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FILOSOFIA DO DIREITO
Do conflito à gestão – pela legitimação ética e poética do direito democrático

Carlos Eduardo de Vasconcelos
28/07/2025
O Direito é instituído como um instrumento de pacificação social, mediante a normatização das condutas e a contenção do conflito. No entanto, ao tentar conter o conflito em nome de uma ordem formal, o Direito tende a ignorar a complexidade do mundo da vida e a densidade simbólica das relações humanas. Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre a legitimidade do Direito a partir da valorização do conflito como elemento estruturante das relações sociais. O conflito não é um ruído a ser eliminado, mas um elemento estruturante da convivência interpessoal, comunitária e mundial, por onde são produzidos sentidos de vida e justiça.
A partir de contribuições teóricas de Jürgen Habermas, José Souto Maior Borges, João Maurício Adeodato, Marcelo Neves e com destaque para o pioneirismo de Luís Alberto Warat, venho aqui, também inspirado por notáveis colegas especialistas em métodos adequados de solução de disputas, argumentar que a superação da visão normativista e adversarial do Direito exige uma advocacia capaz de atuar em espaços que vão dos limites normativos às dimensões multidisciplinares, afetivas e poéticas do mundo da vida. A justiça multiportas é aqui compreendida não apenas como uma arquitetura institucional, mas como uma exigência ética, relacional e civilizatória, em face de sociedade marcada pela complexidade, fragmentação e feridas afetivas.
1. O Conflito como Expressão das Relações Sociais
Ao invés de ser compreendido como um desvio, o conflito revela-se como expressão da pluralidade e da tensão entre diferenças que estruturam o tecido social. Jürgen Habermas, com sua Teoria do Agir Comunicativo, propõe que a legitimidade normativa deve emergir do discurso racional entre sujeitos livres e iguais, ancorado na linguagem e na possibilidade de se alcançar entendimento (Verständigung). A teoria do discurso de Habermas oferece uma das mais influentes tentativas contemporâneas de justificar a legitimidade do Direito com base na racionalidade comunicativa. Para o autor, normas jurídicas só podem ser legítimas se puderem ser aceitas racionalmente por todos os atingidos em condições ideais de diálogo. Contudo, esse modelo tem sido criticado por seu elevado grau de idealismo, sobretudo em sociedades marcadas por desigualdades estruturais e exclusões históricas. Habermas reconhece que o conflito é inevitável, mas aposta na possibilidade de superá-lo pela força do melhor argumento, o que, em contextos de assimetrias radicais, costuma ser insuficiente.
2. Crítica à Legitimidade Normativista e Adversarial do Direito
José Souto Maior Borges apresenta o Direito como uma prática hermenêutica essencialmente interpretativa. Para ele, a norma não se esgota no texto legal: sua aplicação exige responsabilidade e abertura às contingências da vida. Ele problematiza a ideia de legitimidade baseada apenas em legalidade formal e defende a atuação do intérprete como aquele que responde eticamente às demandas concretas da sociedade.
João Maurício Adeodato, por sua vez, propõe uma crítica hermenêutica ao discurso jurídico, desvelando o uso estratégico da linguagem na produção de sentidos jurídicos. A retórica, nesse contexto, não é ornamento, mas estrutura do próprio argumento jurídico, frequentemente usada para mascarar disputas políticas sob a aparência de neutralidade técnica. Ao denunciar a pretensão de neutralidade e objetividade, Adeodato expõe as estruturas de poder que atravessam o discurso jurídico. Para ele, a legitimidade do Direito depende de sua capacidade de reconhecer e tematizar seus próprios pressupostos ideológicos, em vez de escondê-los sob a aparência de técnica.
Esses dois autores divergem de Habermas quanto à possibilidade de um discurso racional purificado de assimetrias. Enquanto Habermas ainda aposta em um horizonte regulatório de racionalidade discursiva, Borges e Adeodato enfatizam a historicidade e o caráter situado do Direito, tornando a legitimidade um processo sempre aberto e conflituoso.
Marcelo Neves, ao tratar da “constitucionalização policêntrica” e da “sociedade fragmentada”, mostra como o Direito contemporâneo se constitui em múltiplos polos de produção normativa, nem sempre coordenados entre si. A multiplicidade de esferas normativas (direito estatal, comunitário, internacional, consuetudinário etc.) desafia a unidade da dogmática jurídica e requer novos modos de legitimação. Para Neves, a justiça deve reconhecer essa diversidade e operar com abertura à complexidade sistêmica e às vulnerabilidades sociais.
3. Warat e o simbólico no Direito: entre a escuta e o poético
Luís Alberto Warat representa um ponto de inflexão decisivo no pensamento jurídico latino-americano. Rompendo com o normativismo, ele introduz no campo jurídico categorias até então marginalizadas: o desejo, o afeto, o inconsciente, a estética, a sensibilidade. Para Warat, o Direito não é apenas sistema de normas, mas espaço de produção simbólica, onde atuam forças discursivas, imaginárias e emocionais que atravessam os sujeitos. A escuta jurídica, nessa perspectiva, não pode ser reduzida à técnica. Ela exige empatia, sensibilidade, abertura para o outro e disposição para lidar com os excessos da linguagem e da dor social.
A justiça, para Warat, começa onde o Direito tradicional não alcança: no sofrimento não normatizado, nas narrativas silenciadas, nos vínculos rompidos. Esse enfoque não exclui a racionalidade, mas a desloca. O “poético” waratiano não é oposição ao jurídico; é uma ampliação da escuta que insere o Direito na vida real dos sujeitos, restaurando sua função simbólica e transformadora. Por isso, Warat defende um “novo pacto sensível” entre os operadores do Direito e os cidadãos, reconstituindo a legitimidade jurídica a partir da escuta das margens. Warat radicaliza a dimensão afetiva e inconsciente do conflito. Para ele, o Direito racionalista ocidental reprime o desejo, o corpo e a poética da linguagem.
Warat nos convida a pensar o Direito como espaço de reinvenção simbólica e escuta sensível, onde o conflito deve ser vivido e elaborado, não apenas resolvido. O Direito não pode ignorar a dor, o silêncio, o afeto e a incompletude do sujeito. Há aqui um deslocamento do eixo racional-normativo para o ético-poético, enfatizando a justiça como relação sensível com o outro.
4. A Advocacia como práxis entre normas e afetos: Jurídica, Simbólica e Poética.
Nesse novo paradigma, a advocacia é chamada a ir além da função instrumental de defesa de interesses perante o Estado. O advogado torna-se elemento de interlocução entre diferentes mundos simbólicos, capaz de construir pontes entre as normas e os afetos, entre o processo e a vida. Ao se capacitar a uma comunicação construtiva (não violenta), a advocatícia aperfeiçoa a “combatividade construtiva”; locução adequada para designar a sua cooperação em defesa das necessidades do seu cliente. Em sua combatividade construtiva, esse advogado relacional adota, desde o atendimento do cliente em seu escritório, escutas e perguntas de esclarecimento, para a identificação das reais necessidades desse cliente; o que lhe enseja uma atuação adequada e bem-informada.
O advogado caminha não apenas pelos espaços forenses e outros átrios, mas também em articulação com outros colegas, e pelos territórios da linguagem, da memória, da dor e da esperança. A atuação jurídica se expande para arenas dialógicas múltiplas, onde a justiça não é apenas uma sentença, mas um processo de reconhecimento e cuidado. Essa perspectiva aproxima-se da crítica feita por Marcelo Neves à funcionalização do Direito: é preciso resistir à captura técnica e recuperar o sentido relacional da prática jurídica.
A justiça multiportas, nesse contexto, não se limita à ideia de eficiência institucional. Ela deve ser lida como um instrumento ético-estético que propicia modos plurais de elaboração do conflito, respeitando as especificidades culturais, emocionais e simbólicas dos sujeitos. Trata-se de um modelo relacional e civilizatório de justiça, capaz de acolher as múltiplas vozes da sociedade ferida.
Conclusão
A legitimidade do Direito, quando pensada a partir da valorização do conflito, exige o abandono das ilusões de neutralidade e universalidade abstrata do tecnicismo normativo. A escuta do dissenso, a abertura à alteridade e o reconhecimento da dimensão simbólica e afetiva do conflito tornam-se critérios centrais de uma justiça ética e relacional.
Os autores analisados oferecem perspectivas complementares e, por vezes, tensionadas entre si: Habermas aposta na racionalidade comunicativa; Warat no inconsciente e na poética; Borges e Adeodato na responsabilidade hermenêutica e crítica ideológica; Neves na complexidade e pluralidade sistêmica; Warat no inconsciente e na poética. O diálogo entre essas visões não busca uma síntese pacificadora, mas uma constelação de caminhos para repensar o papel do Direito e da advocacia em tempos de incerteza, fragmentação e feridas abertas. Tudo isto naquele instante que somos nós, entre o passado e o futuro; como diria Hannah Arendt.
Em adição, a inteligência artificial generativa apresenta-se como uma luz que nos facilita e impulsiona por sobre a escuridão dos burocratas. Nesse sentido, aprimoremos a nossa capacidade de tirar dela o devido proveito. Isto envolve mudança de mentalidade, novos conhecimentos, redirecionamento pedagógico, criatividade, planejamento e governança responsável. Em cooperação, iremos derrotar a viciosa burocracia.
A justiça multiportas, enfim, representa não apenas uma estratégia institucional, mas uma poética da convivência, em que o conflito não é obstáculo, mas um caminho para a construção de renovados sentidos ao Direito.
Referências
ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: para uma teoria da decisão judicial. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
BORGES, José Souto Maior. A Hermenêutica Jurídica e a Constituição: textos escolhidos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. I e II. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado democrático de direito e a complexidade social. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
NEVES, Marcelo. Constitucionalização simbólica. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.
WARAT, Luís Alberto. Filosofia do Direito: mais que uma introdução. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994.
WARAT, Luís Alberto. O Direito e sua Linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995.

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