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Uma Pergunta que não Quer Calar: Quando uma Lei (não) é Clara?
Lenio Streck
06/09/2018
A presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministra Laurita Vaz, deveria explicar, claramente, o que é clareza da lei; e por que a clareza do artigo 147 obnubila a clareza do artigo 105, da Lei de Execução Penal?
O presente texto tem a pretensão de auxiliar na discussão acerca da interpretação do Direito nos tribunais. Trata-se de uma espécie de amicus curiae epistêmico da Corte.
Venho colocando, de há muito, minha preocupação com o que se pode chamar de livre interpretação do Direito. Para um exemplo recente, vejam minha coluna (vale a pena reler) ainda deste ano: um professor dizia que uma interpretação literal do artigo 5º da CF levava à impunidade (presunção da inocência), uma vez que a literalidade do dispositivo não permitiria a prisão; ocorre que, na mesma semana, um juiz criticava-me dizendo que a literalidade do artigo era justamente o que autorizaria a execução provisória da pena! Como dormir com esse barulho epistêmico?
É o poder redefinitório contra o qual nos alertava Warat: para flexibilizar garantias, duas perspectivas antagônicas. O inusitado é que os dois (o professor e o juiz) — com pompa e circunstância — diziam fazer interpretação literal, só que cada um redefiniu a literalidade ao seu bel prazer. Literalidade ad hoc! Mas, já que virou moda dizer qualquer coisa mesmo, ambos acabaram por… defender a mesma coisa. Bingo!
Pois bem. Trago isso em virtude da decisão prolatada pela ilustrada ministra Laurita Vaz, do STJ, que reformou — diga-se, corretamente — decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina na ocasião do HC 431.242, em que fixou entendimento de que se exige o trânsito em julgado para execução de penas restritivas de direito, com base no artigo 147 da LEP. Afirmou a ministra que o entendimento mantido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 152.752 (o “HC do Lula”) restringe-se apenas à execução antecipada de penas restritivas de liberdade.
Pois é. A ministra acertou… mas errou. Explico: O que o TJ-SC fez foi usar da exceção criada pelo STF para criar uma nova exceção — só que, dessa vez ao artigo 147 da LEP, estendendo o entendimento da prisão após decisão em segunda instância também para as penas restritivas de direito. Foi necessário, então, a ministra do STJ intervir. Precisou que ela dissesse o óbvio. Afinal, como bem diz a ministra, “o dispositivo é claro”. Só que aí não termina o problema. Começa!
Sigo. Correto. Concordo com Sua Excelência: os textos legais têm valor. E muito valor. Vivemos em uma democracia; goste-se ou não, aplica-se a LEP e ponto final. Ou não? Será mesmo?
Aí é que mora o perigo. Pergunto à ministra Laurita, que gosta, como eu, que-os-textos-claros-sejam-aplicados-de-forma-clara: — O que aconteceu com o artigo 105 da mesma lei, que diz: “transitando em julgado a sentença que-aplicar-pena-privativa-de-liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução”? Vou dizer de novo o que diz o artigo 105: transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade… Qual é a parte que não é clara? E, concessa vênia, qual é a palavra obscura?
O STF, desde o HC 126.292/SP, de 16/2/2016, entendeu que não fere o princípio da presunção de inocência a execução antecipada da pena, após o término dos recursos ordinários, em segundo grau. Em outras palavras: é POSSÍVEL prender. Mas não determinou: “é obrigatório prender!” (há só dois votos no STF que dizem isso — eu já mostrei isso tantas vezes!). Daí, aliás, a flagrante inconstitucionalidade da sumula 122 do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, matéria que o STF insiste em não colocar em pauta com as ADCs 43, 44 e 54.
Uma coisa óbvia: para prender automaticamente, só se fosse expungido da LEP o artigo 105, assim como eliminado o artigo 283 do CPP, como expus na petição da ADC 44 (o ministro Celso de Mello trata desses dois dispositivos magnificamente no seu voto na liminar das ADCs 43 e 44).
Assim, se até agora não se declarou a inconstitucionalidade (não recepção) do artigo 105 da LEP e a ministra Laurita disse, corretamente, que o artigo 147 da mesma Lei é claro (e constitucional), a pergunta que fica é: de que modo a ministra sai desse imbróglio hermenêutico? Um é claro e o outro é escuro?
Uma pergunta clara: A clareza do artigo 147 seria a obscuridade do 105? Seria o artigo 105 The Dark Side of de Law? O artigo 283 do CPP também é claro; no entanto, prende-se automaticamente — já no segundo grau — quando a pena é privativa de liberdade. Mas, como ficam as penas restritivas de direito?
Repergunto: Por que, em um caso, devemos respeitar a letra da lei e, em outro, está permitido ir totalmente contra ela? Por que, para prisão (o mais), o segundo grau esgota a matéria de fato e, para pena restritiva (que é o menos), a matéria de fato depende de apreciação de STJ ou STF? Se me responderem isso, I rest my case. Ainda: e se fosse o contrário? Se a clareza estivesse no artigo 105, isso obnubilaria o artigo 147?
Afinal, por que a lei-que-é-clara nem sempre é clara? Por que a literalidade — que, por sua vez, também é literal — só serve às vezes?
Sigo. O que parece não perceberem aqueles que defendem essa livre atribuição de sentido do Poder Judiciário ao texto legal — e afirmo isso com toda a lhaneza e com intuito de colaborar com a Corte — é que essa é mais uma tese autofágica.
Ora, se em determinado momento a lei é clara e em outro não é, se por vezes o texto vale e por vezes não vale, também a decisão ou “precedente” [sic] — que também são textos a serem interpretados — pode valer ou não valer.
Isoladamente, concordo com a decisão da ministra Laurita. Sou garantista. Mas fazendo as vezes de advogado do diabo, pergunto: e se eu, na condição de juiz de primeiro grau, interpretar esse “precedente” do STJ e disser que a decisão não é literal? Ou que sua autêntica literalidade exige que o réu perca os direitos?
Como afirmei, considero que a decisão da ministra ao conceder o HC está correta. Sem dúvida, temos de garantir a presunção da inocência de quem pratica improbidade administrativa, isto é, só-vale-a-decisão-depois-de-transitar-em-julgado. A regra é clara! Mas isso me permite afirmar que temos de garantir, também, nos casos de prisão — que é o mais em relação à restrição de direitos — que a inocência seja presumida até-que-a-sentença-tenha-transitado-em-julgado, conforme os exatos termos (claros) do artigo 105, verbis:
Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução.
Ministra: se eu fosse um positivista do século XIX (portanto, um textualista), diria: In claris cessat interpretatio. Como, aliás, consta em no mínimo 40 referências a este adágio no próprio STJ. Mas, como não sou, apenas digo: na democracia, os textos nos dizem algo. E a Constituição nos ajuda a lhes dar sentido. Vamos ouvir os textos. Para que um dia não revidem, como já nos disse o grande Friedrich Müller: Die texten können zurück schlagen.
De todo modo, sou um otimista, ainda que um otimista metodológico: é como se um dia isso aqui possa vir a dar certo e que os textos claros sejam compreendidos como claros.
Como dizia meu professor Ricardo Cristoficz, do coleginho em que cursei o primário lá na Várzea do Agudo, terra do dinossauro mais antigo do mundo (foi encontrado a apenas 4 quilômetros da casa de minha mãe), “tudo tão claro como colocar água em cima”.
Fonte: Conjur
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