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DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS
Lawfare de gênero: o uso do direito como arma de guerra contra as mulheres
Soraia da Rosa Mendes
09/03/2022
A combinação de law (direito) com warfare (guerra) foi inicialmente descrita como a utilização de leis e procedimentos jurídicos para ataque a um inimigo ou para obtenção de resultado ilegítimo, forma de guerra não tradicional promovida por países no âmbito internacional[1]. Um conceito que passou a ser conhecido entre nós, no Brasil, para posicionar em que contexto se davam as arbitrariedades sistemáticas apontadas no caso que envolveu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva[2].
Lawfare no Caso Lula
Naquele caso, como desenharam Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, lawfare tomou o sentido que lhe é próprio de ser o “uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo”. Como exemplo, os autores e a autora referem a flexibilização de regras de competência, denúncias sem materialidade, prisões preventivas em excesso para obtenção de delações premiadas, quebras de sigilo, entre outras estratégias que se tornaram correntes.
Não temos dúvidas de que, tal como originalmente pensada, a partir de casos emblemáticos em outros países e no Brasil, a chamada lawfare, é indispensável e explicativa sobre como a atuação judiciária e a manipulação do uso do Direito coloca-se no cenário da guerra política. Contudo, sem descartar essa construção teórica explicativa da realidade a partir da análise do Caso Lula, nos propomos a revisitar o sentido de “guerra jurídica” para compreendê-la não como algo inovador no processo de perseguição de “inimigos”, mas como uma sistemática de a muito conhecido em outros cenários.
Lawfare contra as mulheres
Queremos, portanto, reposicionar o conceito para lançar luzes sob o lugar onde o Direito sempre foi (e continua sendo) um instrumento de guerra contra as mulheres. Não temos espaço neste artigo para descrever os diferentes mecanismos pelos quais ao longo de séculos (no mínimo) o Direito e atuação judiciária configurou-se como um discurso capaz de impor até mesmo a morte das inimigas[3]. Mas nos interessa aproveitar esta oportunidade para ressaltar que a culpabilização da vítima e o uso de argumentos morais para ataque às mulheres como forma de desqualificação reiterada em processos judiciais sempre foram – repetimos, e são – o cotidiano histórico de perseguição às mulheres.
Infindáveis e sucessivas – ou frívolas – demandas judiciais e administrativas como forma de ameaça, retaliação e controle, são alguns dos exemplos de (ab)usos do direito cujo fim é enfraquecer, diminuir, submeter, empobrecer e violentar mulheres.
Mulheres são alvo quando denunciam a violência que acontece dentro de casa. Assim como também são alvo quando vêm à público denunciar outras formas de violência ocorridas fora do âmbito doméstico. Ou alguém tem dúvida de que as rápidas e difundidas via imprensa ameaças de processos criminais por “denunciação caluniosa” vindas de figuras públicas apontadas em investigações por crimes de assédio ou estupro não configuram um “Cale-se!”?
Sob o manto de deturpados direitos de ação e de defesa – e aqui não vai nenhum ataque a esses direitos em si, mas à d-e-t-u-r-p-a-ç-ã-o deles (!) – a judicializaçãoperseguição assume diversas formas. Desde, como dito acima, ameaças ou efetivas representações por denunciação caluniosa, até interpelações esvaziadas de conteúdo e excesso de linguagem. Nada disso é singular ou pontual em processos que envolvem mulheres. Pelo contrário, são formas de violência processual que precisa ser compreendida e denunciada como parte da violência de gênero estrutural.
Dimensões do lawfare de gênero
A exemplo das dimensões do lawfare em casos envolvendo inimigos políticos[4], também o lawfare de gênero está delineada:
A primeira dimensão está na identificação, um, do lócus (campo de batalha) que, no caso da guerra contra as mulheres, encontra-se com maior intensidade no sistema de justiça criminal, de combate à violência doméstica e de direito das famílias e, dois, do poder de destruição do armamento utilizado.
Na seara criminal as armas recorrentes são, por exemplo, o (ab)uso de interpelações, representações por denunciação caluniosa; na esfera dos direitos das famílias a alegação vaga de alienação parental[5], o inadimplemento de alimentos ou incumprimento das regras de convívio; e, em sede dos juizados de violência doméstica e familiar, a burla a medidas protetivas de urgência com o ingresso de pedidos de guarda compartilhada e outros procedimentos.
Em todos os âmbitos também são armas mediante o ataque à imagem da mulher – demonstrá-la como culpada[6]., “promíscua”, “aproveitadora”; a juntada aos autos de informações embaraçosamente irrelevantes; falsas acusações de transtornos mentais ou abuso de substâncias como forma de culpabilizar vítimas ou de afirmar que a mulher não
estaria apta aos cuidados dos filhos[7].
E, por mais que saibamos que este ponto será motivo de provocação de “suscetibilidades”, é preciso que se diga que outra arma constantemente presente é a contratação de caros e influentes escritórios de advocacia que, não raro, valem-se da atuação de advogadas mulheres – algumas feministas (neo)liberais – como mecanismo de poder simbólico contra as vítimas.
O lawfare de gênero, de modo muito especial, tem um recorte de classe marcante. Dificilmente um homem pobre, negro poderá guerrear neste campo. O que, por outro lado, já não se pode dizer da camada da elite masculina, branca e heterocentrada.
As armas descritas têm altíssimo poder de fogo, posto que têm efeito subterrâneo na subjetividade nos processos, onde é mais fácil encobrir os influxos da moral patriarcal. E, de outro lado, a perda ou fragilização do convívio com os filhos, o reiterado contato – via processo judicial – com abusadores, o “ter de provar” o que acontece entre quatro paredes – que se é “boa mãe”, que documentalmente a violência ocorreu, que há maus tratos aos filhos -, as perdas patrimoniais. Tudo isso, além do medo, temperado com o desigual tratamento a mulheres no judiciário, pelo machismo estrutural, é a munição para todas as armas utilizadas.
Por fim, a terceira dimensão do lawfare de gênero – exposição – parece totalmente fora do sistema de justiça, mas, em verdade, alimenta a litigância abusiva. O uso de redes sociais, o “boca a boca”, a manipulação da informação, as notas plantadas na imprensa têm efeitos nefastos não só na medida em que são transplantados para o interior dos processos, mas também porque minam a rede de apoio, de amizades e colegas das mulheres durante o curso de processos judiciais. A exposição pública é uma maneira de envergonhá-la e isolá-la, enfraquecendo-a psicológica e financeiramente. O efeito deste enfraquecimento “externo” retumba nos processos judiciais-arma.
Em nosso ponto de vista, nomear e identificar a lawfare de gênero denuncia, de um lado, a abusiva exploração do sistema de justiça, por homens, como a continuidade de outras práticas de violência contra mulheres. De outro, também denuncia a cegueira deliberada do sistema de justiça – incluindo-se aqui advogados e órgãos éticos de controle – em relação a esta violência encobertada pela pretensa neutralidade, imparcialidade, abstração[8], possibilidade jurídica do pedido ou validade incondicional dos argumentos de defesa.
O conceito-denúncia de lawfare de gênero traz consigo o potencial político de visibilização da injustiça e de construção conjunta de estratégias para seu enfrentamento, o que já vem sendo feito por movimentos de mulheres afetadas – e suas advogadas.
Façamos dele uma realidade teórica capaz de mudar a práxis judicial brasileira!
Fonte: Agência Patrícia Galvão
Sobre as autoras:
Soraia Mendes é advogada, pós- doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Autora, dentre outras, das obras “Criminologia Feminista: novos paradigmas” e “Processo Penal Feminista”.
Isadora Dourado é advogada, mestranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB).
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[1] ZANIN, Cristiano; MARTINS, Valeska; VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução. Editora Contracorrente, 1ª edição. Ebook.
[2] ZANIN, Cristiano; MARTINS, Valeska; VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução. Editora Contracorrente, 1ª edição. Ebook.
[3] Para um aprofundamento sobre o tema recomendamos a leitura de MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista: novos paradigmas. 2ª. Edição. São Paulo: Saraiva, 2017.
[4] Aqui adaptadas ao lawfare de gênero, as três dimensões do lawfare são descritas por ZANIN, Cristiano; MARTINS, Valeska; VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução. Editora Contracorrente, 1ª edição. Ebook.
[5] Sobre alienação parental: o reconhecimento da possibilidade de utilização de instrumentos da lei como forma de violência contra a mulher se deu não só na CPI dos Maus Tratos, no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça/2021 (p. 96), e em diversos trabalhos científicos. Citações: SENADO FEDERAL. Parecer nº 1/2018 da CPI dos Maus Tratos – 2017 […]. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleggetter/documento?dm=7892940&ts=1549309753527&disposition=inline Acesso em 25/08/2020; MENDES, Josimar Antônio de Alcântara; BUCHER-MALUSCHKE, Julia Sursis Nobre Ferro. Destructive Divorce in the Family Life Cycle and its Implications: Criticisms of Parental Alienation. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília , v. 33, 2017; SOUSA, Analicia Martins de. Alegações de alienação parental: uma revisão sobre a jurisprudência brasileira. In: BORZUK, Cristiane Souza; MARTINS, Rita de Cássia Andrade (org.). Psicologia e processos psicossociais: teoria, pesquisa e extensão. Goiânia: Editora da Imprensa Universitária, 2019, cap. VII, pp. 145-166; SOTTOMAYOR, Maria Clara. Uma análise crítica da síndrome de alienação parental e os riscos da sua utilização nos tribunais de família. Revista Julgar, n. 13, p. 73-107, 2011.
[6] Quanto ao uso de linguagem para ataque as mulheres, destaca-se a proibição do uso da tese da legítima
defesa da honra na ADPF 779/STF.