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É Possível Receptação de Coisa Imóvel?
Augusta Diniz
01/11/2024
O art. 180 do Código Penal, em seu caput, criminaliza a conduta de adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro de boa-fé a adquira, receba ou oculte. Como se percebe, o tipo apenas exige que a coisa seja produto de crime, não especificando se deve ser ela móvel ou imóvel.
Nada obstante, a maioria da doutrina defende, nos passos de Nelson Hungria, que o objeto do delito em estudo só pode ser a coisa móvel, pois a receptação pressupõe o deslocamento da res “do poder de quem ilegitimamente a detém para o do receptador, de modo a tornar mais difícil a sua recuperação por quem de direito”1.
Nesse sentido, Celso Delmanto et. all.2 afirmam que: “embora a lei empregue a palavra ‘coisa’, entendemos que não se deve interpretá-la como incluindo os imóveis. A receptação, tanto etimologicamente, como na acepção usual, tem a significação de dar receptáculo, esconder, recolher. Não se compatibiliza, pois, com os bens imóveis”.
Entendimento do STF sobre receptação de coisa imóvel
Esse, aliás, foi o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do RHC 57.710/SP (DJ de 16/05/1980). Nesta oportunidade, o agente tinha sido denunciado por ter comprado imóvel que sabia ser produto de crime, uma vez que fora adquirido por meio de instrumento particular de procuração falsificado. Afastou-se, na oportunidade, o crime por parte do eventual receptador, em razão de a coisa produto de crime que fora por ele adquirida possuir a natureza imóvel.
Para chegar a essa conclusão, o relator, Ministro Moreira Alves baseou-se basicamente na intenção do legislador quando da criminalização da conduta. O ministro, em seu voto, registrou também a posição contráia de Heleno Cláudio Fragoso, para quem:
“a) a lei emprega, apenas, a palavra coisa, sem distinguir, como o faz com referência ao furto e ao roubo, quanto à natureza dela (se móvel ou imóvel); e, na Alemanha (o que se vê também em penalistas suíços), onde o Código Penal alude somente a sanchen (coisas), doutrina e jurisprudência a interpretam como coisas móveis e imóveis;
b) não se percebe o motivo por que a receptação pressuponha o deslocamento do objeto;
c) o significado léxico da palavra é secundário, quando se trata de conceitos normativos; e
d) o imóvel pode ser produto de crime, pois, nesse caso, não só a posse provém do delito, mas o próprio imóvel em sua materialidade”.
Nada obstante, Moreira Alves afastou as objeções postas por Fragoso, em especial a falta de fundamento para que a receptação pressuponha o deslocamento do objeto. É que, com a tipificação da receptação, o legislador, nas linhas do Direito Penal italiano, levou em consideração o fato de a conduta dificultar a recuperação da coisa pelo seu proprietário e, consequentemente, a recomposição do status quo ante, o que ocorre quando a coisa permanece no poder do criminoso anterior.
Ora, os bens imóveis permanecem no mesmo lugar, mudando apenas seu possuidor. Não há, pois, qualquer dificuldade para a sua recuperação quando for o bem produto de crime (como no caso julgado pelo Pretório Excelso). Até porque, no Brasil, o registro imobiliário gera, inclusive em relação ao terceiro de boa-fé, a presunção relativa de domínio, suscetível de desconstituição diante de prova em contrário, em nada se agravando – nas palavras do relator, “a posição do proprietário o fato de a coisa estar registrada em nome do falsário ou de terceiro, de boa ou de má-fé, que tenha adquirido o imóvel de intermediário daquele”.
É que, na Alemanha, onde se interpreta que o objeto material da receptação pode ser bens móveis ou imóveis, há a possibilidade de perpetuação do prejuízo sofrido pela vítima, pois, lá, o registro de imóveis é dominado pelo princípio da fé pública, pelo qual o que está registrado nos livros fundiários goza, em favor do adquirente de boa-fé, de presunção absoluta (iuris et de iure) de verdade. Sendo assim, ainda que o título registrado seja falso, o adquirente de boa-fé se torna proprietário.
Consequência disso, nas palavras do Ministro, é que:
“a atuação de um receptador ou de receptadores sucessivos pode torna impossível a recuperação da coisa, bastando, para isso, que qualquer daqueles a transfira a terceiro de boa-fé, circunstância essa que se facilita pela existência de intermediação do receptador, afastando o ato jurídico da transferência daquele em que se verificou a falsificação. Há, nisso, sem dúvida alguma, pela possibilidade de perpetuação do prejuízo sofrido pela vítima, violação do patrimônio que, quanto à receptação, é o objeto da tutela jurídica”.
A distinção, então, dar-se-ia em face da ratio legis.
Mas não é só. Moreira Alves lembrou ainda que a aceitação de bens imóveis como objeto material do delito de receptação acarretaria uma injusta disparidade entre a punição do delito antecedente (mais grave) e o parasitário (a receptação). Para tanto, citou como exemplo o caso do agente que comete esbulho possessório e posteriormente vende o bem para um terceiro que tem ciência da invasão.
É que o esbulho possessório, conduta tipificada no art. 161, § 1º, inciso II, do Código Penal e que consiste em invadir, com violência a pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas, treno ou edifício alheio, é punido com penas de detenção, de um a seis meses, e multa. Com efeito, não seria justo que o autor do esbulho possessório (que pode, inclusive, ser cometido com violência ou grave ameaça à pessoa) receba sanção bem mais branda do que aquele que comete a posterior receptação (crime punível com penas de reclusão, de um a quatro anos, e multa). Essa, aliás, foi a razão de o legislador ter alterado a pena do delito de receptação, adequando-a para que ela não fosse mais gravosa do que a do furto.
Por fim, o Ministro considerou a redação do então § 4º do art. 180 do Estatuto Repressivo, que aludia a “bens e instalações do patrimônio da União, Estado, Município, etc.”. Nesse diapasão, considerou-se que o termo bens teria sido empregado para as coisas naturalmente móveis, ao passo que instalações diriam respeito aos imóveis mobilizados com a subtração. Em caso de interpretação diversa, no sentido de que instalações seriam coisas imóveis não mobilizadas, ter-se-ia que concluir que bens seriam apenas os móveis ou imóveis mobilizados, sob pena de redundância.
Esse último argumento caiu por terra, pois a Lei n.º 13.531/2017 alterou a redação do parágrafo em estudo (atual § 6º), eliminando o termo instalações de sua disposição. Sobrou, assim, apenas o vocábulo bens, que poderia ser interpretado como móveis ou imóveis, não fossem as ponderações anteriores.
Esse entendimento do Supremo Tribunal Federal é o que vigora até o momento, sendo, inclusive, ratificado pelo Superior Tribunal de Justiça (vide, por exemplo, o HC 545.395/RO).
Portanto, tendo em vista uma interpretação teleológica do art. 180 do Código Penal (e não a redação literal da norma), só as coisas móveis ou mobilizadas podem ser objeto de receptação, não sendo crime, por exemplo, adquirir imóvel em nome de terceiro que não é o verdadeiro proprietário, mas que possui procuração falsificada que lhe atribui amplos poderes para a alienação.
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NOTAS
1 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. vol. VII. 1. ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1955, p. 298.
2 DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DEMALMANTO JÚNIOR, Roberto; DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Código Penal Comentado. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 657.