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Carta a um jovem promotor de Justiça Militar
Adriano Alves-Marreiros
20/02/2017
Lembre-se, apesar de tudo que tentam propagar em contrário, a sociedade é a vítima de crimes
O JOTA entrou em contato comigo para escrever esta carta. A primeira ideia que me veio à cabeça foi que devo estar velho, pois só assim seria indicado para tal desígnio. Já vai aí uma dica que poderia estar na carta (não, não é não ficar velho!): tenha senso de humor; mas, pense, antecipe sempre a pior hipótese, se ela vier ou não, você já estará preparado. O humor não é o mal, é ele que torna a vida possível e é ele e a ironia que podem estabelecer bons debates e corrigir muita coisa: “Ridendo castigat mores” [1]. Vejamos, então o que a experiência (claro eufemismo após aquela constatação) permitiria que eu dissesse a você que ingressou há pouco ou ingressará no Ministério Público Militar nos próximos anos.
Em primeiro lugar, lembre que você serve à sociedade, sua lealdade é ao povo. Muitos, ao ingressarem na faculdade de Direito ou em carreiras jurídicas, parecem adotar um estranho rito de passagem consistente em ser necessariamente contra-majoritário para mostrar que não é mais uma pessoa comum: falam até com certo desprezo sobre o senso comum.
Ao ingressar em Coimbra, o aluno pode ostentar uma roupa preta e branca e uma capa para mostrar que cumpriu um importante rito de passagem. Você, agora no MP, passa a usar as vestes talares, elas já são a diferença. Assim, use o senso comum aliado à Lei e à doutrina: o Direito não pode desprezar a realidade. E, mais que tudo, lembre que as vítimas, sempre tão esquecidas, também são importantes: elas são a prioridade.
Muitos gostam de dizer que a Justiça Militar é corporativista. Sim, há casos de corporativismo, mas não creio que mais frequentes que em outras justiças! Todos já vimos decisões que parecem políticas e corporativistas em todas as áreas. Lute, investigue, não desista, convença, não se intimide.
As Forças Armadas são instituições dignas e importantíssimas, mas isso não quer dizer que nelas não haja crimes. Você não deve ser miliquento nem hostil a essas instituições. Respeite-as! Mas deve ser justo: lidar com a Lei e com os fatos. Também não deve ter a postura covarde de só processar os de baixa hierarquia nem a pretensão falsamente heroica de só querer processar “altas patentes”: você combate o CRIME, não importa quem o cometeu.
Não cometa o equívoco de muitos que falam de hierarquia e disciplina sem conhecimento de causa, como se fossem coisas de menor importância diante da liberdade plena que acham que os militares deveriam ter. Desde as declarações do século XVIII, como a do Bom Povo de Virgínia e de Independência dos EUA, se mostra a importância de o braço armado do Estado estar sob o Poder Civil, a ele subordinado.
Hierarquia e disciplina não são meras palavras vagas, são garantias individuais e para a sociedade de que suas forças militares não se voltarão contra o povo e se coibirá, por exemplo, o que que está previsto no art. 5o, inciso XLIV da Constituição… Quebras de hierarquia e disciplina podem provocar isso e já ocorreram recentemente, aqui mesmo, como prova da importância dessas garantias. As diferenças de direitos e deveres dos militares são tão consagradas, que em vários tratados e convenções, assinados pelo Brasil, isso é expressamente previsto, inclusive no Pacto de San José da Costa Rica (art. 16: 2 e 3). Não esqueçam disto ao analisarem cada crime militar, inclusive os de deserção, insubordinação, motim, mas até os impropriamente militares… Existem motivos para haver Códigos e Justiças Militares…
Não abaixe sua cabeça: sempre poderá haver alguém que tente se colocar acima de você por ser mais experiente, por ser mais velho (como eu, que estou escrevendo isto por não mais ser jovem, creio…). Um promotor deve ser altivo porque ele não representa — ele é o MPM! Alguns dirão, “seja sempre humilde”: NÃO! Seja humilde com os humildes e arrogante com os arrogantes. O mundo real funciona assim. Na sua vida pessoal, abaixar a cabeça pode ser uma opção, mas como promotor, deixar que pisem em você significa que a sociedade foi pisada.
Cuidado com as tentações que sempre aparecem quando você quer, com razão, se afirmar como profissional. Afirme-se por meio do correto! Resista à tentação de ser bonzinho, fofo, só para ser aceito, para parecer boa gente no meio acadêmico ou jurídico em geral. Não se pode chamar de filantropia o que fazemos com o direito alheio. Se você já foi militar, resista à tentação de ser o oposto total do militar, só para mostrar que não é mais. Mas resista à tentação de continuar sendo um. Se nunca foi, procure conhecer a essência, a natureza e o cotidiano do múnus militar, para poder considerar tudo isso em suas análises. O mesmo podemos dizer sobre já ter sido defensor ou advogado. Vista a camisa!!! Você não é militar! Você não é nem advogado nem defensor, você é Promotor de Justiça!!!Aja como um!!!
E, acima de tudo, lembre-se, apesar de tudo que tentam propagar em contrário: a sociedade é a VÍTIMA de crimes. O culpado pelo crime é quem o comete: partícipe, autor ou coautor. É ele que se “criminaliza”, ao praticar conduta criminosa. Vá às ruas, converse com as pessoas, pesquise o mundo real e não se afaste da realidade por mais tentador que seja escrever teses mirabolantes e malabarismos jurídicos, que tanto prestígio podem trazer, com a cumplicidade do papel: que aceita qualquer coisa.
Poderia falar mais, deveria ter falado menos, mas, como dizia o personagem da famosa Escolinha: “Foi o que se pôde arrumar”. Outra das tentações é ter a arrogância de dar conselhos com certo ar de autoridade… e nessa eu caí… mas o JOTA é partícipe… O problema do mito da caverna é que todo mundo que o alega, acha que é o cara que fugiu e viu a luz…
Grande abraço,
Fonte: JOTA
[1] Dístico da Commedia dell’Arte, italiana.
Veja também:
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