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Transparência fiscal e reforma da Previdência
Marcus Abraham
19/03/2018
Contas públicas devem possuir três características técnicas
A reforma da previdência é um polêmico assunto que tem frequentado diariamente os noticiários em todo o país, sendo hoje, inegavelmente, um tema de extrema importância para a nossa sociedade, sobretudo se pensarmos na imperiosa busca pela sustentabilidade financeira diante do aumento da expectativa de vida do brasileiro e do ideal ético de equidade intergeracional, pelo qual não se deve impor às gerações futuras um excessivo ônus financeiro da dívida contraída no passado, de maneira que haja uma justa e proporcional distribuição entre diferentes gerações dos benefícios obtidos com a atividade estatal e dos custos para o seu financiamento.
A acalorada discussão decorre do embate de duas posições fundamentais: por um lado, o Governo Federal afirma reiteradamente que a previdência é deficitária, fazendo-se necessária uma urgente reforma; por outro, vozes se levantam dizendo o contrário, a saber, que ela seria superavitária, mas que as receitas que deveriam financiar exclusivamente a previdência acabam sendo utilizadas para custear outras áreas da seguridade social, como saúde e assistência, gerando a conta negativa.
Como sabemos, a Previdência Social é financiada, essencialmente, com recursos das contribuições sobre a folha de salários dos trabalhadores empregados, em que contribuem tanto o empregador quanto o empregado, incluindo-se os servidores públicos. Mas devemos nos indagar por que não se consegue visualizar facilmente a vinculação e a destinação desses recursos para a previdência social.
Sem querer aqui emitir qualquer juízo de valor – político, jurídico ou financeiro – sobre a necessidade ou não de uma reforma da previdência, a Coluna Fiscal deste mês pretende trazer a lume um tema que subjaz a esta celeuma: a falta de transparência fiscal, que impede ao cidadão brasileiro obter informações fidedignas sobre as contas públicas e, no caso específico, sobre os resultados da previdência, de modo a chegar por si só a uma conclusão acerca da necessidade da reforma tal como proposta.
O conceito de transparência fiscal envolve não somente a ampla divulgação das contas públicas, mas, principalmente, que as previsões financeiras e orçamentárias, tanto de receitas, despesas, renúncias ou programas, sejam dispostas de maneira facilmente compreensível para todos, não apenas para o seu executor, mas também para o cidadão interessado e, inclusive, para os órgãos de controle e fiscalização. Pretende, sobretudo, coibir a existência de despesas obscuras ou a inclusão de verbas, programas, projetos ou benefícios fiscais imprecisos ou inexplicáveis que, por falta de clareza ou transparência, possam induzir a erro ou serem manipulados para atender a objetivos diversos dos originalmente previstos e aprovados. Não à toa, o § 6º do art. 165 da Constituição Federal determina que o projeto de lei orçamentária seja acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia.
Devemos registrar que um dos grandes méritos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) foi o de estimular o exercício da cidadania na área financeira, através dos mecanismos de transparência que ela criou e regulamentou. Além de instituir relatórios específicos para a gestão fiscal – Relatório Resumido de Execução Orçamentária, Relatório de Gestão Fiscal e Prestação de Contas – e determinar sua ampla divulgação, inclusive por meios eletrônicos, incentiva a participação popular nas discussões de elaboração das peças orçamentárias e no acompanhamento da execução orçamentária através de audiência pública.
Nesse sentido, o artigo 48-A da LRF (introduzido pela Lei Complementar nº 131/2009) impõe que os entes da Federação disponibilizem a qualquer pessoa física ou jurídica o acesso a informações: I – quanto à despesa: todos os atos praticados pelas unidades gestoras no decorrer da execução da despesa, no momento de sua realização, com a disponibilização mínima dos dados referentes ao número do correspondente processo, ao bem fornecido ou ao serviço prestado, à pessoa física ou jurídica beneficiária do pagamento e, quando for o caso, ao procedimento licitatório realizado; II – quanto à receita: o lançamento e o recebimento de toda a receita das unidades gestoras, inclusive referente a recursos extraordinários.
E, na mesma linha, a recente Lei Complementar nº 159/2017, que instituiu o Regime de Recuperação Fiscal dos Estados e do Distrito Federal, estabeleceu, para orientação na sua aplicação, dentre outros, os princípios da transparência das contas públicas e da confiança nas demonstrações financeiras (§ 1º do art. 1º).
É imprescindível para a materialização da consciência e cidadania fiscal que haja transparência nas relações entre o Estado e o cidadão, especialmente na atividade financeira, devendo oferecer-se maior clareza e abertura tanto na legislação tributária como na elaboração e execução do orçamento. Conhecer os seus direitos e deveres é o mínimo que o cidadão-contribuinte pode e deve exigir do Estado.
O constitucionalista e Ministro do STF Gilmar Mendes nos recorda que a transparência fiscal decorre da própria Constituição, estando vinculada ao ideal de segurança orçamentária. Nas suas palavras, o “princípio da transparência ou clareza foi estabelecido pela Constituição de 1988 como pedra de toque do Direito Financeiro. Poderia ser considerado mesmo um princípio constitucional vinculado à ideia de segurança orçamentária. Nesse sentido, a ideia de transparência possui a importante função de fornecer subsídios para o debate acerca das finanças públicas, o que permite uma maior fiscalização das contas públicas por parte dos órgãos competentes e, mais amplamente, da própria sociedade. A busca pela transparência é também a busca pela legitimidade”. (Comentário ao art. 48 da LRF. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; NASCIMENTO, Carlos Valder do. (Org.). Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 334)
A transparência não se expressa apenas pela quantidade de informações, mas também pela sua qualidade, objetividade, inteligibilidade e, sobretudo, utilidade, não devendo ser encarada apenas sob a ótica do acesso à informação, mas seu conceito deve ser compreendido de maneira abrangente, abarcando outros elementos tais como responsividade, accountability, combate à corrupção, prestação de serviços públicos, confiança, clareza e simplicidade.
Para permitir a compreensão do cidadão, as contas públicas devem possuir as seguintes características técnicas: I – uniformidade ou padronização na apresentação dos seus dados, possibilitando ao usuário realizar comparações e análises; II – clareza na evidenciação do seu conteúdo; III – especificação na classificação e na designação das suas informações, preconizando a identificação de todas as rubricas de receitas e despesas, apresentando-as de maneira analítica e detalhada.
Valendo-nos da clássica noção de pacto social do qual o cidadão é parte, parece-nos inquestionável conceder-lhe o direito de ter amplo acesso às informações essenciais para participar ativamente na gestão das finanças públicas e, por consequência, nas decisões mais relevantes para o país. Afinal, será o cidadão-contribuinte que pagará esta conta.
Fonte: JOTA
Veja também:
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- Indesejável Guerra Fiscal e a LC 160/2017
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