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O erro médico e a responsabilidade civil – parte 2

DANO REPARÁVEL

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

ERRO MÉDICO

INDENIZAÇÃO

RESPONSABILIDADE CIVIL

Humberto Theodoro Júnior

Humberto Theodoro Júnior

13/01/2020

Veja, a seguir, a segunda parte do artigo ‘O erro médico e a responsabilidade civil’, de Humberto Theodoro Júnior. Entenda mais sobre contrato médico, dano reparável, entre outros tópicos:

O contrato médico é de meio e não de resultado: um pressuposto relevante

ZELMO DENARI explica a razão de ser do sistema do CDC relacionado com os serviços médicos e com os serviços dos profissionais liberais, genericamente:

“A diversidade de tratamento em razão da natureza intuitu personae dos serviços prestados por profissionais liberais”, se explica em função de serem eles contratados na base da “confiança que inspiram aos respectivos clientes”[1].

Em função da confiança presente na base de prestação dos serviços médicos, e sem embargo de se tratar de responsabilidade civil subjetiva, a jurisprudência reconhece, com frequência, o dever do médico de cooperar na comprovação da regularidade técnica dos serviços prestados, de modo a deixar demonstrada sua ausência de culpa[2].

É relevante, nessa matéria, a distinção entre contrato de resultado e contrato de meio. Naquele o contratante se obriga a atingir um resultado que se apresenta como a meta a ser alcançada com o cumprimento do contrato, de sorte que não atingido o objetivo visado, configura-se o descumprimento da obrigação contratual. A construtora, por exemplo, se obriga a construir uma casa cujas características se acham especificadas no contrato. Se a casa não for concluída no tempo e modo ajustados ou se não correspondeu às características convencionadas, o descumprimento estará caracterizado acarretando a responsabilidade pela reparação do prejuízo suportado pela parte contratante da obra.

Já no contrato de meio, há um objetivo visado pelas partes, que explica o ajuste, mas o prestador de serviços não se obriga a alcançá-lo efetivamente. Compromete-se apenas a empregar sua técnica e esforço na procura de, se possível, chegar ao referido resultado. Não haverá, portanto, inadimplemento contratual se este se frustrar. Veja-se o exemplo comum dos empregados de loja: os balconistas são contratados para trabalhar oito horas por dia na venda das mercadorias aos clientes. Se estes não aparecem, vendas não terão acontecido, mas nem por isso se poderá pensar em descumprimento do contrato e na ausência do dever do empregador de honrar a prestação salarial ao empregado que permaneceu à disposição da loja durante a jornada comercial.

Há um consenso, atualmente, sobre ser de meio, e não de resultado, a obrigação assumida pelo médico, cabendo-lhe utilizar todos os recursos a seu alcance para buscar o resultado pretendido pelo paciente. Entretanto, se este não é obtido, este fato, por si só, não justifica sua responsabilização, devendo o paciente, diante do insucesso do tratamento, demonstrar a culpa do profissional para fazer jus à indenização cabível.

Em termos práticos: não é a morte do paciente ou falta de cura da doença tratada que faz o médico incorrer na responsabilidade civil (dever de indenizar). Esta só ocorre quando houver falha comprovada no emprego das técnicas necessárias para o adequado tratamento do enfermo.

É cediça a jurisprudência a respeito dessa matéria, como, por exemplo, se pode ver dos seguintes arestos:

  1. “ (…) 2 – A obrigação do médico, em regra, é de meio, isto é, o profissional da saúde assume a obrigação de prestar os seus serviços atuando em conformidade com o estágio de envolvimento de sua ciência, com diligência, prudência e técnicas necessárias, utilizando os recursos de que dispõe – elementos que devem ser analisados, para aferição da culpa, à luz do momento da ação ou omissão tida por danosa, e não do presente –, de modo a proporcionar ao paciente todos os cuidados e aconselhamentos essenciais à obtenção do resultado almejado.
    3 – Portanto, como se trata de obrigação de meio, o resultado final insatisfatório alcançado não configura, por si só, o inadimplemento contratual, pois a finalidade do contrato é a atividade profissional médica, prestada com prudência, técnica e diligência necessárias, devendo, para que exsurja obrigação de indenizar, ser demonstrada a ocorrência de ato, comissivo ou omissivo, caracterizado por erro culpável do médico, assim como do nexo da causalidade entre o dano experimentado pelo paciente e o ato tido por causador do dano”[3].
  2. “ (…) A relação entre médico e paciente é contratual e encerra, de modo geral (salvo cirurgias plásticas embelezadoras), obrigação de meio, sendo imprescindível para a responsabilização do referido profissional a demonstração de culpa e de nexo de causalidade entre a sua conduta e o dano causado, tratando-se de responsabilidade subjetiva”[4].

O dano reparável em função do erro médico

A responsabilidade civil do médico é, em substância, aquela que a lei civil genericamente prevê para o ato ilícito, de maneira que, uma vez constatado o erro técnico no tratamento do paciente, a lesão dele resultante, será toda aquela que o Código Civil preconiza, ocorrível tanto no plano patrimonial como no moral (arts. 186 e 927). Quanto aos danos materiais, o art. 949 dispõe que: “no caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido”[5].

O dano moral, nos termos da legislação atual, sem dúvida alguma, inclui-se na reparação decorrente do ato culposo do médico. Não há, entretanto, regra legal que defina como quantificar o dano extrapatrimonial. Este, portanto, haverá de ser arbitrado equitativamente pelo juiz[6].

Fala-se com frequência numa função da repressão do dano moral de caráter punitivo: a reparação, além de compensar a dor do ofendido, compreenderia uma sanção capaz de desestimular a reiteração da prática ilícita. Citam-se exemplos de indenizações gigantescas aplicadas principalmente pela justiça norte-americana a empresas poderosas, no campo de danos morais de ampla repercussão social. Não se trata, porém, de regra geral, mas de medidas excepcionais que refogem ao plano das meras relações interpessoais. Entre nós, esse tipo de repressão é relegado ao direito penal, e se subordina, por garantia constitucional, tão somente aos delitos descritos em lei, tanto na configuração como na dimensão da pena (CF, art. 5º, XXXIX).

Quando muito se poderia cogitar de ampliar a sanção em caráter punitivo se se tratar de dano moral coletivo, em face da lesão a bem comum evidentemente superior aos interesses privados ordinariamente envolvidos em relações contratuais como aquelas travadas entre médico e paciente.

Como adverte KFOURI, não é isto o que se pode comumente divisar no simples erro médico:

“Temos reiterado que, nos casos de culpa médica, como o profissional em momento nenhum pretendeu, nem de longe, causar dano à vítima, torna-se especialmente inadequada qualquer menção a essa função punitiva do dano moral. Inda mais porque o médico, sempre e sempre, procurará jamais reincidir naquela conduta reconhecida como culposa, causadora do dano. Assim, não haveria razão para se invocar essa finalidade suasória, profilática, pedagógica, ou ‘preço do desestímulo’, na quantificação do dano moral em tais hipóteses”[7].

Indenização pela perda de uma chance

Entre os casos de responsabilidade civil do médico, o direito atual, não sem fortes resistências, vem admitindo a chamada “perda de uma chance”, provocada não por erro no tratamento, mas por não ter proporcionado outros recursos que poderiam, eventualmente, curar o paciente ou lhe dar uma sobrevida maior.

Antes do atual Código Civil, os danos indenizáveis, em geral, incluindo os cometidos contra a saúde, eram casuisticamente enumerados pelos arts. 1.537 a 1.545 pelo Código de 1916, o que servia de pretexto à resistência da jurisprudência a admitir que a perda de uma chance, não prevista na enumeração legal, pudesse ser objeto de indenização. A previsão legal agora é diferente: a exemplo da lei civil francesa, nosso Código de 2002 contém dispositivo específico aplicável aos danos causados à saúde, cujo conteúdo é muito mais amplo e flexível. Veja-se, por exemplo, o teor do art. 949, do Código Civil em vigor:

“No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido” (g.n.).

É justamente a cláusula final do disposto que “ampliando a possibilidade [genérica] de exame da perda da oportunidade de uma chance de cura, em conjunto com os demais princípios e dispositivos”, abre espaço para uma mudança no pensamento dos tribunais, que possa contemplar, entre os casos de falha médica indenizável, o que seja capaz de provocar a “perda de uma chance”[8].

Quem aceitou ou recusou o tratamento que lhe propôs o médico, sem conhecer outros tratamentos possíveis e sujeitos a riscos diferentes, perdeu a chance de uma eventual cura ou sobrevida, caso tivesse oportunidade de se valer dos tratamentos não informados.

Explica KFOURI a teoria a partir da ótica dos tribunais franceses, onde se concebeu a “perte d’une chance”:

“A jurisprudência francesa tem adotado, a partir de 1965, em casos de danos corporais indenizáveis, para proteger a vítima e obviar os inconvenientes na formação da culpa, a teoria da perda de uma chance de sobrevivência ou de cura. O elemento prejudicial que determina a indenização é a perda de uma chance de resultado favorável no tratamento. A reparação, no entanto, não é integral, posto que não se indeniza o prejuízo final, mas sim a chance perdida”[9].

A indenização, na espécie, não se deve a dano causado pelo médico que assistiu o paciente, nem a culpa a ele imputável pelo evento lesivo. A atuação omissiva do profissional teria apenas diminuído a possibilidade de cura desejável[10].

A teoria da perda de uma chance tem sido aplicada pelo STJ, in verbis:

(a) “1. O STJ vem enfrentando diversas hipóteses de responsabilidade civil pela perda de uma chance em sua versão tradicional, na qual o agente frustra à vítima uma oportunidade de ganho. Nessas situações, há certeza quanto ao causador do dano e incerteza quanto à respectiva extensão, o que torna aplicável o critério de ponderação característico da referida teoria para a fixação do montante da indenização a ser fixada” (g.n.).

(b) “2. Nas hipóteses em que se discute erro médico, a incerteza não está no dano experimentado, notadamente nas situações em que a vítima vem a óbito. A incerteza está na participação do médico nesse resultado, à medida que, em princípio, o dano é causado por força da doença, e não pela falha de tratamento” (g.n.).

(c) “3. Conquanto seja viva a controvérsia, sobretudo no direito francês, acerca da aplicabilidade da teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance nas situações de erro médico, é forçoso reconhecer sua aplicabilidade. Basta, nesse sentido, notar que a chance, em si, pode ser considerado um bem autônomo, cuja violação pode dar lugar à indenização de seu equivalente econômico, a exemplo do que se defende no direito americano. Prescinde-se, assim, da difícil sustentação da teoria da causalidade proporcional”.

(d) “4. Admitida a indenização pela chance perdida, o valor do bem deve ser calculado em uma proporção sobre o prejuízo final experimentado pela vítima. A chance, contudo, jamais pode alcançar o valor do bem perdido. É necessária uma redução proporcional”[11].

KFOURI, reportando-se a precedentes jurisprudenciais e lições doutrinárias, ressalta que “na perda de uma chance, indeniza-se a oportunidade perdida, não o prejuízo final. Por isso, é parcial a reparação”. Aduz, ainda, que “IVES CHARTIER (La réparation du préjudice, Paris: Dalloz, 1996, p. 13 e ss) assinala que o dano, na perda de uma chance, é incerto – pois a própria realização da chance jamais seria certa. Mas existe uma certeza, que justifica a indenização: esta chance de obter algo, onde evitar uma perda, que se situa na ordem possível – se não provável – das coisas, não poderá mais se produzir” … No entanto, “a chance perdida deve ser ‘séria’, ou ‘real e séria’. É necessário demonstrar a realidade do prejuízo final, que não pode ser evitado – prejuízo cuja quantificação dependerá do grau de probabilidade de que a chance perdida se realizaria”[12].

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[1] DENARI, Zelmo. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al.Código brasileiro de defesa do consumidor – comentado pelos autores do Anteprojeto. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, v. 1, p. 213.

[2] “Não viola regra sobre a prova o acórdão que, além de aceitar implicitamente o princípio da carga dinâmica da prova, examina o conjunto probatório e conclui pela comprovação da culpa dos réus” (STJ, 4ª T., REsp 69.309/SC, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, ac. 18.06.1996, DJU 26.08.1996, p. 29.688). A propósito da responsabilidade civil por erro médico, assentou o STJ, com base na interpretação sistemática da Constituição Federal e do Código de Defesa do Consumidor, a ampla legitimidade da aplicação ao médico “da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, segundo a qual esse ônus recai sobre quem tiver   melhores   condições   de  produzir  a  prova,  conforme  as circunstâncias  fáticas de cada caso, tudo nos termos de consolidado entendimento  do  STJ” (STJ, 2ª T., REsp 1.667.776/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, ac. 13.06.2017, DJe 01.08.2017).

[3] STJ, 4ª T., REsp 992.821/SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, ac. 14.08.2012, DJe 27.08.2012.

[4] STJ, 3ª T., REsp 1.104.665/RS, Rel. Min. Massami Uyeda, ac. 09.06.2009, DJe 04.08.2009.

[5] “Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu. Parágrafo único. O prejudicado, se preferir, poderá exigir que a indenização seja arbitrada e paga de uma só vez” (CC, art. 950). No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações: I – no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família; II – na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima (CC, art. 948).

[6] “Por não existirem parâmetros preestabelecidos, doutrina e jurisprudência pátrias afirmam que o juiz, ao quantificar o dano moral, valendo-se da sua experiência e bom senso, após sopesar as peculiaridades do caso e a realidade econômica das partes, fixará valor que, sem acarretar enriquecimento sem causa ou a ruína do ofensor, compense o sofrimento do ofendido” (KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 10. ed. São Paulo: Ed. RT, 2019, p. 166).

[7] KFOURI NETO, Miguel. Op. cit., p. 171.

[8] DANTAS, Eduardo. Direito médico. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2009, p. 100

[9] KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 10. Ed. São Paulo: Ed. RT, 2019, p. 83.

[10] “A causalidade resulta, então, fácil de estabelecer, pois, como disse PENNEAU, já não se trata tanto de demonstrar que tal culpa causou tal prejuízo, mas sim de afirmar que sem a culpa o dano não teria ocorrido. Em síntese, admite-se que a culpa do médico comprometeu as chances de vida e a integridade do paciente. Pouco importa que o juiz não esteja convencido de que a culpa causou o dano. É suficiente uma dúvida. Os tribunais podem admitir a relação de causalidade entre culpa e dano, pois que a culpa é precisamente não ter dado todas as oportunidades (“chances”) ao doente. Milita uma presunção de culpa contra o médico” (KFOURI NETO, Miguel. Op. cit., p. 83; PENNEAU, Jean. La responsabilité medicale. Apud KFOURI NETO. Op. cit., loc cit.). Nesse sentido: TJSP, Ap. 1004897-60.2014.8.26.0100, Rel. Des. J. L. Mônaco da Silva, ac. 22.03.2017, in KFOURI, op. cit., loc. cit.

[11] STJ, 3ª T., Resp 1.254.141/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, ac. 04.12.2012, DJe 20.02.2013. O caso apreciado pelo acórdão refere-se ao tratamento de doença neoplástica em que o médico “optou por oferecer um tratamento em que a chance de êxito ficou diminuída”. O STJ, ao aplicar a teoria da “perda de uma chance” deu provimento ao recurso especial para reduzir em 20% a indenização fixada pela justiça do Estado do Paraná.

[12] KFOURI NETO. Op, cit., p. 84-85. No mesmo sentido: SEVERO, Sérgio. Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 13-14.


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