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O Direito como produto social: trabalho, sociedade e cultura
Sacha Calmon Navarro Coêlho
26/11/2019
Nos primeiros capítulos do livro Curso de Direito Tributário, o autor Sacha Calmon Navarro Coêlho dedica-se à Filosofia do Direito, fazendo uma reflexão madura sobre o papel e os fins do Direito e sua importância para o convívio social. A seguir, confira o trecho da obra em que o autor disserta a respeito do Direito como produto social: trabalho, sociedade e cultura.
O Direito como produto social: trabalho, sociedade e cultura
A primeira coisa que o homem faz juntamente com os seus semelhantes é produzir para viver. Produzindo, convivem. O modo de conviver vai depender, então, do modo como produzem. Não são, ou foram, as sociedades “caçadoras”, diversas das sociedades “pastoras” no modo como se estruturaram?
Ao produzirem, para viver, os homens usam instrumentos, aplicam conhecimentos, inventam técnicas, agregam experiências que, em última análise, decidem sobre o tipo de relações que haverão de manter entre si. O homem é, antes de tudo, um ser de necessidades ou homo necessitudinis. Para satisfazer às suas necessidades básicas, sempre presentes, sempre prementes, tem que agir, isto é, trabalhar. Eis o homo faber.
Destarte, para satisfazer às suas necessidades, o homem “trabalha” a natureza, humanizando-a. Catando frutos, caçando, pescando, plantando, domesticando animais, minerando ou transformando metais, industrializando as matérias-primas ou comerciando, o homo faber arranca da natureza sustento para a sobrevivência com o “suor do rosto”. Ao trabalhar, constrói a si próprio, sobrevive. A história nada mais é do que a história do homem e de seu fazer pelos tempos adentro. Seria impossível entendê-la, e as sociedades que sucessivamente engendrou, sem referi-las fundamentalmente às relações de produção, que o modo de produzir dos homens em cada época e de cada lugar tornou plausíveis.
As relações sociais, econômicas e culturais da sociedade primitiva, da sociedade grega, romana, árabe ou visigótica, da sociedade medieval, da sociedade capitalista, foram condicionadas por diferentes estruturas de produção. Ora, todas essas sociedades, como de resto todas as comunidades humanas, atuais e pretéritas, foram e são articuladas juridicamente. Fenômeno do mundo da cultura, o Direito está inegavelmente enraizado no social.
Contudo, embora o discipline, paradoxalmente é um seu reflexo. Isto porque é radicalmente instrumental. Mas o fenômeno jurídico não se reduz ao puro instrumento normativo. Da vida em sociedade brota o Direito. Ex facto oritur jus. O “ser” e o “outro”, convivendo, realçam o social, e, por certo, do fato social projetam-se interesses, carências e aspirações a suscitar regulação. Daí valores. E são eles que fecundam o Direito. Se o Direito é dever-ser, é dever-ser de algo, já o disse Vilanova, o recifense, como a sublinhar que o axiológico não paira no ar, desvinculado da concretude da vida. Os valores não são entes etéreos ou coleção de imperativos morais, imutáveis e intangíveis, tais quais essências sacrossantas. Não são supra-humanos nem nos chegam ab extra. Projetam-se do homem?na-história, do homem concreto, de um estar-aí-no-mundo-com-os-outros. Das necessidades às aspirações e, daí, às normas.
Assim, se o Direito está na norma, por certo brotou do espaço cultural de cada povo com as suas aspirações e os seus valores, epifenômenos da experiência social, nucleada à volta do processo de reprodução da vida humana. Ocorre que os critérios e valores que informam historicamente a construção das “legalidades vigentes” trazem a marca dos interesses concretos, até mesmo conflitantes, que do fundo mais profundo da sociedade emergem à luz colimando “formalização” e “juridicidade”. Trata-se então de dar “forma”, “eficácia” e “vigência” a prescrições que se reputam “certas” e “necessárias” à convivência humana e à “ordem pública”. Tudo isto é feito através de “instituições” que repassam para a ordem jurídica os conflitos de interesses existentes no meio social.
O Estado, assim como o Direito, são instrumentos de compromisso. Por isso mesmo se diz que o Direito é um “fenômeno social”, um fenômeno de “acomodação”. Há sempre uma relação de coerência entre Sociedade e Direito. A cada sociedade corresponde uma estrutura jurídica. O Direito da velha Atenas não serviria, é intuitivo, à moderna sociedade americana. Uma sociedade cuja estrutura de produção estivesse montada no trabalho escravo – o que ocorreu até bem pouco tempo – não poderia sequer pensar em capitalismo e, consequentemente, em viabilizá-lo através de um Direito do Trabalho baseado no regime de salariado.
Sem dúvida, o homem é quem elabora os sistemas sociais e o próprio Direito, e isto lhe é dado fazer porque é dotado de inteligência, consciência e vontade. No mundo cultural, nada sucede a não ser através do psiquismo do homo sapiens. Mas, antes dele, há o homo faber e, antes deste, o homo necessitudinis.
O espírito humano não vive no vazio nem retira do éter juízos, ideias e planos. Ao organizar a sociedade e o Direito, o homem não opera desvinculado da realidade. Quem pensa, e age, e constrói o mundo cultural, o mundo do Direito, é o homem, não o “homem-em-si”, mas o homem real, o homem concreto. O “eu”, já o disse o jusfilósofo,[1] “é uma relação”, “relação com o mundo exterior, com outros indivíduos. O Eu é como um sino: se houvesse o vácuo social em torno dele, nada se ouviria.” E mais:
“Cultural na sociedade é, portanto, sua própria organização. A organização é obra do homem cujo ser, cuja alma, cujo pensamento se expressam no conjunto de relações que dele fazem um primitivo, um bárbaro, um grego, um romano, um medieval, um tipo da Renascença ou da sociedade industrial moderna ou um proprietário, um escravo, um servo ou um proletário.” O pensamento humano e seus produtos culturais são desde sempre “produtos sociais”.
A capacidade de trabalhar por meio de conceitos não só forneceu ao homem instrumentos eficientes de se resolverem problemas práticos, como transplantou a vida mental do plano sensorial para o mundo de símbolos, ideias e valores.
A ideia de Direito liga-se à ideia de conduta e de organização. O Direito valoriza, qualifica, atribui consequências aos comportamentos em função da utilidade social sugerida pelos valores da sociedade a que serve. Para o Direito – instrumento de organização – a conduta é o momento de uma relação entre pessoas (relação intersubjetiva), e não o momento da relação entre pessoa e divindade ou sua consciência, seu foro íntimo. Seu problema específico é estabelecer a legalidade fornecedora dos critérios através dos quais é possível às pessoas produzirem, disporem e gozarem dos bens, dirimirem conflitos sociais e interpessoais, inibirem ações indesejáveis e punirem transgressões. “A ordem jurídica é o sistema de legalidade do Estado, expresso no conjunto de normas existentes.”[2]
O Direito é uma testemunha dos tempos. A análise das “legalidades vigentes” permite retratar as sociedades humanas em todos os seus planos e aspectos. O Direito enquanto ordem positiva reflete, tem refletido, o que lhe vai pela base. Ele é a prova acabada da nossa imperfeição. Instrumento de disciplinação das coletividades, através da planificação prévia dos comportamentos desejáveis, tanto tem servido a Agostinho e a sua Civitas Dei quanto a Hitler e o seu Reich de mil anos com igual eficácia.
Este seu caráter instrumental – técnica aperfeiçoada que é de obtenção de comportamentos – tem levado os juristas, com desespero, a gritar que o Direito preexiste ao Estado, sua fonte, e que existe à margem e até mesmo contra a lei, seu veículo. E, por isso, “nem tudo que é legal justo é”. Por certo, tiranias e injustiças do pretérito e do presente, a leste e a oeste, sustentam este grito. O Direito jamais foi sinônimo de justiça. A lei tem sido aqui e alhures, agora como antanho, mais um instrumento de reprimenda do que de libertação. As “ordens positivas” são feitas pelos “donos do poder”, pouco importando a ideologia que professem.
Tem sido necessário, pois, gritar a existência de um Direito natural, anterior e acima do Estado. Só que este Direito não é reconhecido pelos tribunais, não regula o dia a dia dos homens, nem jamais estancou a opressão e o arbítrio. É e tem sido sempre, literalmente, um grito de revolta destituído de positividade. Quando muito, serve de padrão para dizer como o “Direito-que-é” deveria ser. Temos a convicção de que a justiça é algo que se coloca para lá das “legalidades vigentes”.[3]
[1] LIMA, Hermes. Introdução à ciência do direito. 12. ed. Rio de Janeiro: Editora Livraria Freitas Bastos, 1962, p. 11 et seq.
[2] LIMA, Hermes. Introdução à ciência do direito. 12. ed. Rio de Janeiro: Editora Livraria Freitas Bastos, 1962, p. 38.
[3] Não obstante, os valores que se formam no tecido social “penetram” o Direito posto, influenciando na aplicação das normas, conferindo-lhes valências novas.
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