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Registro de “pacto antenupcial” envolvendo casamento no exterior: Exemplo de casamento na Bélgica
Carlos E. Elias de Oliveira
03/07/2024
O cartório de imóveis deve ou não exigir o registro de pacto antenupcial (ou de instrumento estrangeiro equivalente) no livro 3 no caso de casamentos realizados no exterior, com adoção de regime de bens em consonância com a lei brasileira?
Esse registro é previsto para casamentos brasileiros, conforme art. 1.657 do Código Civil1 e nos arts. 178, V, e 244 da lei 6.015/73 – lei de registros públicos2. A pergunta é: Devemos ou não estender essa exigência para casamentos com elementos de transnacionalidade?
Trataremos dessa questão envolvendo direito internacional privado no presente artigo.
A pergunta envolve questão quotidiana nos cartórios de imóveis. Em conversa com o talentoso registrador de imóveis e professor Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro, tomamos ciência de um caso interessante.
Caso da brasileira casada com um belga
Uma brasileira, casada com um belga na Bélgica, adotou o régime de la séparation de biens pure et simple3, ou seja, um regime de bens previsto na legislação belga que mantém a regra da incomunicabilidade dos bens. Na constância do casamento, ela comprou um imóvel no Brasil.
Ao apresentar a escritura de compra e venda para registro no cartório de imóveis no Brasil, indaga-se: O registrador deveria ou não devolver o título, exigindo previamente o registro do pacto antenupcial ou do instrumento equivalente no livro 3 do cartório de imóveis?
Entendemos a resposta é negativa. Isso, porque entendemos que a exigência de registro de pacto antenupcial no livro 3 do cartório de Imóveis do domicílio do casal é apenas para caso de regimes de bens regidos pela legislação brasileira. Não se aplica para regime de bens regidos pela lei estrangeira.
De fato, no caso de casamento em situações transnacionais, o regime de bens será regido pela lei do primeiro domicílio do casal (se os nubentes tiverem domicílios diversos), conforme art. 7º, § 4º, da LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (decreto-lei 4.657/1942).4
No exemplo em pauta – em que uma brasileira domiciliada no Brasil se casou com um belga -, o primeiro domicílio do casal foi a Bélgica. Logo, o regime de bens a orquestrar esse casamento será o da legislação belga. Daí se se segue que não se pode aplicar a ele regras formais extensíveis apenas a regimes de bens da legislação brasileira, como a exigência de registro de pacto antenupcial no livro 3 do cartório de imóveis do casal.
Aprofundamentos na questão
Cabem alguns aprofundamentos.
Em primeiro lugar, em matéria de Direito Internacional Privado, o ordenamento jurídico brasileiro precisa ser o mais hospitaleiro possível aos particulares, evitando interpretações legais extensivas que criem obstáculos burocráticos à formalização das relações jurídico-privadas transnacionais. Trata-se de uma inferência do princípio da harmonização internacional de direitos, tema que tratamos em outra oportunidade5. Sob essa ótica, adotar uma interpretação extensiva para exigir registro de pacto antenupcial no livro 3 do cartório de imóveis diante de regimes de bens estrangeiros seria burocratizar indevidamente a formalização de relações jurídico-privadas transnacionais.
Em segundo lugar, ao nos depararmos com regimes de bens regidos pela lei estrangeira, é preciso atentar para o fato de que eles não necessariamente guardarão correspondência com os regimes de bens da legislação brasileira.
Trata-se de um problema conhecido no Direito Internacional Privado como adaptação de direitos estrangeiros, tema já tratado anteriormente.6
Em regra, o oficial de registro ou de notas não deve promover nenhum tipo de adaptação de direito estrangeiro. Deve, no lugar disso, buscar sempre referir-se ao regime de bens estrangeiro na sua forma pura com sua expressa indicação dos elementos de transnacionalidade.
No exemplo citado no início deste artigo, o registrador de imóveis deverá remeter-se ao regime de bens pelo nome estrangeiro (ainda que acompanhado de eventual tradução) com indicação expressa do domicílio dos nubentes ao tempo do casamento bem como do primeiro domicílio conjugal, tudo a fim de permitir que o leitor identifique qual legislação será aplicável à luz do art. 7º, § 4º da LINDB. Não necessariamente o régime de la séparation de biens pure et simple previsto na legislação belga é idêntico ao regime da separação convencional de bens do Brasil.
O próprio CNJ já acenou nesse sentido, em situação análoga, ao tratar de registro de união estável com elementos de transnacionalidade. O art. 539, III, do CNN-CNJ – Código Nacional de Normas do CNJ (provimento 149/23 – CNJ) estabelece que o registrador civil das pessoas naturais deve ater-se a indicar os dados essenciais para identificação desses elementos de transnacionalidade, sem promover qualquer tipo de adaptação de direito estrangeiro.7 Esse dispositivo esclarece o § 2º do art. 94-A da LRP.8
Sob essa ótica, não há motivos para se exigir o registro de pacto antenupcial no livro 3 do cartório de imóveis para regimes de bens estrangeiros, especialmente porque sequer se deve, no âmbito extrajudicial, promover nenhum tipo de adaptação de direito estrangeiro (ao menos, em regra).
Em último lugar, a própria exigência de registro da escritura pública de pacto antenupcial no livro 3 do cartório de imóveis de domicílio do casal já não guarda mais aderência à realidade social atual.
De fato, no Brasil, o pacto antenupcial é exigido para a escolha de regime de bens diverso do da comunhão parcial de bens (art. 1.640, CC9).
O objetivo da exigência do registro do pacto antenupcial no cartório de imóveis do domicílio do casal é permitir que terceiros consigam, com mais facilidade, acessar o seu conteúdo. Credores, por exemplo, podem ter interesse em saber o regime de bens adotado pelo devedor, a fim de saber se poderão ou não pleitear a penhora de bens em nome da esposa dele.
A regra fazia muito sentido no Brasil analógico da década de 1970, quando os serviços eletrônicos dos cartórios eram ainda meras ficções. Basta pensar em um casal cujo casamento ocorreu em Porto Alegre/RS, com escolha de um regime de bens atípico mediante escritura pública lavrada em um tabelionato de notas gaúcho. Imagine que esse casal se mude para Rio Branco/AC, mais de 4 mil quilômetros de distância. É fácil perceber o imenso transtorno que um terceiro interessado teria para viajar até Porto Alegre/RS a fim de obter uma certidão da escritura pública de pacto antenupcial. Por isso, a legislação exige o registro do pacto antenupcial no livro 3 do cartório de imóveis do domicílio do casal. No exemplo, o casal gaúcho teria de registrar a escritura pública de pacto antenupcial no registro de imóveis de Rio Branco/AC, de modo a facilitar as buscas do terceiro.
É intuitivo que, no Brasil digital da atualidade, marcado pela digitalização dos serviços notariais e registrais, já não há mais grandes dificuldades para terceiros obterem uma certidão da escritura do pacto antenupcial. Aliás, é nesse sentido que o próprio anteprojeto de reforma do Código Civil, elaborado pela comissão de juristas nomeada pelo presidente do Senado Federal (ATS 11/13)10, propõe a supressão do registro auxiliar do pacto antenupcial.
Seja como for, atualmente, ainda é obrigatório esse registro auxiliar no Brasil. Devemos, porém, interpretar isso apenas para regimes de bens brasileiros, sem adotar interpretações extensivas que venham a prejudicar casos de transnacionalidade.
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NOTAS
1 Art. 1.657. As convenções antenupciais não terão efeito perante terceiros senão depois de registradas, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges.
2 Art. 178 – Registrar-se-ão no Livro nº 3 – Registro Auxiliar: (…) V – as convenções antenupciais; (…) Art. 244 – As escrituras antenupciais serão registradas no livro nº 3 do cartório do domicílio conjugal, sem prejuízo de sua averbação obrigatória no lugar da situação dos imóveis de propriedade do casal, ou dos que forem sendo adquiridos e sujeitos a regime de bens diverso do comum, com a declaração das respectivas cláusulas, para ciência de terceiros.
3 É preciso tomar cuidado, pois os regimes de bens da legislação belga possuem particularidades. Disponível aqui.
4 Art. 7o A lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família.
(….)
§ 4o O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, a do primeiro domicílio conjugal.
(…)
5 Para aprofundamento, ver: OLIVEIRA, Carlos E. Elias de Oliveira. O princípio da harmonização internacional dos direitos reais: fundamento, adaptação de direitos reais estrangeiros, lex rei sitae, numerus clausus e outros desdobramentos. Publicado em 2022. Disponível aqui.
6 Confira-se: OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Adaptação lato sensu de direitos estrangeiros com foco no Direito Privado – Parte I (noções gerais). Disponível aqui.
7 Art. 539. O registro dos títulos de declaração de reconhecimento ou de dissolução da união estável será feito no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que os companheiros têm ou tiveram sua última residência, e dele deverão constar, no mínimo:
(…)
III – caso se trate da hipótese do § 2.º do art. 94-A da Lei n. 6.015, de 1973:
a) a indicação do país em que foi lavrado o título estrangeiro envolvendo união estável com, ao menos, um brasileiro; e
b) a indicação do país em que os companheiros tinham domicílio ao tempo do início da união estável e, no caso de serem diferentes, a indicação do primeiro domicílio convivencial.
8 Art. 94-A. Os registros das sentenças declaratórias de reconhecimento e dissolução, bem como dos termos declaratórios formalizados perante o oficial de registro civil e das escrituras públicas declaratórias e dos distratos que envolvam união estável, serão feitos no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que os companheiros têm ou tiveram sua última residência, e dele deverão constar: (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)
(…)
§ 2º As sentenças estrangeiras de reconhecimento de união estável, os termos extrajudiciais, os instrumentos particulares ou escrituras públicas declaratórias de união estável, bem como os respectivos distratos, lavrados no exterior, nos quais ao menos um dos companheiros seja brasileiro, poderão ser levados a registro no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que qualquer dos companheiros tem ou tenha tido sua última residência no território nacional. (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)
§ 3º Para fins de registro, as sentenças estrangeiras de reconhecimento de união estável, os termos extrajudiciais, os instrumentos particulares ou escrituras públicas declaratórias de união estável, bem como os respectivos distratos, lavrados no exterior, deverão ser devidamente legalizados ou apostilados e acompanhados de tradução juramentada. (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)
9 Art. 1.640. Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial. Parágrafo único. Poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas.
10 Disponível aqui.