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A norma jurídica como um relato vencedor

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A norma jurídica como um relato vencedor

João Maurício Adeodato

João Maurício Adeodato

01/12/2023

Diferentemente das formas puras de Kant – o espaço, o tempo, as categorias –, que condicionam o conhecimento de qualquer ser humano, o relato vencedor é fruto de escolhas de quem tem poder: é possível que consista no relato da maioria, dos mais cultos, dos mais bem armados, dos mais coesos, dos mais ricos. Para a perspectiva retórica, a ação do sujeito não é condicionada por formas determinantes, mas por uma linguagem que ele mesmo constrói, seu arbítrio é mais amplo. O relato dominante pode ser até contra as determinações do espaço e do tempo, desde que obtenha apoio, como se vê no relato de que a Terra é plana ou que vírus não existem. Assemelha-se ao conceito de “assertividade garantida”, de John Dewey, tal como criticado por Bertrand Russell:

César atravessou o Rubicão? Eu consideraria uma resposta afirmativa como inalteravelmente necessária para um evento passado. Dr. Dewey decidiria se responder sim ou não mediante uma apreciação de eventos futuros… […] Se eu achar muito desagradável a crença de que César atravessou o Rubicão, […] posso, se tiver habilidade e poder suficientes, arranjar um ambiente social em que a afirmação de que ele não atravessou o Rubicão terá “assertividade garantida”.1

Se a linguagem constrói o passado e modifica os relatos da memória, sobre aquilo que já ocorreu no tempo e supostamente foi percebido por todos, mais ainda ela constrói o futuro, que ainda não existe. As expectativas são narrativas que cada pessoa faz a si mesma e que as pessoas fazem entre si, cujo amálgama resulta no ambiente comum, a “realidade” ou “mundo real”. Desse modo o que o senso comum percebe como “realidade” é um relato constituído, fabricado pela linguagem.

A perspectiva da norma como narrativa procura sair do funcionalismo sistêmico, abandonando suas pretensões cientificistas de desvelar características e leis no ambiente social. De uma perspectiva retórica, então, há narrativas internas (autorrelatos), narrativas que as pessoas contam a si mesmas, que tanto podem permanecer ocultas quanto se exteriorizar na comunicação, interagir e se mesclar com os relatos das demais pessoas (heterorrelatos), além de ganhar outros significados que os próprios narradores não conseguem controlar.

A linguagem intersubjetiva ganha assim uma espécie de vida própria, na medida em que seu significado não é determinado pelo orador nem pelo ouvinte, nem simplesmente é autodeterminado. Foi esse fenômeno que Hegel, à sua maneira, percebeu como “espírito objetivo” (objektiver Geist) ou “objetividade espiritual” (geisthafte Gegenständlichkeit) e inseriu em sua metafísica ontológica. Assim como o espírito objetivo, só a linguagem humana se aparta tanto do emissor quanto do receptor.2

Fiel a uma postura cética, a perspectiva retórica entende que não só a linguagem científica, mas toda linguagem se compõe de paradigmas, que de alguma maneira controlam os significados dos significantes e constituem um “holismo semântico”, o qual faz todo significado depender de contexto. Daí a “incomensurabilidade” da linguagem e seus tradicionais problemas de ambiguidade, vagueza e porosidade.3 E daí a importância da norma, não exatamente como texto, mas sim como mecanismo narrativo de controle individual e social. Ao sugerir como o futuro deve ser, a norma controla expectativas e reduz complexidade social, padroniza comportamentos e diminui a angústia diante do futuro. Além dos diversos tipos de normas, a norma jurídica, por ser coercitiva, constitui instituições, que desempenham essa tarefa de modo especial.

Isso é discutido mais detalhadamente no meu último livro, Introdução ao Estudo do Direito, publicado em 2023 pela Editora GEN-Forense.

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NOTAS

1 “Did Caesar cross the Rubicon? I should regard an affirmative answer as unalterably necessitated by a past event. Dr. Dewey would decide whether to say yes or no by an appraisal of future events… […] If I find the belief that Caesar crossed the Rubicon very distasteful, […] I can, if I have enough skill and power, arrange a social environment in which the statement that he did not cross the Rubicon will have ‘warranted assertability’”. RUSSELL, Bertrand. History of Western Philosophy – and its Connection with Political and Social Circumstances from the Earliest Times to the Present Day. London: Routledge, 1993, p. 780.

2 GEHLEN, Arnold. Der Mensch – seine Natur und seine Stellung in der Welt. Wiebelsheim: Aula-Verlag, 2009, p. 130 s.

3 NAVARRO, Rolando R. La inconmensurabilidad en el lenguaje. Maracaibo: Universidad del Zulia, 1997, p. 16-18 e p. 50.

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