antecedente de uma norma jurídica, não há como nele aludir a todos os detalhes da situação que, se e quando ocorrer, desencadeia a incidência e torna devidos os efeitos previstos no consequente normativo.

Dependendo de como seja entendida, a tese é correta e até irrespondível. Por prever apenas uma hipótese, uma descrição de um fato, a norma jamais teria como aludir a todos os detalhes ou elementos deste fato. Como qualquer descrição, deixa-se algo de fora, inevitavelmente.

A questão, verdadeira, reside em saber se este algo, que fica de fora da descrição, é relevante, ou não. E, sendo relevante, e passível de previsão hipotética, se termina sendo previsto não na lei, mas em atos infralegais. Neste caso, a reserva de lei constante do artigo 150, I, da Constituição, e do artigo 97 do Código Tributário Nacional, não permite que a previsão conste de atos diversos e inferiores à lei.

Exemplificando, não é necessário, ou talvez mesmo possível, a lei, ao definir a base de cálculo do imposto de renda, indicar todas as despesas consideradas necessárias, para fins de dedução, na apuração do lucro real. Mas a lei precisa dizer que as que forem necessárias são dedutíveis. Em outro exemplo, no que tange à base de cálculo do IPTU, a lei deve dizer que ela deve ser o valor venal do imóvel, embora saber qual o valor venal, concretamente, dos imóveis de determinado bairro, ou rua, possa ser objeto de previsão em ato do Poder Executivo, ou mesmo em último caso, do próprio aplicador, sujeito naturalmente a contraditório.

Verniz de validade jurídica

Entretanto, como ocorre com outros rótulos, este, o da “legalidade suficiente”, corre o risco de ser usado indevidamente. Tal como o do caráter “relativo” de direitos fundamentais, por exemplo. Ambos se prestam para dar verniz de validade jurídica a atos do poder público que, a rigor, não a possuem. Diante da acusação de que o direito fundamental foi violado, responde-se que na verdade ele não é absoluto e foi apenas relativizado. No caso da legalidade, diante da imputação de ofensa à reserva de lei formal e, por conseguinte, à separação dos poderes, reconhece-se que a lei não cuidou do que se esperava que cuidasse, mas objeta-se que o que nela se acha previsto seria “suficiente”.

O rótulo, contudo, não se presta a isso.

E, aliás, junto com a legalidade, recorde-se que a Constituição exige, explicitamente depois da EC 132/2023, também cooperação, e transparência (artigo 145, §3.º), vetores que devem ser entendidos em sintonia com todo o sistema tributário. Inclusive no trato deste assunto.

Assim, não parecem legítimas tentativas de esvaziar a legalidade que cada vez se tornam mais frequentes, no âmbito tributário em nosso país, seja porque se legaliza menos do que o suficiente, seja porque, para piorar, isso é feito de modo pouco ou nada transparente, opacidade que impede, inclusive, a cooperação.

Cooperação, lembre-se, não significa apenas que o contribuinte “deve cooperar com o Fisco, pagando”. Quer dizer, antes, que todos (daí o “co”) devem “operar” para uma determinada finalidade, que é o cumprimento da lei tributária. Todos, inclusive os agentes públicos, legislativos e executivos, devem convergir esforços para respeitar a ordem jurídica, que tem seu ponto de partida na Constituição, seja na instituição e na cobrança de tributos, seja em qualquer outro aspecto do regramento jurídico da tributação, inclusive no reconhecimento de isenções, anistias, restituições, parcelamentos, e, por que não, no estabelecimento de delegações ao Executivo fundadas no que se considera honestamente ser uma “legalidade suficiente”. Trata-se de algo que precisa ser explícito, não escondido.

Legalidade insuficiente

Cito dois exemplos de legalidade insuficiente e pouco transparente para ilustrar o que se está a aludir.

O primeiro consta da LC 214/2025, diploma que inaugura o disciplinamento legal dos tributos constitucionalmente previstos na reforma tributária (EC 132/2023).

As alíquotas de IBS e CBS aplicáveis ao setor de combustíveis serão, de acordo com a lei, fixadas pelo Poder Executivo (artigo 174). O mesmo se dá com os “serviços financeiros” (artigo 233).

Entretanto, IBS e CBS não estão entre as exceções previstas no artigo 153, §1.º, da Constituição, de tributos que podem ter suas alíquotas alteradas pelo Poder Executivo. A ofensa à legalidade é claríssima. Uma lei, que não trate de II, IE, IPI, IOF ou Cide-Combustíveis, e que não fixe alíquotas, deixando a tarefa ao Executivo, não tem conteúdo suficienteÉ certo que a LC 214/2025 não fixa alíquotas, mas isso porque quem o fará será a lei da União, do estado, do Distrito Federal e do município, dada a natureza “dual” e “compartilhada” do IVA brasileiro. Mas neste caso, se estabelece que será não o Legislativo de cada ente, mas o Executivo. Daí dizer-se que, junto com a legalidade, malfere-se a transparência, pois o texto legal tenta esconder essa delegação, disfarçando-a ao afirmar que as alíquotas serão apenas “divulgadas” pelo Executivo. Veja-se o que dispõem os tais artigos:

Ao usar o termo “divulgadas”, a lei sugere que o Poder Executivo não as fixará. Apenas “divulgará” as alíquotas fixadas por outro órgão, poder ou entidade oculta, que não se sabe qual seria. Está claro que o “divulgadas” visa a evitar a expressão “serão fixadas”, apenas para deixar a inconstitucionalidade menos exposta. Ou seja, além de ofensa à legalidade, tem-se uma cilada, que subtrai a transparência.

Algo semelhante, e aqui vamos ao segundo exemplo, fazem os estados, em matéria de ICMS. Leis estaduais delegam ao Poder Executivo a aptidão para alterar aspectos essenciais da relação tributária, como criar hipóteses de substituição tributária, e suprimi-las, ou de diferimento, de cobrança antecipada, com alteração de aspectos materiais, quantitativos, temporais e subjetivos da regra matriz de incidência tributária. O Supremo Tribunal Federal, apreciando ADI movida (ADI 7.616) contra a lei do Estado do Ceará que assim procede (Lei Estadual 18.665/2023, do Ceará), declarou diversos dispositivos inconstitucionais, inclusive fazendo alusão à tese da “legalidade suficiente”, e reconhecendo que, no caso, ela não socorre a delegação. Constou do voto do ministro Cristiano Zanin:

Sem argumento da legalidade suficiente

O voto foi muitíssimo feliz quando, em sua parte inicial, afastou o argumento da legalidade suficiente como justificativa para a (in)constitucionalidade de artigos que delegavam temas como diferimento, substituição tributária e antecipação tributária para o regulamento. E explicou, com muita propriedade, os motivos disto. Entretanto, com todo o respeito, talvez pela falta de transparência (da lei e de quem defendeu sua validade), talvez os ministros tenham sido induzidos a erro, e por isso deixaram de declarar inconstitucionais, Pelos mesmos fundamentos, outros artigos da mesma lei estadual que permitem a criação de um verdadeiro “simples estadual”, e outros que, pior, permitem ao Executivo criar regimes especiais de tributação, os quais envolvem a modificação de base de cálculo, de alíquota, de momento de incidência e de regime de creditamento. Tudo o que o voto tinha acabado de afirmar indelegável. São especialmente os artigos 100 a 102 da Lei Estadual Cearense 18.665/2023, acima transcritos no próprio trecho do voto reproduzido, proferido na ADI 7.616/CE. Aspectos substancialíssimos da relação tributária. E, pior, por setor da economia, ou individualmentea cada contribuinte, mediante requerimento, a ser negociado em cada caso com o Executivo.

Talvez induzido a erro pelas informações prestadas pelas autoridades responsáveis pela defesa do texto legal na ADI, o STF entendeu que não haveria, aí, alteração de aspectos materiais da regra de tributação, apenas porque o texto legal afirma, de modo meramente retórico (porque é impossível aferir em concreto) que não deve haver alteração da carga. Entretanto, com ou sem alteração do ônus (o que, repita-se, é impossível de determinar na prática), sabe-se que tais regimes especiais implicam, sim, alíquotas, bases de cálculo, sistemáticas de creditamento e momentos de incidência diversos dos previstos em lei. Ou, como a própria lei reconhece, “qualquer tratamento diferenciado em relação às regras gerais de exigência do ICMS”a ser pactuado individualmente por agentes da Fazenda com cada contribuinte.

Provocado pelos declaratórios apresentados diante de tal contradição, talvez o Supremo Tribunal Federal afirme, neste caso, uma vez ciente da natureza do “regime especial” que até então talvez lhe estivesse pouco transparente, que a legalidade, também neste caso, não está “suficiente”.

De qualquer sorte, fica o claro exemplo de uma legalidade que, além de insuficiente, é nada transparente, sendo praticamente impossível, hoje, encontrar o fundamento “normativo” (e não legal, pois são decretos, instruções normativas, e mesmo “termos de acordo”) para todo o disciplinamento jurídico do ICMS aplicável a contribuintes dos mais diversos setores da economia.

Assim como os médicos da antiguidade que, sem compreender plenamente o funcionamento do corpo humano, atribuíam à bile negra a causa de diversos males, hoje se atribui à chamada “legalidade suficiente” uma explicação para praticamente toda delegação em matéria tributária.

A diferença é que, enquanto a teoria dos humores foi superada pela ciência moderna, a ideia de uma legalidade insuficiente e opaca parece ganhar cada vez mais espaço, criando um labirinto jurídico no qual o contribuinte é deixado à mercê de interpretações e decisões que desafiam a transparência e o próprio texto constitucional.

O resultado é uma tributação que, a pretexto de modernidade e flexibilidade, mais se assemelha àquelas antigas práticas médicas: cheia de conjecturas, com doses arbitrárias de remédios jurídicos, e com efeitos colaterais que apenas o tempo revelará.

Fonte: ConJur

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