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FILOSOFIA DO DIREITO
Multiportas é a cooperação institucional da OAB. Nossa advocacia é interportas

Carlos Eduardo de Vasconcelos
12/08/2025
Neste artigo comento, com base na teoria dos sistemas, na hermenêutica insurgente de Luís Alberto Warat, na dogmática do mundo da vida de José Souto Maior Borges e no pragmatismo processual de Freddie Didier Jr., que a advocacia contemporânea deve operar entre os corredores, teatros e gabinetes de transição e integração dos diversos instrumentos e mecanismos de tratamento adequado de conflitos, promovendo articulações sistêmicas e estratégias dialógicas, jurídicas e interdisciplinares. Nesse sentido, proponho a metáfora “advocacia interportas”, um neologismo que efetivamente reflete a atuação do advogado nas práticas do nosso sistema de justiça multiportas.
Palavras-chave: Advocacia interportas. Interações estratégicas. Justiça multiportas. Sistema. Hermenêutica.
1. Introdução
A consolidação da chamada “justiça multiportas” tem trazido contribuições significativas para o tratamento de conflitos no Brasil, ao reconhecer a coexistência de dinâmicas diversas — judiciais, extrajudiciais e mistos — como vias legítimas de resolução de disputas. A metáfora das “multiportas” traduz a dimensão formal, dogmática e compartimentalizada do sistema de justiça; mas não reflete a sua dimensão concreta; nas dores, desesperos, risos e amores da interação e trânsito “interportas” entre as respectivas dinâmicas.
Quem seriam os advogados multiportas? Ora. Somos todos advogados e podemos transitar e cooperar entre as várias portas do Sistema de justiça. Todos nós somos advogados e, como tal, circulamos entre portas, com maiores ou menores habilidades, experiências e talentos. Ao atuarmos entre processos ou procedimentos que envolvam diferentes campos, instituições, modos ou métodos de solução de disputas, estaremos advogando interportas; entre portas. Pesquisei se seria razoável aglutinar o vernáculo e adotar a grafia “interportas” em lugar de inter portas. Conclusão: desde que seja um neologismo legítimo, com evidente valor teórico, nada obsta. Na concretude das práticas, atuamos interportas. Insisto por esse conceito em benefício de um movimento teórico-prático voltado à superação da tradicional concepção segmentada da justiça.
2. Limites da metáfora “multiportas”
A expressão “multiportas” consolidou-se na doutrina e na prática como representação da pluralidade de caminhos postos à disposição dos jurisdicionados. Contudo, seu uso reiterado passou a sugerir a existência de “portas” estanques, autossuficientes e desconectadas entre si. Essa fragmentação compromete o potencial integrador das práticas jurídicas e a própria noção de justiça enquanto dialética regrada.
Além disso, a má compreensão do modelo multiportas tende a restringir a atuação do advogado à função de indicar uma via procedimental, ignorando o papel estratégico, articulador e circulante entre as várias e combinadas modalidades de solução.
3. Fundamentos teóricos da noção interportas
3.1. A teoria dos sistemas
Segundo Niklas Luhmann, os sistemas sociais são estruturas autopoiéticas, mas comunicam-se através de interfaces complexas. Marcelo Neves, ao adaptar essa visão ao direito brasileiro, defende uma abordagem crítica dos sistemas normativos, com ênfase em sua abertura ao mundo da vida e à intersubjetividade.
No paradigma interportas, o advogado atua como elemento de interconexão entre os subsistemas — jurisdicional, negocial, restaurativo, arbitral e outros — promovendo circularidade, escuta e adaptação estratégica.
3.2. A hermenêutica do entre-lugar
Luís Alberto Warat propõe uma ruptura com a dogmática jurídica tradicional, valorizando a escuta, a linguagem e a sensibilidade. Para Warat, o saber jurídico não se esgota no texto normativo; ele habita o “entre-lugar” onde os sentidos emergem e os conflitos ganham densidade existencial. O advogado interportas reconhece esse entre-lugar e nele atua com criatividade, ética e alteridade. Ali também se pratica um Direito ao consenso, à humanização, à pacificação social, à restauração de vínculos quebrados por violências entre comunidades humanas e povos.
3.3. A dogmática do mundo da vida
José Souto Maior Borges defende uma dogmática que se abre ao mundo da vida, superando o formalismo jurídico. A “advocacia interportas” realiza essa abertura ao considerar, na construção das estratégias jurídicas e, nos limites do diálogo regrado, as narrativas existenciais, os valores comunitários e a concretude do caso.
3.4. O pragmatismo processual
Freddie Didier Jr. concebe o processo como instrumento à disposição do cidadão. O advogado interportas incorpora essa racionalidade instrumental, utilizando os meios adequados à realização dos direitos materiais com eficiência, proporcionalidade e efetividade. No Brasil, o Sistema Multiportas é auto-organizado, não linear, a partir da interação dos seus elementos concretos. Repito: interação dos seus elementos concretos.
4. Advocacia interportas: conceito e implicações
O neologismo “advocacia interportas” designa a prática advocatícia situada nos espaços de transição, articulação e conexão entre os diferentes mecanismos de resolução de controvérsias. Essa advocacia age de modo transversal e estratégico, integrando técnicas negociais e estratégias, em coordenação com mediadores, árbitros, etc, em variadas modalidades e cooperações interdisciplinares. Valoriza o diálogo entre textos normativos e contextos sociais.
Atua com foco na escuta qualificada, na composição dialógica e na promoção de soluções coerentes com os interesses das partes e com os valores democráticos.
A advocacia interportas, nesse sentido, opera não apenas como “defesa de direitos”, mas como instrumento/engenharia sistêmica de soluções jurídicas, interdisciplinares e tecnológicas, facilitadas por IA generattiva e adaptadas à complexidade do mundo atual.
5. Considerações finais
A metáfora da justiça multiportas, embora relevante, mostra-se insuficiente para designar a dimensão pragmática, integradora e inter portas do próprio Sistema Multiportas
Fundamentada em uma visão sistêmica, hermenêutica e pragmática, a locução “advocacia interportas” pressupõe uma OAB mais fortalecida e alinhada com o papel que lhe cabe perante um Sistema de Justiça Multiportas, enraizado nas práticas relacionais do mundo da vida. A metáfora “advocacia interportas” é compatível com a combatividade construtiva do advogado que atua nas práticas interportas. Daí porque advogados de todo o país têm percebido a necessidade de criação, no âmbito do Conselho Federal da OAB, de uma COMISSÃO NACIONAL PERMANENTE DE INTEGRAÇÃO DAS ESTRATÉGIAS DO SISTEMA BRASILEIRO DE JUSTIÇA MULTIPORTAS. Merecemos a alegria das soluções amigáveis.
Referências
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. Salvador: Juspodivm, 2022.
LUHMANN, Niklas. Sistema jurídico e dogmática jurídica. Porto Alegre: Fabris, 2009.
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016.
SOUTO MAIOR BORGES, José. Dogmática Jurídica Dialógica. Recife: Ed. Universitária, 2011.
WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994.
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