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Descriminalização das drogas? Entenda o julgamento no STF do RE 635659 (Tema 506)
GEN Jurídico
28/06/2024
Após 9 anos de julgamento, finalmente tivemos uma decisão do STF no Recurso Extraordinário (RE) 635659 com repercussão geral (Tema 506) no STF.
Mas o que exatamente foi decidido pelo STF em relação às drogas?
O Recurso Extraordinário (RE) 635659 discute a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que tipifica como crime o porte de drogas para consumo pessoal e prevê sanções alternativas – como medidas educativas, advertência e prestação de serviços – para a compra, porte, transporte ou guarda de drogas para consumo pessoal.
Estabelece o artigo 28:
“CAPÍTULO III DOS CRIMES E DAS PENAS”
(…)
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
§ 3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
§ 4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 5º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
§ 6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I – admoestação verbal;
II – multa.
§ 7º O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.”
Ao longo dos longos debates sobre essa questão, o Supremo também se debruçou sobre a questão da necessidade de estabelecimento de parâmetros mais objetivos para a diferenciação entre usuário e traficante de drogas.
O julgamento
O julgamento do RE 635659 se iniciou em 19 de agosto de 2015, com voto do Relator Gilmar Mendes dando provimento ao Recurso. Esse voto foi posteriormente ajustado.
Após pedido de vista, o Min. Edson Fachin proferiu seu voto dando provimento parcial ao recurso em 10/09/2015. Nessa data também o Min. Roberto Barroso deu seu voto, reconhecendo a procedência do recurso. O julgamento foi suspenso após pedido de vista do Min. Teori Zavascki.
Foi retomado o julgamento em 02 de agosto de 2023, com o voto do Min. Alexandre de Moraes que acompanhou o voto do relator, Min. Gilmar Mendes divergindo em alguns pontos.
Propôs o Ministro que:
“1. Não tipifica o crime previsto no artigo 28 da Lei nº 11.343/2006 a conduta de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, a substância entorpecente `maconha´, mesmo sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;
2. Nos termos do § 2º do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006, será presumido usuário aquele que adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trazer consigo, uma faixa fixada entre 25,0 a 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmea.”
Em nova sessão, no dia 24/08/2024, o Min. Gilmar Mendes reajustou o seu voto seguindo, os parâmetros sugeridos pelo Min. Alexandre de Moraes.
Já o Min. Cristiano Zanin votou pelo improvimento do recurso, considerando:
“I – É constitucional o art. 28 da Lei nº 11.343; II – Para além dos critérios estabelecidos no parágrafo 2º do art. 28 da Lei nº 11.343, para diferenciar o usuário de maconha do traficante, o Tribunal fixa como parâmetro adicional a quantia de 25 gramas ou 6 plantas fêmeas – tal como sugerido pelo eminente Ministro Luís Roberto Barroso -, para configuração de usuário da substância, com a possibilidade de reclassificação para tráfico mediante fundamentação exauriente das autoridades envolvidas”
Na mesma Sessão votou antecipadamente a Min. Rose Weber, que acompanhou o voto do Relator.
O julgamento foi suspenso novamente pelo pedido de vista do Min. André Mendonça.
Retomado o julgamento em 6 de março de 2024, o Min. Barroso reajustou seu voto, para acompanhar o voto do relator, Min. Gilmar Mendes. O Min. André Mendonça acompanhou o voto do Min. Zanin pela improcedência do Recurso nos seguintes termos:
“I – É constitucional o art. 28 da Lei nº 11.343, de 2006; II – Fica estabelecido o prazo de 180 dias para o Congresso Nacional estabelecer critérios objetivos para diferenciar aquele que porta drogas para consumo pessoal (art. 28 da Lei nº 11.343, de 2006) do traficante de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343, de 2006), parâmetros que não impedirão que, no caso concreto, seja afastada a presunção mediante fundamentação idônea da autoridade competente” e conferindo interpretação conforme a Constituição ao art. 28, § 2º, da Lei nº 11.343/2006, para esclarecer, até que o Congresso Nacional delibere sobre otema, que: I – Será presumido usuário e, portanto, sujeito às consequências jurídicas elencadas pelo art. 28, caput e incisos I, II e III, o indivíduo que estiver em posse de até 10 gramas de maconha; II – Tal presunção poderá ser desconstituída, no caso concreto, com base em fundamentação idônea pela autoridade competente, à luz dos demais parâmetros estabelecidos pelo art. 28, § 2º, da Lei nº 11.343, de 2006
Votou também o Min. Nunes Marques, acompanhando o voto do Min. Zanin pela improcedência e fixando a quantidade de 25g ou 6 plantas fêmeas para a distinção entre consumo pessoal e tráfico.
Na mesma sessão reajustou seu voto o Min. Fachin, que ratificava o seu voto no sentido de acompanhar o Relator relativamente ao dispositivo impugnado, mas considerava que o estabelecimento da quantidade de maconha seria atribuição do Poder Legislativo.
Na sequência, pediu vista antecipada dos autos o Min. Dias Toffoli.
O julgamento foi retomado novamente no dia 20/06/2024, com o voto do Min. Toffoli pelo improvimento do recuso nos termos abaixo:
“a) reconhecer a constitucionalidade do art. 28 da Lei nº 11.343/2006;
b) reconhecer que a aplicação das medidas previstas nos incisos I a III desse dispositivo não acarreta efeitos penais;
c) Fazer apelo aos Poderes Legislativo e Executivo para que, no prazo de 18 meses, formulem e efetivem uma política pública de drogas, conforme previsto no art. 28 da Lei 11.343/06, interinstitucional, multidisciplinar, baseada em evidências científicas, a qual deverá compreender, obrigatoriamente, a regulamentação das medidas previstas nos incisos I a III do art. 28, a fixação de critérios objetivos de diferenciação entre usuário e traficante de cannabis e a formulação de programas voltados ao tratamento e à atenção integral ao usuário e dependentes;
d) Determinar que a política pública referida no item ‘c’ envolva todos os órgãos federais com atuação nas áreas de saúde (Ministério da Saúde e ANVISA), educação (Ministério da Educação e Conselho Nacional de Educação), trabalho e emprego (Ministério do Trabalho e Emprego e Conselho Nacional do Trabalho), segurança pública (Ministério da Justiça e Segurança Pública e Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos), dentre outros cuja temática necessariamente deva permear a política nacional de drogas como condição para a sua efetividade e eficácia;
e) Fazer apelo aos Poderes Legislativo e Executivo para que, com o fito de viabilizar a política pública referida nos itens anteriores, garantam dotações orçamentárias suficientes e a respectiva liberação de valores para cumprimento das medidas previstas no art. 28 e das demais iniciativas voltadas à implementação da política descriminalizante, mediante os devidos ajustes financeiros e orçamentários; e
f) Propor que o Poder Executivo inicie uma campanha permanente de esclarecimento público sobre os malefícios do uso de drogas, tal como foi realizada a bem-sucedida campanha antitabagismo”
O julgamento foi paralisado e retomado novamente em 25/06/2024 com voto do Min. Fux, pelo improvimento do recurso.
Na sequência, vota a Min. Cármen Lúcia, que acompanha o voto do Ministro Edson Fachin no sentido do parcial provimento do recurso, declarando a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 28 da Lei nº 11.343/2006, dando interpretação conforme. E, até que sobrevenha a atuação do Legislador, acompanha o voto do Ministro Alexandre de Moraes no tocante ao critério quantitativo.
O Min. André Mendonça reajusta seu voto para aderir ao entendimento do Min. Dias Toffoli quanto aos itens “c” (prazo de 18 meses) e “f” (proposição de campanha sobre os malefícios do uso de droga), deixando de estabelecer uma fixação de quantitativo de droga.
O julgamento finalmente é finalizado no dia 26/06/2024, quando a decisão do Tribunal Pleno do STF sobre a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas e os critérios de diferenciação entre usuário e traficante são estabelecidos.
A decisão
O STF, por maioria dos ministros e nos termos do voto do Relator, apreciando o tema 506 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário, para:
i) declarar a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 28 da Lei 11.343/2006, de modo a afastar do referido dispositivo todo e qualquer efeito de natureza penal, ficando mantidas, no que couberem, até o advento de legislação específica, as medidas ali previstas, vencidos os Ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli e Luiz Fux;
ii) absolver o acusado por atipicidade da conduta, vencidos os Ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques e Luiz Fux.
A tese geral fixada pelo julgamento foi:
“1. Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabissativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (art. 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28, III);
2. As sanções estabelecidas nos incisos I e III do art. 28 da Lei 11.343/06 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta;
3. Em se tratando da posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em Juízo, na forma do regulamento a ser aprovado pelo CNJ. Até que o CNJ delibere a respeito, a competência para julgar as condutas do art. 28 da Lei 11.343/06 será dos Juizados Especiais Criminais, segundo a sistemática atual, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença;
4. Nos termos do § 2º do artigo 28 da Lei 11.343/2006, será presumido usuário quem, para consumo próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito;
5. A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes;
6. Nesses casos, caberá ao Delegado de Polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários;
7. Na hipótese de prisão por quantidades inferiores à fixada no item 4, deverá o juiz, na audiência de custódia, avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio;
8. A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir que a conduta é atípica, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário”.
O Tribunal deliberou, ainda, nos termos do voto do Relator:
1) Determinar ao CNJ, em articulação direta com o Ministério da Saúde, Anvisa, Ministério da Justiça e Segurança Pública, Tribunais e CNMP, a adoção de medidas para permitir (i) o cumprimento da presente decisão pelos juízes, com aplicação das sanções previstas nos incisos I e III do art. 28 da Lei 11.343/06, em procedimento de natureza não penal; (ii) a criação de protocolo próprio para realização de audiências envolvendo usuários dependentes, com encaminhamento do indivíduo vulnerável aos órgãos da rede pública de saúde capacitados a avaliar a gravidade da situação e oferecer tratamento especializado, como os Centros de Atenção Psicossocial de Álcool e Drogas – CAPS AD;
2) Fazer um apelo aos Poderes Legislativo e Executivo para que adotem medidas administrativas e legislativas para aprimorar as políticas públicas de tratamento ao dependente, deslocando o enfoque da atuação estatal do regime puramente repressivo para um modelo multidisciplinar que reconheça a interdependência das atividades de (a) prevenção ao uso de drogas; (b) atenção especializada e reinserção social de dependentes; e (c) repressão da produção não autorizada e do tráfico de drogas;
3) Conclamar os Poderes a avançarem no tema, estabelecendo uma política focada não na estigmatização, mas (i) no engajamento dos usuários, especialmente os dependentes, em um processo de autocuidado contínuo que lhes possibilite compreender os graves danos causados pelo uso de drogas; e (ii) na agenda de prevenção educativa, implementando programas de dissuasão ao consumo de drogas; (iii) na criação de órgãos técnicos na estrutura do Executivo, compostos por especialistas em saúde pública, com atribuição de aplicar aos usuários e dependentes as medidas previstas em lei;
4) Para viabilizar a concretização dessa política pública – especialmente a implementação de programas de dissuasão contra o consumo de drogas e a criação de órgãos especializados no atendimento de usuários – caberá aos Poderes Executivo e Legislativo assegurar dotações orçamentárias suficientes para essa finalidade. Para isso, a União deverá liberar o saldo acumulado do Fundo Nacional Antidrogas (Funad), instituído pela Lei 7.560/86 e gerido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), e se abster de contingenciar os futuros aportes no fundo, recursos que deverão ser utilizados, inclusive, para programas de esclarecimento sobre os malefícios do uso de drogas.
Por fim, a Corte determinou que o CNJ, com a participação das Defensorias Públicas, realize mutirões carcerários para apurar e corrigir prisões decretadas em desacordo com os parâmetros fixados no voto do Relator.