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A Rescisão de Joesley: O Primeiro Erro da Delação Premiada

DELAÇÃO PREMIADA

JOESLEY BATISTA

LAVA JATO

LEADING CASE

LULA

MPF

PERDÃO DO PREDICATIVO

Víctor Gabriel Rodríguez

Víctor Gabriel Rodríguez

01/08/2018

A delação premiada causa mudanças estruturais no sistema punitivo, que estão tardando a serem assimiladas. Tenho alertado para algumas delas, que os fatos confirmam fatalmente: no caso Joesley Batista, um erro de estratégia da acusação demonstra a recusa em aceitar o caráter bilateral do instituto; no do ex-presidente Lula, a defesa que resiste a antecipar-se às consequências nefastas do delator.

Seria possível cuidar do tema de modo abstrato e ainda assim manter o foco na delação, mas isso significaria desperdiçar a potente experiência que a condução da “lava jato” tem passado às nações. Transformada em paradigma, os comentários a ela assumem um caráter generalizante, no que se denomina leading case. Problema é que essa personificação demanda ao comentarista comprovar minimamente uma isenção do fato concreto, dado o sem-número de juristas envolvidos, de parte a outra, nos trabalhos da operação. De minha parte, tento comprovar neutralidade, para o caso Joesley, por dois motivos: (i) porque não advogo para qualquer parte envolvida: como dizem meus detratores, eu não trabalho, apenas dou aula (oh, céus); (ii) porque sou um crítico do enorme desvio ético da delação premiada, o que me inclina a jamais defender delatores, como os irmãos Batista. De modo parelho, no caso do ex-presidente Lula: não sou o maior entusiasta de sua figura e, menos ainda, dos desvios de seu governo, mas isso não me impede de vislumbrar questões relevantes de justiça material, que parecem que vêm sendo infringidas.

Neste primeiro texto, cuido especificamente do caso dos irmãos Batista.

A questão inovadora do caso Joesley está nos pedidos de rescisão do acordo de colaboração, que demonstra, em nossa opinião, a recusa da parte acusadora em curvar-se às desvantagens naturais do novo instituto. Em minha hipótese, o MPF, ao dar-se conta dos resultados desastrosos de sua negociação, adota estratégias para não honrar sua parte do ajuste, ou seja, conceder o semiperdão aos gravíssimos crimes cometidos pelo empresário. São as estratégias utilizadas nos pedidos de rescisão do acordo, os quais, ao que se tem notícia pela imprensa, ocorreram em dois momento distintos: num primeiro, ao afirmar que Joesley ocultara haver operado com moeda estrangeira e ações de empresa durante a delação; em momento mais recente, porque teria sido omisso sobre eventual “contratação” de um procurador da República.

Mas sabemos que a delação implica a adoção de uma lógica utilitarista, que há séculos norteia o sistema criminal estadunidense, e que agora importamos sem muita discussão. E o utilitarismo se materializa, aqui, através da tecnicamente chamada barganha, a qual reporta a um prêmio de discutível origem, mas de efeitos muito palpáveis, em especial para o acusado.

Em um universo em equilíbrio, seria desnecessário dizer que tais vantagens resultam em algumas perdas, as quais devem ser calculadas com mais exatidão. Quero dizer que, para além de um mero poder-dever de aplicar a pena a um indivíduo (no caso, o Joesley), o Estado necessariamente abre mão de algo muito mais sensível: seu posto de ente ético por excelência. Afinal, no mero ato de sentar-se à mesa para negociar, o negociante — qualquer negociante — já se rebaixa a ouvir propostas, e então demonstra fraqueza[1]. No caso do acordo de delação, ao se encontrarem para concertar seus termos com o acusado, as autoridades evidenciam querer comprar as provas que não obtiveram com seu labor ortodoxo. E isso, claro, custa um preço em credibilidade, que há de se assumir.

A busca ministerial da rescisão do acordo não nos parece, do modo como configurado e com o perdão do predicativo, tão honesta. Afinal, pode até ser verdade que o empresário Joesley cometia crime de uso de informação privilegiada enquanto travava o acordo, mas dizer que isso tem força para anulá-lo, em atitudes tão esfumadas quanto um insider trading ou uma “consultoria” extraoficial, parece ir além do razoável. Muito mais fácil compreender que o Ministério Público Federal está preso à lógica penal anterior à lei de delação, em ao menos quatro pontos diversos, que ponho à discussão:

(i) primeiro, e mais superficial, que o MPF comunga ainda desse sentimento coletivo de que o delator deve finalizar o acordo com um “sofrimento” evidente, com o suplício de quem recebeu a resposta penal, e jamais com a alegria de quem travara um bom negócio. Mas essa não só é uma subjetividade já superada desde o início da contemporaneidade, com o ocaso da pena-castigo, como também é incompatível com o sistema de barganha: o delator tem o direito, duplamente, “subjetivo” de sentir-se satisfeito com sua compra. Afinal, quem colocara o Direito Penal à venda não fora ele, o delator, senão o nosso legislador;

(ii) segundo, porque o MPF comporta-se como se visse no delator alguém com quem ele pode contar para sempre, para muito além dos estreitos limites do acordo firmado. Como se o “colaborador”, em vez de um cidadão que busca negociar uma vantagem pessoal, fosse aquele apóstolo que, caindo do cavalo, enxerga a luz divina e se converte[2]para sempre ao “bem”. Um romantismo pueril, que o mundo anglo-saxão já superou há tempos.

Nesse sentido, é tragicômico identificar que as entrelinhas do pedido de rescisão do acordo de Joesley trazem a insinuação de que ele atraiçoara a confiança do Estado, como se isso já não fosse esperado. Ou melhor: como se a inclinação à traição não fosse requisito mesmo do posto de delator;

(iii) terceiro, porque, uma vez mais com todo o respeito, o pedido denota que o MPF quer se agarrar a seu posto de dono absoluto da ação penal, como poder público. Claro, segue sendo o dono da ação, mas um dono que ganhou o direito de aliená-la e livremente o exerceu. Portanto, como proprietário, transferiu parte da punição, e o se firmou nesses termos. Pedir ao Judiciário que se lhe traga de volta o direito de punir transferido em contrato, como em uma ação pauliana, demandaria, creio, motivação muito mais forte que essas que a imprensa tem dado a conhecer. Ausentes outros motivos, o pedido de rescisão mais parece uma desapropriação forçada, de quem não quer renunciar à condição de persecutor, embora já se tenha reduzido a parte contratual; e

(iv) quarto, mas talvez mero corolário dos anteriores, que falta à acusação a humildade de reconhecer sua inexperiência na arte da negociação. Antever que não sairia como exatamente a ganhadora de um jogo entre, de um lado, funcionários públicos (como eu) habituados à persecução burocrática e, de outro, um empresário afeito não apenas à negociação, mas à negociação corrupta, era algo nada difícil.

Novamente, anular o negócio apenas por falta de experiência negocial não me parece legítimo, de modo que talvez seja hora de — para o bem da “colaboração” como instituto — deixar Joesley exaurir seus ganhos, sem prejuízo de que responda a ações penais por insider trading ou corrupção, pelas quais ainda não pode ser considerado em culpado (naquela história, meio fora de moda, de presunção de inocência e tal). Ao menos, honrar esse compromisso sinalizaria uma sobriedade institucional bastante desejável no Estado de Direito.

Claro que será o Judiciário quem decidirá o impasse e, para tanto, mais do que considerar que os envolvidos são parciais, terá de entrar no núcleo do que aqui expomos: verá se pretende seguir as regras kantianas do Direito Penal absoluto, ou se reconhecerá a natureza utilitarista da “colaboração”. Se assim o fizer, bem mais fácil que aplique regras do Direito Civil aos pedidos do MPF, definindo a nós, jurisdicionados, quais os limites de informação e lealdade que podem realmente levar à anulação de um contrato. Se decidir pela rescisão, também terá que declarar suas consequências, e isso confronta diretamente com a pretensão ministerial da validade jurídica das provas obtidas em uma colaboração rescindida. Salvo engano deste jejuno em Direito Privado, manter a vantagem a apenas uma das partes é locupletamento ilícito.

A adaptação à nova realidade virá com o tempo, mas não sei quanto. Talvez demore mais que o esperado, talvez fique para uma próxima geração de juízes e acusadores. Mas também com uma nova mentalidade dos próprios defensores, a propósito do ex-presidente Lula. Este que, como homem de Estado, jamais cogitará delatar seus parceiros para vantagem individual. Pessoalmente, creio que é a opção mais honrosa que um indivíduo pode tomar, mas minha condição me reduz a servo e intérprete da lei. Em termos de honra, minha opinião aqui não importa.


[1] É o que chamamos, em trabalho nosso, de “O Estado de Joelhos”. Cf. RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel, Delação Premiada: Limites Éticos ao Estado, RJ: Forense, 2018, pp. 113 e seguintes.
[2] Em outro texto nosso, já chamamos a atenção para o fato de que a Orientação Conjunta 01/2018 do MPF, que versa sobre aplicação da delação premiada, repete por cinco vezes a expressão “boa-fé”, atribuindo-a ao delator. E impõe que o colaborador se comprometa a delatar com “lealdade e boa-fé” (24.5.c).

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