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Confira o discurso de Tércio Sampaio ao receber o título de Professor emérito
Tércio Sampaio Ferraz Jr.
14/12/2021
No dia 2 de dezembro, às 18h30, o professor Tercio Sampaio Ferraz Júnior foi homenageado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e recebeu o título de Professor emérito como reconhecimento pelos anos de contribuição ao Direito. Em seu discurso, ele fez agradecimentos e relembrou sua importante e marcante trajetória até se tornar um dos maiores juristas da área. Confira, a seguir, o discurso de Tércio Sampaio ao receber o título de professor emérito!
Leia, a seguir, o discurso de Tércio Sampaio Ferraz Júnior!
Senhoras, senhores:
Começo, em primeiro lugar, por expressar meu agradecimento. Agradecimento à Congregação da Faculdade que generosamente concedeu-me o honroso título de professor emérito; agradecimento ao nosso Diretor Prof. Floriano de Azevedo Marques que preside esta sessão solene e que, com empenho amigo, encaminhou a deliberação da Congregação e agora, com muito carinho, me proporciona esta solenidade.
Agradecimento ao Prof. Humberto Ávila que me saudou com sensibilidade intelectual e afetiva em nome da Congregação e que me desvenda quão próximos, afinal, estamos nós, o tributarista e o filósofo.
Agradecimento aos amigos e colegas, em especial à dedicação incomparável da professora Elza Boiteux, na iniciativa generosa e na tramitação da concessão do título que hoje recebo e em nome de quem agradeço a todos que com ela igualmente se empenharam.
Agradecimento a meus antigos mestres, a meus colegas, a meus alunos, que, com as afinidades que se aprofundaram em anos de intenso convívio, me proporcionaram a experiência vivificante da vida docente.
Agradecimento a meus pais com quem aprendi a ser como sou. Minha mãe, com quem aprendi que o trato modesto das benesses da vida é o bom caminho para o convívio humano. Meu pai, cuja mansidão de espírito me ensinou que o apreço ao saber tanto mais dignifica a existência quanto mais é exercido com humildade.
E não sem razão agradeço.
Reconheço que desde que recebi a notícia de que a Congregação desta Faculdade de Direito do Largo de São Francisco me havia agraciado com o título de professor emérito fiquei emocionado. Não era uma emoção dessas que vêm e vão. Era algo que enlaçava todo o meu espírito, como se a vida decorrida se concentrasse num instante.
Na Faculdade, lecionei durante 42 anos, dos quais 30 anos como professor titular. A despeito de ter sido titular por concurso, ao defrontar-me com este ato que me fazia professor ex merito, diante do simples fato de que sentia tratar-se não apenas de uma manifestação que me arrancava do retiro isolado dos círculos da amizade, mas de um título que honorifica pela condição impar da instituição que o concede, confesso que não me senti inclinado senão a expressar uma sentida gratidão.
A palavra gratidão tem equivalentes em cada idioma, em cada um deles vem carregada de muitas significações. Um gesto, uma cortesia, uma retribuição… Faz parte da condição humana, como uma exigência que se aprende desde criança: ao receber um presente, a admoestação: então, como se diz? Obrigado…
Obrigado é uma forma portuguesa que sempre causa embaraço. Em outras línguas, o latim obligare sempre lembra contrato, uma dívida reconhecida, a expressão negocial de um dar e receber. Certamente aí se deitam algumas de suas raízes. Mas aprendemos também, na palavra de um ilustre romanista, que no obligare latino, no ligare diante de, escondia-se o vínculo, um vínculo mágico, uma força irresistível que fazia do direito um mistério desafiador.
Essa ideia agrada mais. Talvez porque, quando pronunciamos conscientemente a palavra obrigado, dizemos na verdade algo inefável, que vem à sensibilidade e nela se recolhe como um refúgio da intimidade: aquela espécie de alegria que inunda a alma das crianças e as torna mudas por momentos.
Mas, ao mesmo tempo, uma alegria que acaba por se abrir, porque obriga, obriga perante todos, que expõe afinal alguma coisa que nos leva a refletir, que a mim me leva a refletir sobre esse vínculo de um velho professor com uma academia de direito, que sempre exala juventude, porque nela tem sua força e energia: velha e sempre nova Academia…
Quem não sabe que é a força dessa aura, que faz das Arcadas um altar de culto e um ritual de convivência? Nela ecoa, na algazarra de seus jovens, a autoridade de seus mestres e a sensibilidade de seus poetas.
Como em um sonho tornado realidade, quem por aqui passa carrega pela vida o sentimento de que ela é nossa, mas também de que a ela pertencemos. Ela é, por isso, simultaneamente, um locus privilegiado da singularidade de cada um de nós e, também, a expressão de uma comunidade. Donde a sensação de que a vida de cada um tenha sua significação construída dentro da relação com todos. Somos todos franciscanos…
E é isso, afinal, o que dela faz a tradicional Faculdade do Largo São Francisco.
Tradição, aliás, que ela não tem apenas por deixar fontes escritas de sua existência, mas por constituir um legado que passa de geração a geração, num espírito que, ao mesmo tempo conserva e inova, por ser um ente vivo que se tornou consciente da sua história como uma dimensão do significado de sua existência.
Embora constituída de relatos, guardados nas lembranças dos que por aqui passaram, sua tradição é mais do que isso: é o que faz dela mesma um documento histórico de sua cidade e de seu País, cuja essência está num espaço muito maior que o espaço que a abriga, pois está nessa memória intangível, sem dimensões espaciais, capaz de cobrir o tempo de uma juventude que sempre a vive e volta a reviver em tudo que acaba por fazer.
Pois bem: é a esse mundo de sentimentos confinados à subjetividade, mas a ela irredutível, que me sinto obrigado nesse momento. Trata-se de algo que talvez se perca para um observador de fora, mas que, não poucas vezes, irrompe, dramaticamente, no espírito reconhecido quando se põe a lembrar e a agradecer.
Nossa Academia, alojada no antigo mosteiro franciscano, que data de 1.647, tem quase dois séculos. Nela aprendi a conhecer o direito.
Mais do que conhecer, aprendi a sentir. Sentir é mais que conhecer, pois logo percebi que conhecer o direito não era um empreendimento que se reduzia facilmente a conceituações sistematizadas e memorizadas. Nem se limitava ao convívio dentro de uma sala de aula.
O encontro com o direito era, como é sempre, diversificado, às vezes linear e consequente, às vezes conflitivo e incoerente. Sentia que o aprendizado do direito continha, ao mesmo tempo, as filosofias da obediência e da revolta, servindo para expressar e produzir a conservação do existente status quo legal, mas aparecendo também como sustentação moral da indignação e da rebelião.
E nessa tarefa, a Faculdade nunca se limitava a uma formação acanhadamente profissional. Com Goffredo Silva Telles aprendíamos que quem sabe só o direito, referindo-se às suas técnicas, é uma triste coisa.
Por isso nos iniciávamos desde cedo nessa percepção afetiva do direito, como um braço que acolhe, que estreita fortemente, para ao final lançar-nos ao mundo em liberdade, liberdade de preservar as leis como são, para transformá-las em justas como devem ser.
Quem, de minha geração, não se lembra do mestre Goffredo, que foi nosso paraninfo, a repetir, ao final de seu curso, que o direito, como o amor, tem suas raízes enterradas no coração humano, mas, ao mesmo tempo, capaz de vir a fazer da sua palavra um aríete, ao pronunciar, no pátio da Faculdade, sua memorável Carta aos Brasileiros, contra um regime autoritário que, a partir daí, começou a fenecer.
Minha geração acadêmica, a turma de 1964 como costumam nomear-se as gerações franciscanas, passou 5 anos a aprender o direito como um exercício de liberdade. Havíamos aprendido o espírito de lidar com o direito como alguém que se empenha, para lembrar Kant, a “suplicar a aquiescência de cada um dos demais” na esperança de um sentimento comum. Mas começávamos nossa vida profissional em meio aos constrangimentos de um autoritarismo asfixiante.
O Brasil não tinha pena de morte, mas a morte acabava sendo imposta como resultado de intermináveis suplícios, em nome de um interesse soberano, atos de tortura acobertados por alguma razão de estado contra os ditos atos de subversão.
E foi esse duro aprendizado que nos fez revolver o nosso juízo. Afinal, logo compreendíamos que a razão de estado não poderia constituir a regra das coisas, nem pressupunha ditames políticos na forma de normas que usurpam as normas do próprio direito. Ao contrário, tem por condição de possibilidade o pressuposto de que as questões elementares da democracia tenham um mínimo de evidência.
Aprendemos, então, que um direito estabelecido arbitrariamente de fato constitui-se e pode mesmo servir a alguma finalidade. Pode gozar de império, ser tomado como válido e ser inexoravelmente efetivo. Mas aprendemos, também, que o direito não tem seu sentido nem no império nem na própria efetividade. Pois só assim se explica a revolta, a inconformidade humana diante do arbítrio. E que aí repousa, ao mesmo tempo, a sua força e a sua fragilidade. É possível implantar um direito à margem da justiça. Aí está a fragilidade. Todavia, é impossível evitar a percepção do arbítrio e a consequente revolta do espírito. E aí está a força.
Uma geração que pôde, afinal, aprender por que razão a arbitrariedade deve ser sempre malvista no mundo jurídico: sim, que a renúncia ao senso comum, ao que pode ser justo em comum, priva o direito de seu sentido.
Por tudo isso, este é para mim um momento de memória.
Memória… a ação que tudo interpela, desde a mais simples das práticas cotidianas às mais complexas e indecifráveis. Seu atributo mais imediato é garantir continuidade em meio às rupturas, um elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros.
E a existência, embora seja vivida nesse jogo de recordações, marca também a percepção dessa linha que corre, retroativamente, de um futuro desconhecido para trás, para um passado, que não pode ser recusado e que ganha contornos mais definidos em momentos do presente
Momentos como este. Pois é em pontos da vida, como é o recebimento de um título de honra, que ocorre a confluência de tantos movimentos existenciais: estudos, pesquisas, trabalhos, defesas, docência, mas também incidentes talvez sem importância, todos capazes de fazer perguntar-me: o que me faz merecê-lo? O que me levou até lá? Por que tornei-me docente desta Faculdade? Por que filosofia do direito?
Quando estudava na Alemanha e me preparava para o doutorado em filosofia, meu pai me escreveu: um amigo seu, sabendo que eu estava por lá, recomendava que eu me dedicasse a um ramo jurídico que começava ascender no Brasil: direito tributário. Esse amigo era Modesto Carvalhosa. Confesso que não segui o conselho. Doutorei-me em filosofia mesmo.
Mas essa lembrança que me faz ligado a meus amigos tributaristas/filósofos, a figuras como Humberto Ávila, Paulo de Barros Carvalho, que me mostram quão próximos, afinal, estamos, ajuda-me também a desvendar aquela escolha.
Foi no primeiro ano da Faculdade que o encantamento das aulas de Goffredo Silva Telles me levou prestar o vestibular para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Não resisti ao apelo do mestre e decidi que os caminhos convergiam.
Pedi a um colega de colégio, o Colégio São Luís, que me orientasse para enfrentar o vestibular. E ele, Francisco Simões, desde adolescente, filósofo por vocação e, então, já estudante da FEFELETE, me emprestou um livro: História da Filosofia Moderna, de Windelband, que conservo até hoje. Meu pai costumava carimbar em seus livros – livro não se empresta -, mas os emprestava e muitos se perderam. Confesso que nunca devolvi aquele Windelband. Que acabou se tornando a grata lembrança de um amigo generoso.
Cursar duas Faculdades da USP, simultaneamente, podia ser um problema, me diziam. Mas em tempos de uma burocracia escriturária, própria ainda da era de Gutenberg, sem sistema informático, não resisti à vontade de enfrentá-lo.
E a confluência dos caminhos, direito e filosofia, rendeu resultados. Numa aula, já no quinto ano, senti que estava certo. Miguel Reale, o mestre jurista e filósofo, perguntava um dia, sem muita expectativa de uma resposta, se alguém sabia como Aristóteles definia a justiça. Para sua surpresa, levantei a mão e fui desfiando tudo que aprendera da leitura da Ética a Nicômaco. Pouco depois, eu, juntamente com Celso Lafer, esse querido amigo de tantos anos, éramos convidados por ele a participar de suas aulas de filosofia jurídica em seu curso na pós-graduação. Fomos aprender a ler Vico, La scienza nuova.
Era o destino traçado.
Quando, tempos depois, vim a compartilhar com Celso, já na docência, aulas sobre o direito e o poder, e a liberdade e a justiça, certamente fazia parte de nossa memória comum aquele convívio com o mestre, que nos fora como um presságio de uma fraternidade intelectual que mantemos até hoje.
Mas o tempo corria e em breve, formados, o olhar se voltava para outros horizontes. Sair do Brasil, estudar fora, era um desafio e uma aspiração legítima. Afinal, como dissera Álvares de Azevedo em um discurso pronunciado no dia 11 de agosto de 1849, em sessão comemorativa da criação dos cursos jurídicos, o desenvolvimento escolastico nas Universidades de além-mar, applica-se inteiramente a nós, pois ainda após do dia 11 de Agosto de 1827, éra das Academias Jurídicas Brasileiras, temos sido reflexos das praticas e usanças européas. Litteratura, sciencias, artes, tudo isso aprendemos lá.
Nessa esteira, fui para a Alemanha, aprender, com Theodor Viehweg, a importância da retórica para o direito e, por essa via, o linguistic turn da filosofia contemporânea.
Anos depois, já de volta ao Brasil, surpreendeu-me Viehweg quando, ao se aposentar, escreveu-me uma carta, estimulando-me a candidatar-me à sua sucessão, pois, dizia ver em mim alguém que levaria adiante os estudos que ele iniciara. Confesso o encantamento que essa carta me proporcionou.
Mas não era esse o meu destino.
Redigia eu na mesma época minha tese de livre-docência e, logo depois de obtê-la, lembro-me de ter sido chamado por meus mestres, Miguel Reale e Goffredo Silva Telles, que se aposentava, para uma reunião no Departamento. O concurso estava aberto e Teófilo Cavalcanti, sucessor nato de Goffredo, havia falecido. Fui então concitado a escrever uma tese para concorrer à titularidade. O prazo já corria. Num curto espaço de quatro meses, com os recursos da época, ditava o texto num gravador, para ser datilografado e entregue a tempo.
Tornei-me titular para agora ser recebido como professor emérito. Mas em que se funda o juízo de reconhecimento que acabo de receber?
Somos sempre aquilo que aprendemos, um pouco aquilo que conseguimos refletir para transformar. Não posso olvidar, com gratidão, o estímulo que recebi dos mestres.
As lições de Miguel Reale constituíram uma orientação significativa. Com ele fui despertado para o apelo filosófico que invocava um olhar para a ciência como paradigma do conhecimento, mas que, de certo modo, também removia o encontro entre o ser humano e o mundo. A ciência descobria e escondia. A ciência do direito era toda norma, mas era preciso o olhar para a experiência, na intrincada relação de fatos e valores. A concepção de Reale colocava dentro da norma mesma a relação “direito” e “realidade”. Com isto eliminava não só a oposição entre o “direito” como “norma” e o “direito” como “conduta’, mas também a estrutura abstrata que submete o mundo jurídico a uma dimensão puramente valorativa. Mas com isso efetuava uma expressiva abertura para aquilo que dignifica o ser humano, ainda que tenha, momentaneamente, um valor relativo para a sociedade.
Ficava claro para mim que valores, uma vez escolhidos na positivação normativa, podiam mudar, ou porque os fatos que eles iluminavam já eram outros ou porque os objetivos que eles prescreviam se tinham transformado.
Isso, porém, implicava a possibilidade de proliferação de objetivos e o consequente aparecimento de conflitos em larga escala. Como lidar com isso?
A retórica fora uma técnica que florescera em Atenas no século V a.C. e que revolucionara as artes, a vida política, o direito dos julgamentos e os tribunais. Em Roma ganhou proeminência, como testemunho da força persuasiva da palavra. Era uma habilidade técnica, que preparava o cidadão para o desempenho da cidadania na arena política e jurídica. Viehweg propunha seu resgate para uma apreciação crítica do pensamento jurídico, atendo-se à dimensão discursiva da língua (fala), o discurso como um fenômeno de comunicação por excelência.
Eram reflexões que antecipavam, de muito, as preocupações hodiernas com a teoria da argumentação jurídica, mas que iam muito além. Sobretudo no campo jurídico parecia-lhe relevante a abordagem retórica, enquanto capaz de enfrentar os desafios já percebidos desde o Século XIX no modo ilusivo com o qual a dogmática jurídica trata a realidade objetiva. Com olhos na retórica e na comunicação, a filosofia do direito funcionaria, assim, como um antagonista da doutrina, destruindo seu possível nimbus de auto-evidência e constantemente se esforçando para melhorar sua qualidade através da análise e da crítica.
Se a sabedoria fosse avaliada da mesma forma em tudo e na honra, nenhum conflito de palavras de guerra seria conhecido pelos homens. Mas justiça e direitos iguais, os homens não os conhecem … eles nomeiam seus nomes: nenhum ser eles têm como coisas.
São de Eurípedes essas palavras. Daí, certamente, o sentido dramático do ato de julgar.
Pois foi na confluência dos ensinamentos dos dois mestres, Reale e Viehweg, que se abriu para mim a percepção de que a fonte imediata do direito era a capacidade humana de julgar.
De uma perspectiva retórica e pragmática, conceituar e decidir aponta para um jogo comunicacional entre codificação e decodificação. Quando a mãe ordena, codificando, não coma agora, vai estragar o jantar, a criança decodifica não estou comendo, só estou experimentando…
Dentre as muitas nuances de uma relação intersubjetiva, a clássica dialeghestai envolve um jogo de disputa, de modo que um código forte é decodificado num código fraco e um fraco, num forte. Observa-se, também, que a própria decodificação, quando se põe a si mesma, pode pautar-se por um código forte ou por código fraco.
Nesse jogo complexo, a justiça se apresenta como um código, embora ela não se reduza a um código. Lembro-me de Viehweg, que dizia: “a justiça antes de ser um conceito, alguma coisa que se apreende, ela é um problema”.
A justiça é um problema, mas um problema que ganha articulação a partir das decisões. Um problema tem alguma coisa de vazio no que se refere ao seu conteúdo. O conteúdo está aberto, depende da decisão que vai ser tomada. Mas não aparecem separados, estão mutualmente em convergência, um provocando o outro. Justiça é problema e, como problema, ganha consistência conceitual a partir de tomadas de decisão que vão identificar o que é justo e o que é injusto, porém, de novo, de forma problemática! É problema cuja resposta paradigmática é, de novo, um problema a resolver.
Nessa circularidade se entende que a justiça seja a grande interrogação em todas as culturas. Em última análise, um tema recorrente. É possível definir a justiça? É impossível definir a justiça? Existe algum conceito universal de justiça? Não existe? Se existe, é demasiado abstrato? Dar a cada um o que é seu?
Entende-se por que o juiz não é nunca uma simples máquina de fazer silogismos, posto que a personalidade do culpado nunca é encerrada em sua problemática singular de um sentido único: sempre há uma nebulosa de leituras possíveis, organizadas em torno de um sentido que se diz dominante.
Quantas vezes, uma decisão, que parece seguir uma ordem estabelecida processualmente, segue, na verdade, uma ordem não estabelecida, de tal modo que, assim como o êxtase trágico pode irromper do medo, a palavra judicante (o dictamen) pode exceder a lei.
Não se trata, portanto, de um ato frio e neutro (embora possa conhecer perversões burocratizantes), mas de uma capacidade que se relaciona com o sentimento de injustiça, que transforma a dor muda e inarticulada em algo comunicativo, voltado para os outros. Pois quem verdadeiramente julga transfere para o mundo algo muito intenso e veemente que estava aprisionado no seu ser. À percepção da injustiça impõe-se, no ato de julgar, a justa repartição. Mas não se trata de mera transformação (do injusto em justo) ou uma espécie de pôr ordem nas coisas. Porque se refere a um modo de ser das relações humanas, é mais. Muito mais.
É a justiça como sentido e a percepção de que falta de sentido é insuportável para a vida. E isso tem a ver com a consistência da existência humana, do como se lida com paradigmas e situações recorrentes: o contraste do modo de ser de cada um com o modo de ser dos outros.
Cada ser humano é um ser singular, sempre em contato com os outros. Justiça tem a ver com a busca do sentido da [co]existência, isto é, o sentido da vida social, o sentido da vida pessoal, o sentido do que se faz e se deixa de fazer.
Em que medida justiça tem a ver com existência, como o sentido da vida?
Na Alemanha também conheci Helmut Schoeck, professor de sociologia. Com ele aprendi quanto a inveja, o ressentimento, a angústia integram a vida como a erva daninha, a relva que floresce. Em meus estudos ficava-me claro por que razão os filósofos do Século XX deixaram de estimar a ataraxia, passando a estimar a angústia como liberdade diante da responsabilidade, a justiça como uma exigência infinita de pureza e a vingança como a outra face do desconforto de ser justo. Nietzsche, Camus, Kierkegaard, Kafka abraçam o deus que os devora. O mais terrível é que o homem se julga a si mesmo. É o grande mito de Kafka: o de uma culpabilidade que investe contra o homem, sem que ele possa conhecer-lhe nem o rosto do acusador nem o conteúdo da acusação. Angústia, dívida, vergonha.
Mas, pensando na tragédia humana de que nos fala o poeta húngaro Imre Madách, o importante é a irrupção do transe demoníaco, a possibilidade da palavra possessa e extática romper o perímetro regular do ágon burocrático e fazer uma justiça superior nascer da força de convicção consciente do triste espetáculo que nos rodeia.
Quem nesse momento é incapaz de ver, na miséria que nos cerca, o enorme desafio da pobreza?
É a vida real, a nos oferecer espetáculos assustadores do que acontece à nossa sociedade. O quadro é tão terrivelmente cotidiano que quase dele não tomamos consciência: são situações em que os ricos vivem em comunidades muradas, à espera de hordas com renda abaixo da sobrevivência. Por isso sistemas políticos instáveis, em que promessas populistas às massas de uma vida melhor desabam em frustrações. E, em tudo, talvez o mais importante, a ausência de esperança, pois os pobres sabem que seus propósitos de emergir da pobreza apontam para um longo caminho de realização minúscula.
Mas é isso que nos impõe o reconhecimento de uma realidade e os ônus de sua correção retributiva, mais especificamente, de sua desigualdade. Desigualdade que significa mais do que perguntar por que somos desiguais e como lidar com as diferenças, pois nos leva simplesmente à exigência de suprimir a pobreza, marca indelével da desigualdade.
Usualmente quando se fala de pobreza alude-se a uma dimensão estritamente econômica, ou seja, à capacidade de consumo, em estruturas sem mobilidade, em que pobres são condenados a permanecer pobres.
Pois isso não basta. Pensar a pobreza deve ser também pensar a mudança. Entende-se, aqui, a conotação que assume a educação para o povo, esse conjunto dos “desafortunados”, em seu ambiente social e político e cultural.
Rousseau no discurso sobre a desigualdade começa por amaldiçoar a propriedade e termina por amaldiçoar o despotismo.
Eis uma mudança, cujo vetor se volta para o futuro, que passa pelo momento em que vivemos, impondo-se desde já como escolha capaz de alterar o status quo. Deixar o despotismo da acomodação, dos rochedos do cotidiano em que se despedaça o barco dos nossos sonhos.
E não sinto que falo em vão. Afinal, nossa Academia lutou contra a escravatura, sustentando, como é próprio de todas as juventudes, um “território livre”, marca libertária de todas as liberdades.
E é assim que olho para este salão nobre: um espaço de poetas, realistas e sonhadores.
Aqui defendi minha tese de livre-docência. Aqui enfrentei o desafio da titularidade. Aqui senti que empenhava meu destino na perseguição de uma causa: a da docência como exercício de liberdade. Não só da liberdade docente. Mas da liberdade daqueles a quem viria a lecionar.
Mesmo num mundo, como o nosso, de avaliações reduzidas à utilidade, o docente que exerce seu ofício com vontade de ensinar, ainda que minimamente, deve exercitar aquela capacidade de despertar no aluno o senso crítico. E nisso sempre esteve para mim a pedra angular da docência.
Por anos lecionei filosofia do direito. Philosophia, amor à sabedoria, seguramente, é uma devoção. Dizem que Pitágoras foi o primeiro a dizer: “A sabedoria plena e completa pertence aos deuses, mas os homens podem desejá-la ou amá-la, tornando-se filósofos”.
Philein, amar, tem muitas facetas. Meu encontro com os grandes filósofos gregos me ensinou que a palavra philos (amigo) expressa muitas relações. Philein, o verbo, ora se traduz por ‘sentir afeição’, ora ‘comportar-se de modo amigável’, mas também ‘ser hospitaleiro’, ‘dar o devido tratamento a um hóspede’, sentir que o outro é um outro, estranho que seja, mas a quem se deve acolhimento respeitoso.
É nessa polissemia de significados que somos philos: na família, nas relações sociais, na comunidade, nesta velha Academia…
Onde mora a amizade, onde mora a alegria…
Aqui reconheço meus amigos. Estão todos aqui, presentes, mesmo quando já se tenham ido, deixando a saudade de sua lembrança. A todos sou grato por esse momento.
Mas… philein é sobretudo amar. Quando nisso penso, sinto-me num estado de sonho. Que vivo com Sonia, minha mulher, há mais de 40 anos.
A ela dedico esse Título. Pois quando vejo seus olhos distantes e ela me diz que sonha comigo, peço que não pare de sonhar, pois o sonho que ela sonha, é a vida que tenho. E se ela não sonha, minha vida se vai, como a chama de uma vela soprada pelo vento…
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