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FILOSOFIA DO DIREITO
Racismo e judicialização
José Manuel de Sacadura Rocha
09/02/2017
Um olhar sobre a mentalidade nacional a propósito da morte da ex-primeira-dama Marisa Letícia
Desde há muito que as ciências humanistas, os eruditos que se dedicam ao estudo dos direitos humanos, e as instituições internacionais que lutam contra a discriminação social, como a O.N.U. e a Human Rights, procuram diferenciar “discriminação racial” de “racismo”. Os genocídios da Segunda Grande Guerra, e os genocídios que continuam a acontecer, a começar por todos os tipos de discriminação e desigualdade, as guerras e as perseguições, os fanatismos e os interesses dos poderosos, globalizaram o “racismo” muito além do imaginado e das simples perseguições raciais. Entende-se, então, o “racismo” como toda a discriminação e perseguição, de forma abrangente, a minorias, indivíduos ou grupos, que apresentam culturas, crenças, ideologias, comportamentos, escolhas, traços, aspectos, deficiências, escolaridade, comportamentos ou condutas diferentes da maioria ou de um padrão estabelecido como ideal.
Neste sentido, é tão racista aquele que discrimina um negro como aquele que discrimina um nordestino, aquele que discrimina uma mulher, um homossexual, um ateu, como aquele que discrimina um empregado doméstico, uma pessoa menos letrada, um pobre, um estrangeiro, um deficiente, um doente mental ou um apenado pela justiça. Já “discriminação racial” é atribuída à perseguição especifica contra uma “raça”. Portanto, “racismo” designa algo muito mais abrangente.
Existe, contudo, outra diferença, a entre “racismo” e “nazismo”. O “nazismo” vai além do “racismo” porque propõe, diante da diversidade e da diferença, não apenas a intolerância, o ódio, a perseguição, mas a eliminação sumária dos indivíduos considerados “anormais”, quer dizer, todos os que não se enquadram nos padrões físicos, ideológicos e estéticos determinados pelo poder dominante. O “nazismo” apregoa abertamente a execução, práticas de higienização social, executando um programa concebido para eliminar toda a diferença, a doença, a negritude, a pobreza, a escolha de relacionamento, como que a querer limpar de sua visão aquilo que é inexoravelmente a condição humana, sistematicamente, pela eliminação física.
São importantes essas distinções na medida em que, desavisadamente ou por desconhecimento, nos referimos a situações e condutas erroneamente, principalmente não percebendo a gravidade de nossas posições, o que defendemos e o que praticamos. Assim, em minha opinião, por exemplo, a discussão sobre “discriminação racial” é menos abrangente e menos universal do que sobre “racismo”, tomado de forma ampliada, da mesma forma que o termo “nazismo” é mais ampliativo e contundente que “racismo”.
Por outro lado, chamamos de “racismo” aquilo que muitas vezes é “discriminação racial”, mas não falamos com a mesma ênfase da “discriminação contra os nordestinos”, “discriminação contra a mulher”, “discriminação contra o favelado”, “discriminação contra o pobre e iletrado”, a “discriminação contra o homoafetivo”; não colocamos a mesma verve na “discriminação contra o estrangeiro pobre e negro”, na “discriminação contra o culto“ (inclusive os cultos afro), na “discriminação contra a opção política”, a “discriminação contra os apenados” (expostos pela justiça e pela sociedade ao degredo social, ao enxovalhamento público, à degradação prisional, à doença mental e física, colocados em verdadeiros campos de concentração e gulags siberianos). Por quê?
Em minha opinião, confundimos os termos, e esquecemo-nos dos outros tipos de discriminação ou “racismo”, porque é mais fácil falar de algo que está consagrado do que levantar o tapete e ver debaixo da insensatez e hipocrisia social, outras tantas discriminações e perseguições, outros tantos “campos” e degradações a que nos submetemos e submetemos nossos semelhantes e concidadãos, pois isso tudo, diriam muitos, é “polêmico”. Acontece que também existe uma discriminação no Brasil contra o que é polêmico, eu diria que existe um preconceito contra a inteligência e a critica fundada e profícua. Mas para um professor, como eu, cuja profissão exclusiva é a docência, o ambiente é a academia, e o instrumento de trabalho o conhecimento, não existe tempo nem espaço para esquecimentos, insensatez e cinismos. Todo o professor sério sabe que está a construir um país, formando as futuras gerações da Nação! Um País para todos, onde acabe a alienação e a “escravidão” do povo!
Dá para se perguntar: o que estamos querendo esconder/ esquecer?! Falar sempre de “discriminação racial” (como se ela fosse apenas do branco contra o negro, como se a escravidão no Brasil fosse a única mazela e preconceito deste país (e do mundo!), e como o único fenômeno social nacional a merecer reparo social) é no mínimo enganador e revela uma pobreza e restrição de amor a este país e de seu povo. Mas, o pior, creio, é que muitas vezes essa discussão é tão restritiva que acaba por incendiar e incentivar mais ainda esse tipo de preconceito, deixando-se de lado tantas outras mazelas e injustiças cometidas que igualmente não devem ser esquecidas. Se repararmos bem, quando vamos discutir “discriminação racial”, não o “racismo” mais abrangente, escolhemos filmes americanos, de Hollywood, que vão faturar milhões de dólares no mundo inteiro, como se não houvesse outros filmes sobre a mesma temática (por exemplo, “Hotel Rwanda”), e como se por aqui não tivéssemos nossa dramaturgia afinada em denunciar e combater o preconceito e a discriminação (Castro Alves, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Raquel de Queiroz, João Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Patativa do Assaré, Dias Gomes, Plínio Marcos). Fazemos isso reiteradamente: esquecemo-nos de nós reiteradamente!
Obviamente (fiz o parágrafo de propósito!), não se está aqui a negar a escravidão que aconteceu contra os negros em solo pátrio, nem tampouco a se querer esquecer a história, pelo contrário! A história não se lava com água e sabão: o preconceito racial é real e faz parte de nossas relações sociais mais comuns.
Mas existem tantos outros tipos de “escravidão”, infelizmente, a serem retratados, estudados, justiçados. E existem muitas formas de se infligir maus tratos e violência contra os outros: muitas vezes esses maus tratos, ou a omissão disfarçada deles, acabam se voltando contra nós mesmos, a começar por uma vida obtusa, medíocre e sem fé! Por exemplo, seria bom quando se falar de “racismo” ver o que aconteceu nas colônias africanas depois de suas independências, em Ruanda, em Uganda, no Mali, na Etiópia, em Angola, em Moçambique, e ver se a “escravidão” acabou e ver que tipo de “liberdade racista” essas repúblicas, que se dizem “populares”, fizeram e fazem com os opositores ao governo, e o que fizeram com as mulheres, com outras etnias, com os que consideram seus inimigos, com a educação e participação política (http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/11/1706447-ativistas-em-angola-relatam-piora-de-abuso-e-perseguicao-por-governo.shtml; http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/11/1709168-caso-de-prostitutas-faz-tombar-crenca-na-esquerda-superior.shtml ).
Existe um grande problema, eu diria insolúvel, para obtenção de conhecimento humano: normalmente quem acha que sabe muito viveu pouco aquilo que diz que sabe. E estudou pouco! Ou seja, aprendemos sobre os acontecimentos pelo que está escrito, quando não apenas pelo que nos falam e impõem, principalmente quando dos fatos pretéritos, acontecidos. Por isso a História contada é sempre “perigosa”, quem a contou foram os vencedores e a contam a seu jeito, como lhes convém, a justificar atrocidades e falta de caráter. As gerações mais jovens só podem aprender lendo e escutando: como não viveram, acreditam, e quanto mais dogmático for o ensino mais as verdades serão passadas como “sagradas” e por aí vai. Constroem-se mentiras como verdades tendo por base ódios intransponíveis. Precisamos arejar as discussões e colocar nosso intelecto a serviço da paz, da conciliação, da hospitalidade e da amizade. Sobretudo da ética e da honestidade – o que exige, claro, coragem!
Nós, nos grandes centros urbanos, como na cidade de São Paulo, nos orgulhamos de nosso desenvolvimento, mas somos capazes, insensíveis que somos, de acusar uma empregada doméstica, pobre e praticamente iletrada, de não procurar seus direitos na Justiça. Aliás, não toleramos os nordestinos que puderam entre nós ter sucesso! Esta insensibilidade, se de um lado revela realmente a realidade vivida por essas pessoas do Nordeste que aqui empregamos, muitas vezes à escusa da lei, por outro lado, revela que não conseguimos perceber a amargura e a fragilidade de nossos semelhantes, nossos concidadãos, que acabam por nos suportar com amizade e carinho, porque, digo eu, são melhores em muitos aspectos que nós. Por exemplo, uma pessoa só sabe o que é justiça estatal se viver em um ambiente de informação e formação urbana, distante, fria e litigiosa. Mas existem pessoas que com carinho e amor se apegam aos outros, simplesmente porque em toda a sua vida esta foi a única oportunidade que tiveram, por aqui, de ter uma família e uma vida com dignidade. Imagine agora se essa pessoa for mulher, nordestina, sindicalista, sem grandes títulos acadêmicos, obtidos no exterior, e se chegar a Primeira-Dama da República?!
Mas os “doutores” (como nossas babás e empregados nos chamam!) e os mais abastados de São Paulo e demais centros desenvolvidos do Brasil, só veem a vida com amargura, frieza, cálculo, dinheiro. Como isso, na verdade, não dá felicidade e paz, sequer faz o espírito humano se alargar e amadurecer, resta – quando do litígio, do confronto, da agressão e violência -, procurar o Estado e judicializar adjudicando mais que bens, adjudicando-se da própria humanidade que existe em cada ser humano. Pelo menos eu assim o creio, e por isso creio na Filosofia, na pesquisa acadêmica, nos meus alunos jovens de espírito, e creio nos Meios Compositivos de Solução de Conflitos (ADR) menos judicializantes. Uma coisa leva à outra.
Não deixar esquecer (por exemplo, não nos parece tão urgente discutir nossas ditaduras, reparar Canudos, reparar Contestado, fazer justiça com relação ao Araguaia?), não omitir, não distorcer, não pactuar e não acreditar que genocídios, assassinatos por ódio e vinganças pessoais, experiências genéticas higienistas, campos de concentração, degradação, trabalho escravo e infantil, estupros, e todo o tipo de torturas, possam algum dia ser anistiados. Exatamente o que em nosso país acontece, desde 1500 – só mudam as formas.
Democracia não é só voto para apurar a maioria! Tampouco reclamar contra a maioria que votou em “A” ou “B”. Democracia é “arregaçar as mangas” e fazer a igualdade acontecer a cada segundo, a cada minuto, a cada hora para todos os brasileiros! Só posso terminar com a constatação que, quando Cazuza dizia “Brasil, mostra a tua cara!” não podia imaginar o que vinha por aí?!: a “cara que se mostra” neste momento no Brasil é muito, muito feia!
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