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Terrorismo: o modelo incriminador brasileiro
14/02/2022
Neste artigo, Luiz Regis Prado e Gerson Faustino Rosa discorrem sobre a definição de terrorismo pela lei brasileira e destacam os contornos dessa conceituação. Leia!
Luiz Regis Prado[1]
Gerson Faustino Rosa[2]
Terrorismo: o modelo incriminador brasileiro
Indubitavelmente, os atos de terrorismo notabilizam os episódios de massiva gravidade, pelo que a maioria dos Estados têm se unido na busca de soluções de diversas ordens. Na seara jurídica, inúmeros documentos internacionais têm sido elaborados e variegados instrumentos normativos buscam definir a conduta terrorista.
No Brasil, no intuito de cumprir a prescrição constitucional, o legislador ordinário elabora, açodadamente e com preocupação político-ideológica, a Lei nº 13.260/2016. Nesta, disciplina-se a matéria, inclusive com disposições investigatórias e processuais, e se reformula o conceito de organização terrorista.
A tarefa de conceituar o terrorismo juridicamente é muito tormentosa, seja pela complexidade e pela carga pejorativa que a dicção encerra, seja por suas incontáveis formas de manifestação.
Daí a imprescindibilidade de se delinear as rubricas essenciais para a criação de um modelo legal de crime de terrorismo, de maneira a pressupor-se, inexoravelmente, conceito jurídico-penal de terrorismo apropriado.
Por razões históricas, o terrorismo se relaciona, em boa medida, a movimentos reativos que propugnavam pela libertação de grupos oprimidos[3]. Sempre no intuito de transformação da ordem vigente – fala-se em: objetivo político – atenta-se contra pessoas inocentes, levando a cabo atos de violência por questões de natureza puramente política, e/ou político-social, e/ou político-religiosa[4].
A revogada Lei nº 7.170/1983 (Lei de Segurança Nacional) previa em seu art. 20 a conduta de “praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas”. Nota-se que o legislador da época fazia referência a fatos já definidos juridicamente seguidos da expressão atos de terrorismoque, entretanto, não tinha conceito jurídico-penal estabelecido até o surgimento da Lei nº 13.260/2016.
Por sua vez, a Constituição Federal de 1988 estatui no inciso XLIII do art. 5.º, que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos”, estabelecendo que sejam responsabilizados não somente seus mandantes e executores, mas também, aqueles que podendo evitá-los, se omitirem. Assinala-se, ante a necessidade de proteção jurídico-penal, a obrigação vazada no texto constitucional de se buscar a incriminação do ato de terrorismo.[5]
Vê-se que o constituinte empresta a mais alta gravidade aos delitos enquadrados no comando incriminador do presente dispositivo, tomando-os como condutas de insuperável danosidade social, situadas no topo de todo o sistema jurídico-penal.
Atribui-se ao terrorismo o status de crime hediondo, resultando na aplicação de um microssistema autônomo, de origem constitucional, situado ao lado do sistema penal geral formulado pelo legislador ordinário.
Além de determinar a criminalização e a hediondez do terrorismo, o legislador constituinte recorre aos sistemas penal e processual penal pré-existentes para deles importar regras restritivas que, necessariamente deveriam acompanhar o processo criminalizador, vedando expressamente a aplicação de causas excludentes de punibilidade como a graça e a anistia, proibindo a concessão de fiança e determinando a responsabilização, além de seus mandantes e executores, dos que se omitirem ante a possibilidade de evitar[6].
Delito de terrorismo: estrutura típica
Transcorridas mais de duas décadas da promulgação da Constituição, em 16 de março de 2016 entra em vigor a Lei n.º 13.260/2016 (Lei Antiterrorismo), que regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5.º da Constituição Federal, e acaba por finalmente disciplinar a matéria (art. 1.º).
A tutela jurídica recai sobre a pessoa, o patrimônio, a paz pública e a incolumidade pública quando expostos a perigo com a realização de qualquer das condutas típicas descritas no parágrafo primeiro. Desde logo se vislumbra a pluriofensividade do delito de terrorismo, que visa à proteção de vários bens jurídicos. Vale destacar que o perigo é exigência do próprio dispositivo legal, que somente se consuma com a exposição a perigo dos bens jurídicos elencados no caput do art. 2.º, in fine.
O autor do delito de terrorismo pode ser qualquer pessoa, admitindo-se sua realização por um ou mais agentes. A sujeição passiva, por sua vez, compõe-se de vítimas imediatas e mediatas. Levando em conta os objetos da tutela penal, são sujeitos imediatos as vítimas da violência direta perpetrada contra bens individuais (por exemplo, vida, integridade corporal, liberdade, patrimônio); e mediato, a coletividade, titular da paz e da incolumidade públicas.
De conformidade com a conduta típica prevista no art. 2.º, § 1.º, I, IV e V, configuram atos de terrorismo: I – usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa; IV – sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento; V – atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa (tipo misto alternativo, de ação múltipla e conteúdo variado).
No entanto, antes de dizer quais condutas se subsomem ao conceito legal de atos de terrorismo insculpido no § 1.º, o legislador exige que um ou mais indivíduos realizem tais atos “por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião” (art. 2.º, caput). Requer-se um agir impulsionado pelas razões expressamente arroladas – circunstâncias que preexistem à realização da conduta delitiva: a xenofobia, a discriminação e o preconceito são os motivos de agir cuja natureza jurídica é de elemento normativodo tipo[7].
O elemento subjetivo geral da conduta terrorista (ação final) é o dolo, consubstanciado na consciência e vontade de realização dos elementos objetivos do tipo de injusto doloso. Mas além do elemento subjetivo geral do injusto, faz-se necessário que o autor do ato de terrorismo aja “com a finalidade de provocar terror social ou generalizado” – elemento subjetivo especial do tipo, vide art. 2.º caput, da Lei n.º 13.260/2016 (delito de intenção).[8] Há ainda, outro elemento que é inerente a todo ato terrorista, qual seja, o objetivo de pressionar o governo acerca de alguma reivindicação ou descontentamento político (finalidade política). Exige-se uma determinada tendência subjetiva na realização da conduta típica, perfazendo-se necessário que o autor do ato de terrorismo impregne sua conduta do significado desaprovado.
A finalidade primeira do ato terrorista é a de provocar o terror social ou generalizado, mas essa finalidade não se confunde com a finalidade última do atentado, que é sempre política. Eis o que nos permite diferenciar o terrorismo de outros delitos comuns, ainda que o resultado seja o mesmo[9].
Já o art. 2.º, § 2.º exclui do âmbito de incidência do presente delito a prática de qualquer dos atos de terrorismo definidos pelo § 1.º, do art. 2.º, quando perpetrados nas circunstâncias determinadas e com objetivos congruentes. São hipóteses em que à vontade de realização da conduta típica descrita no § 1.º, do art. 2.º, se agrega outro elemento subjetivo do injusto – “objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais” -, diverso daquele insculpido no caput – “fim de causar terror social ou generalizado”, pelo que se exclui do âmbito de incidência do tipo, um ato de terrorismo praticado “em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional”, quando direcionados por “propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais”.
Com isso, evidencia-se sua natureza jurídica de causa excludente de tipicidade, por faltar-lhe o elemento subjetivo do injusto inerente ao terrorismo. Em tais casos, a conduta poderá se subsumir a outro tipo penal, mas não ao art. 2.º da Lei Antiterrorismo.
Comina-se ao delito de terrorismo, pena de “reclusão, de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência”. A ação penal, em todo caso, será pública incondicionada. A competência é da Justiça Comum Federal (art. 11).
Diante da malfadada legislação (Lei nº 13.260/2016), eivada de defeitos técnicos, resta pugnar por sua imediata revogação e, buscar construir nova definição jurídico-penal do delito de terrorismo, agora inserto no Código Penal brasileiro.
Além do que, não anda bem o legislador ao estabelecer longo e diversificado catálogo de condutas delitivas no delito de terrorismo, conforme se observa no § 1.º, I, IV e V, do art. 2.º. Não só em razão da opção pelo critério misto (objetivo-subjetivo) na definição legal, como também em virtude do excesso de antecipação da intervenção punitiva, empregando-se termos vagos e imprecisos seguidos de fórmulas casuísticas, ampliando-se desmedidamente o alcance do tipo e desrespeitando a necessária descrição clara e taxativa das condutas.
Demais disso, a exigência legal de elementos normativos como motivos determinantes para o cometimento do delito (v.g. art. 2.º, caput, parte inicial, da Lei n.º 13.260/2016), além de múltiplos elementos subjetivos do injusto (v.g. art. 2.º, caput, in fine, da Lei n.º 13.260/2016), dificultam demasiadamente, quando não inviabilizam, o enquadramento típico. Assim, para diferenciar, objetivamente, a conduta terrorista, deve o legislador brasileiro consagrar dois elementos subjetivos do injusto (causar terror e matiz político).
O mais adequado seria utilizar-se, não de uma construção delitiva autônoma, senão de uma causa de aumento de pena genérica e mista, que influiria diretamente na magnitude do injusto (em razão do terror), e na medida de culpabilidade (finalidade de ordem política).
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NOTAS
[1] Professor Titular de Direito Penal.
[2] Doutor em Direito (FADISP).
[3] LAURENS, Henry. Le terrorisme comme phénomène ou personnage historique. Canal Académie. Paris, 2008, p. 1-3, out. 2008.
[4] DAVID, Eric. Le terrorisme en Droit International (définition, incrimination, répression). In : FERENCZ, Benjamin. Réflexións sur la définition et la répression du terrorisme. Acte du colloque du 19 et 20 mars et 1973. Bruxelles: Université de Bruxelles, 1974, p. 127.
[5] PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 43.
[6] É de bom alvitre destacar aqui (levando em conta o aspecto ôntico-substancial de relevância jurídica inerente à natureza normativa do objeto de proteção, e em defesa de um conceito material de delito, gizado a partir dos ditames jurídico-constitucionais), que “a imposição ao legislador ordinário pela Constituição de um dever de criminalização de condutas contra determinados bens jurídicos, não retira daquele a sua liberdade seletiva quanto à necessidade de criminalização” (Ibidem,, p. 103).
[7] Importa não confundir fim (finalidade de ação – elemento subjetivo do injusto) com motivo de agir (elemento normativo), como muitas vezes acontece.
[8] Disposição similar pode ser verificada no Código Penal espanhol (art. 573).
[9] ASUA BATARRITA, Adela. Concepto jurídico de terrorismo y elementos subjetivos de finalidad. Fines políticos últimos y fines de terror instrumental. In: ECHANO BASALDUA, Javier (Coord.). Estudios Jurídicos en memoria de José María Lidón. Bilbao: Universidad de Deusto, 2002, p. 65.