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FILOSOFIA DO DIREITO

Efeito Demonstração

ACIDENTE

BEBIDA

CARRO

IMPACTO SOCIAL

RESPONSABILIDADE

José Osmir Fiorelli

José Osmir Fiorelli

15/06/2016

As decisões da Justiça ocasionam diversos efeitos. Elas podem dissuadir, estimular, punir; podem provocar sentimentos de segurança, revolta, arrependimento, compreensão, dúvida, receio, certeza. Tudo isso de maneira complexa e, simultaneamente, em poucas ou muitas pessoas. Seguramente, elas sempre ocasionam algum tipo de impacto social. À Lei somam-se a Cultura e o Costume, pilares sobre os quais a sociedade funciona. No caso aqui comentado, ocorrido no interior do Estado de São Paulo, estes elementos combinam-se.

Festa em lugar distante.  Combinação típica: gente, bebida ruim, som de enlouquecer. A noite prolonga-se. O corpo cansa. A mente dispersa. Na madrugada tudo acaba. Uns saem em grupos, outros em duplas, outros sós. Todos abraçados ao fardo incômodo do cansaço, acentuado pelo álcool.

No caminho da volta o tédio impõe-se. Na solidão monótona, as linhas de sinalização do asfalto constituem o único alerta ao motorista sonolento, para lembrar o limite da pista no túnel escuro da noite.

Festa no subúrbio. Em local muito mais simples, a combinação típica: gente jovem, bebida (bem mais) barata, som de enlouquecer. Mesmo horário, mesma noite. Na madrugada tudo acaba. Saem pequenos grupos. Muitos caminham para o ponto de ônibus. Também sonolentos, embalados pelo álcool. Ainda acesas as luzes à margem da estrada, aguardam, no ponto do ônibus de subúrbio, o primeiro coletivo do dia, que os levará à cidade próxima, para suas casas.

Oriundo da primeira festa, vem um folião solitário. Divertiu-se. Bebeu. Percorre o tedioso caminho da volta. Embalado pela bebida, pelo cansaço e pelo ronronar do veículo, nas proximidades do subúrbio cede aos apelos de Morfeu e mergulha no conforto do sono.

O grupo à espera do ônibus não tem tempo para perceber o que acontece. São mais de uma dezena de jovens. A grande massa metálica desgovernada abate-se sobre eles, destruidora, implacável. Vários não mais abrirão os olhos. Outros acordarão em leitos hospitalares. Alguns perceberão, acordados, a chegada das muitas ambulâncias de Resgate.

Nos hospitais, alvoroço.

Nas rádios, a notícia em primeira mão.

Na enfermaria do hospital, com ferimentos leves, um cidadão – o motorista – acorda e olha ao redor, com expressão de que estranha o lugar. Talvez tenha murmurado “o que foi que eu fiz?”. Talvez, não. Quem poderá saber?

Escritório do Promotor. Nos relatórios, os fatos: mortos, mutilados, feridos.

Um escritório de advocacia já prepara a defesa.

Nas casas dos mortos, os pais retiram roupas dos armários. Uma ou outra peça restará de lembrança. É preciso urgenciar os funerais. Avisar na escola. Os amigos. Os parentes. Nos bairros pobres, grande a agitação.

O Instituto Médico Legal agilizou a liberação dos corpos.

Nas casas dos feridos o alvoroço, a esperança, a felicidade por eles estarem vivos.

Passado o espanto, as famílias indagam-se: “e agora?”.

A promotoria conclui: “o cidadão dormia”. Nada viu. Nessa condição pilotava a máquina mortífera. Não o fez por dolo. Antes, fatalidade.

Havia bebido. Era madrugada – hora em que o sono vem. Fosse à tarde, não teria dormido.

Familiares, amigos, interessados, tomam conhecimento, através do noticiário, de que “o motorista dormia”. Constatação que aumenta, ainda mais, a indignação generalizada que tomou conta da cidade.

“Ele sabia que estava conduzindo uma máquina mortífera”. “Tinha conhecimento da responsabilidade.” “No estado em que estava, era acidente certo.” Os comentários ganharam as esquinas, os salões de beleza, as filas nos pontos de ônibus.

A promotoria debate-se com a dúvida: culposo ou doloso? Como doloso, se a consciência encontrava-se adormecida?

Familiares e demais pessoas, que nada entendem de dolo ou culpa, adquirem uma única certeza: a punição teria que ser proporcional aos danos, ou nada teria sentido. Aliás, qualquer punição seria pequena comparada à dimensão da tragédia.

A promotoria analisa o processo. Há de se imaginar as reflexões, as dúvidas, a dor de decidir a respeito de tão pungente drama. Enfim, sai a decisão: “Culposo”.

A indignação toma conta das pessoas afetadas pelo acidente. À dor junta-se a raiva, a sensação de impotência, o sentimento de sentir-se à margem dos direitos mínimos das pessoas.

Surgem as indagações no formato popular “e se?”.

“E se” o grupo fosse de jovens de famílias ricas?

“E se” o grupo estivesse conversando à frente de um clube de elite, apreciando o frescor da madrugada?

“E se” o condutor fosse um ajudante de pedreiro, dirigindo um veículo em final de vida útil, voltando de um “baile funk”?

Acorrentadas aos “e se”s as pessoas sentem-se prisioneiras de um sistema, contra o qual não há o que argumentar. Não possuem recursos, não possuem instrução.

O resultado percorre a sociedade local. Mais tarde, a penalidade – unanimemente percebida como ínfima pela comunidade – ratifica os sentimentos de revolta.

Para muitos, ficou patente que a decisão constitui um estímulo clamoroso à falta de responsabilidade. O arrependimento – se houver – basta.

Também para muitos, tratou-se de clara confirmação da noção popular de que as tenazes da Justiça asfixiam mais (ou apenas) os desfavorecidos.

Inúmeros perceberam que o anonimato das populações que se amontoam no subúrbio aplica-se em qualquer lugar, inclusive pontos de ônibus.

Não faltaram os que consideraram o acontecimento – e a consequência legal – um alerta para os pais: é preciso cuidar dos filhos. “Essas aventuras noite a dentro terminal mal” ouviu-se nos clubes e salões de beleza. “Se aqueles jovens estivessem com suas famílias, permaneceriam vivos. Aquilo, afinal, é uma “pouca vergonha”.

Outros afirmaram compreender a dor do que provocou o acidente. “Que ninguém queira passar o que aquele cidadão está passando”.

Tal compreensão estendeu-se à postura do Promotor (ratificada, mais tarde, no teor da sentença). Afinal, comentam os que analisam dessa forma os acontecimentos, a Lei deve estar acima de casos particulares e de sentimentos subjetivos, ditados pela sensibilidade, pelos costumes, pela moral vigente, para bem da própria Sociedade.

A história do acontecimento está escrita. Muitos irão estudá-la e tirarão suas conclusões.

De qualquer forma, espera-se que o motorista passe a beber com moderação. Se beber, que não dirija.


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