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O contrato de representação comercial e a recuperação judicial do representado
Paulo Penalva Santos
17/03/2022
O objetivo deste artigo é analisar o tratamento do crédito do representante comercial na recuperação judicial do representado, considerando que o dispositivo do art. 44 lei 4.886/1965, que regula a atividade de representante comercial, com a redação dada pela lei 14.195/2021, passou a ter o seguinte teor:
“Art. 44 – No caso de falência ou recuperação judicial do representado, as importâncias por ele devidas ao representante comercial, relacionadas com representação, inclusive comissões vencidas e vincendas, indenização e aviso prévio, e qualquer outra verba devida ao representante oriunda da relação com base nesta Lei, serão créditos da mesma natureza dos créditos trabalhistas para fins de inclusão no pedido de falência ou plano de recuperação judicial.
Parágrafo único. Os créditos devidos ao representante comercial reconhecidos em título executivo judicial transitado em julgado após o deferimento do processamento da recuperação judicial, e a sua respectiva execução, inclusive quanto aos honorários advocatícios, não se sujeitarão à recuperação judicial, aos seus efeitos e à competência do juízo da recuperação, ainda que existentes na data do pedido, e prescreverá em 5 (cinco) anos a ação do representante comercial para pleitear a retribuição que lhe é devida e os demais direitos garantidos por esta Lei.” (grifos acrescentados).
No enfrentamento do tema serão examinadas a constitucionalidade formal e material das alterações introduzidas pela lei 14.195/2021, que resultou da conversão em lei da Medida Provisória nº 1.040/2021 (“MP nº 1.040/2021” ou “MP”). No exame da constitucionalidade material será analisada a possibilidade de interpretação conforme a Constituição, considerando a doutrina e a jurisprudência construída na vigência da anterior redação do art. 44 da lei 4.886/1965, que, incluído pela lei 8.420/1992, estabelecia:
“Art. 44 – No caso de falência do representado as importâncias por ele devidas ao representante comercial, relacionadas com a representação, inclusive comissões vencidas e vincendas, indenizações e aviso prévio, serão considerados créditos da mesma natureza dos créditos trabalhistas.”
Inconstitucionalidade formal
De acordo com a sua exposição de motivos, a MP 1.040/2021 foi editada com o objetivo de melhorar o ambiente de negócios no Brasil e impactar positivamente a posição do País na classificação geral do relatório Doing Business do Banco Mundial.
Para tanto, a MP previu mudanças legislativas destinadas a simplificar a abertura de empresas, aperfeiçoar a proteção aos acionistas minoritários, mediante alterações na Lei das Sociedades Anônimas, desburocratizar o comércio exterior, elevar a segurança jurídica, tudo com o objetivo final de melhorar o ambiente de negócios.
A urgência e o relevante interesse público que motivaram a edição da MP foram justificados na necessidade de melhorar a posição do Brasil no Relatório Doing Business 2022, de modo a minimizar os efeitos negativos da pandemia de Covid-19 sobre a atividade econômica, em razão reflexos que essa melhoria tem nas entradas anuais de investimento estrangeiro[1].
Durante a sua tramitação no Congresso Nacional, a MP recebeu mais de três centenas de emendas parlamentares, dentre elas a que resultou na alteração da lei 4.886/1965, dando nova redação ao caput e incluindo o parágrafo único do art. 44. Com isso, foi estabelecida relevante modificação no tratamento que se pretende atribuir aos créditos de titularidade de representante comercial na falência e na recuperação judicial.
O casuísmo da modificação é denunciado, em primeiro lugar, por ter vindo após as importantes alterações na legislação recuperacional e falimentar, que, após ampla discussão no Congresso Nacional, foram introduzidas pela lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020.
Além disso, as alterações não têm pertinência com o escopo da MP 1.040/2021. Muito pelo contrário, trazendo insegurança jurídica em matérias que já estavam consolidadas na doutrina e na jurisprudência, a alteração vem na contramão do objetivo de melhorar o ambiente de negócios. Se não, vejamos.
Insegurança jurídica trazida pela nova redação do art. 44 e seu parágrafo único. Na vigência do art. 44 da lei 4.886/1965, com a redação dada pela Lei nº 8.420/1992, a jurisprudência, com apoio na doutrina, consolidou-se no sentido de que os créditos equiparados aos trabalhistas, na falência e na recuperação judicial do representado, são aqueles de titularidade do representante comercial pessoa física, não beneficiando o representante comercial pessoa jurídica:
“Agravo de Instrumento. Impugnação à relação de credores. Crédito decorrente de representação comercial titularizado por sociedade empresária, dotada de personalidade jurídica, não se equipara aos créditos derivados da legislação do trabalho. O artigo 44 da Lei n° 4.886/65 não foi revogado pelo artigo 83, I, da lei 11.101/2005, nem pela Lei Complementar n° 118/2005 que deu nova redação ao artigo 186 do Código Tributário Nacional. No entanto, sua interpretação deve ser feita sob a óptica do artigo 114 da Constituição Federal, com a redação da Emenda Constitucional 45/2004, que trata da competência da Justiça do Trabalho para dirimir os conflitos das relações de trabalho, que abrange relações de emprego e relação de trabalho prestado por pessoa física (v.g. representante comercial autônomo). A equiparação do crédito derivado de representação comercial aos créditos decorrentes da legislação de trabalho, na falência e na recuperação judicial (art. 83, I, LRF) só pode ser reconhecida quando o representante comercial for pessoa física ou “firma individual” inscrita no Registro de Empresas. Agravo provido para classificar o crédito derivado de representação comercial, titularizado por pessoa jurídica, como quirografário, para fins de falência e recuperação judicial.” (AI nº 550 678 4/4-00 TJSP, Seção de Direito Privado, Câmara Especial de Direito Privado, Relator Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças, unânime, julgado em 27.08.2008).
Da leitura do voto do Relator colhe-se que é a natureza alimentar dos créditos que autoriza a equiparação ao crédito trabalhista[2]:
“III) A solução justa para a hipótese retratada nestes autos tem que levar em conta o entendimento do Juiz Marcelo Papaléo de Souza, acima transcrito, que ao tratar da competência da Justiça do Trabalho, com acuidade, afirma que apenas os representantes comerciais pessoas físicas poderão buscar a solução de seus conflitos com os representados na Justiça Laboral, em virtude da natureza alimentar de seus créditos. Por isso, somente poderão invocar a equiparação de seus créditos decorrentes do exercício de representação comercial, na falência ou recuperação do representado, os representantes comerciais pessoas físicas (nesta categoria incluídos os inscritos nas Juntas Comerciais como “firmas individuais” […].”
A nova redação do caput ora comentado não contribui para a segurança jurídica, que é uma das condições identificadas pelo Presidente da República na edição da MP 1.040/2020, para melhorar o ambiente de negócios no Brasil.
Com efeito, em atenção ao princípio da supremacia da Constituição tal dispositivo só poderá ser interpretado no sentido que vinha sendo adotado pela jurisprudência consolidada do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (“TJSP”), e isso leva a concluir, em primeiro lugar, que a alteração ou era desnecessária ou é materialmente inválida (tema que será analisado no item 4) e, em segundo lugar, que em qualquer hipótese a modificação poderá reacender discussões em matéria já pacificada na jurisprudência, o que não contribui para melhoria do ambiente de negócios no Brasil.
Por sua vez, o parágrafo único do art. 44 da lei 4.886/1965, incluído pelo art. 53 da lei 14.195/2021, afastou o critério adotado pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) em julgamento de recurso especial afetado ao rito do art. 1.036 do Código de Processo Civil de 2015 (“CPC/2015”), para resolver controvérsia assim delimitada: “interpretação do artigo 49, caput, da lei 11.101/2005, de modo a definir se a existência do crédito é determinada pela data de seu fato gerador ou pelo trânsito em julgado da sentença que o reconhece. 2. Recurso especial afetado ao rito do artigo 1.036 do CPC/2015.” (ProAfR no REsp: 1843332 RS 2019/0310053-0, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 28/04/2020, S2 – SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 06/05/2020).
Pois bem, no julgamento dos recursos especiais paradigmas do Tema Repetitivo 1.051, foi afastada a interpretação no sentido de que a existência do crédito seria determinada pela data do trânsito em julgado da sentença que o reconhece, com a fixação, para os fins do art. 1.040 do CPC/2015 da seguinte tese: “Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador.” (REsp 1843332/RS, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 09/12/2020, DJe 17/12/2020).
Além da inconstitucionalidade material (tema que será tratado no item 4), o parágrafo único do art. 44 da lei 4.886/1965, incluído pela lei 14.195/2021, não contribui para a elevar a segurança jurídica, ao adotar a data do trânsito em julgado como o marco temporal para identificar os créditos sujeitos à recuperação judicial do representado, afastando, assim, o critério estabelecido no Tema Repetitivo 1.051.
Violação do processo legislativo. Além de a exposição de motivos indicar o seu objetivo, o art. 1º da MP 1.040/2021, o delimita claramente ao estabelecer:
“Esta Medida Provisória dispõe sobre a facilitação para abertura de empresas, a proteção de acionistas minoritários, a facilitação do comércio exterior, o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos – Sira, as cobranças realizadas pelos conselhos profissionais, a profissão de tradutor e intérprete público, a obtenção de eletricidade e a prescrição intercorrente na lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil”[3].
Da leitura da exposição de motivos e do art. 1º da MP 1.040/2021, conclui-se que o Presidente da República não cogitou de alteração da legislação falimentar ou da instituição de privilégio de representantes comerciais, muito menos da introdução no direito positivo de normas que são incompatíveis com os objetivos da MP, já que são motivo de grave insegurança jurídica, como visto acima.
Há, assim, inequívoca falta de pertinência temática entre a emenda parlamentar que deu origem à alteração do art. 44 e seu parágrafo único, da lei 4.886/1965, com a MP 1.040/2021.
Esse tema – emendas de contrabando – foi objeto de profunda discussão no julgamento da ADI 5.127-DF, que foi julgada improcedente por maioria, mas “com a cientificação do Poder Legislativo de que o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento, ex nunc, de que não é compatível com a Constituição da República a apresentação de emendas parlamentares sem relação de pertinência temática com medida provisória submetida à apreciação do Congresso Nacional” (DJe 15.05.2016).
Conforme sintetizado na ementa, viola “a Constituição da República, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo (arts. 1º, caput, parágrafo o único, 2º, caput, 5º, caput, e LIV, CRFB), a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória.”.
Nessas condições, em consonância com a orientação do plenário do Supremo Tribunal Federal (“STF”), firmada com efeito ex nunc, em maio de 2016, no julgamento da ADI 5.127-DF, conclui-se pela inconstitucionalidade formal do art. 44 e seu parágrafo único da lei 4.886/1965, na redação dada pela lei 14.195/2021, que resultou da conversão da MP 1.040/2021, porque se trata de disposição que teve origem em emenda parlamentar sem pertinência com o objeto da MP.
Inconstitucionalidade material e interpretação conforme a Constituição
Na recuperação judicial, os credores a ela sujeitos são divididos em quatro classes (lei 11.101/2005, art. 41, incisos I a IV), todos, em regra, com direito a voto na assembleia geral de credores.
Na Classe I, estão os titulares de “créditos decorrentes da legislação do trabalho ou decorrentes de acidente do trabalho” (“Crédito Trabalhista”), que mereceu tratamento favorecido na Lei, sendo os benefícios mais relevantes os estabelecidos no art. 54 da lei 11.101/2005, no sentido de que o plano não poderá prever prazo superior a 1 (um) ano para o pagamento dos créditos vencidos até a data do pedido (caput), podendo ser estendido em até dois anos, mediante apresentação de garantias suficientes para garantir a integralidade dos créditos e desde que aprovado pela Classe I (§2º do art. 54), o que corresponde à vedação ao cram down.
Por sua vez, na falência, os créditos trabalhistas, limitados a até 150 (cento e cinquenta salários-mínimos), preferem a todos os demais (lei 11.101/2005, art. 83 e Código Tributário Nacional, art. 186).
O que justifica o tratamento favorecido é a natureza alimentar dos créditos decorrentes da relação de trabalho, cuja caracterização, como visto no item 3 acima, não é exclusiva daquele que presta serviços pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho, podendo validamente alcançar créditos de outros trabalhadores, que, tal como os créditos dos empregados, têm natureza alimentar.
Relembre-se que a Corte Especial do STJ, no julgamento do REsp 1.152.218/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe de 09.10.2014, decidiu sob o sistema dos recursos repetitivos na vigência do Código de Processo Civil de 1973, que “[os] créditos resultantes de honorários advocatícios têm natureza alimentar e equiparam-se aos trabalhistas para efeito de habilitação em falência, seja pela regência do decreto-lei 7.661/1945, seja pela forma prevista na lei 11.101/2005, observado, neste último caso, o limite de valor previsto no artigo 83, inciso I, do referido Diploma legal.” (grifos aditados)
No âmbito das relações de direito público, o debate a respeito do tratamento a ser dado ao crédito decorrente de relação de trabalho sem vínculo empregatício foi travado no STF com o objetivo de identificar o significado de “débitos de natureza alimentícia”, de que trata o § 1º do art. 100, da Constituição da República[4], segundo o qual os precatórios relativos a tais créditos serão pagos com preferência em relação aos demais créditos.
Os casos que ensejaram a discussão são relativos a precatórios expedidos para pagamento de honorários advocatícios, destacados do principal. Consolidada a jurisprudência, foi editada a Súmula Vinculante 47, aprovada nos termos do art. 103-A da Constituição da República, que declarou os honorários advocatícios incluídos na condenação ou destacados do montante principal devido ao credor consubstanciam verba de natureza alimentar[5].
A Súmula Vinculante foi aprovada antes da vigência do CPC/2015, o qual, no § 14 do art. 85 reafirma a natureza alimentar dos honorários, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho.
Há que se considerar, ainda, que a peculiar natureza do crédito relativo a honorários advocatícios tem fundamento na própria natureza da profissão ante a essencialidade do advogado para o funcionamento do Poder Judiciário, conforme prescreve a Constituição da República: “O advogado é essencial à administração da Justiça” (art. 133). Daí a precisa observação de José Afonso da Silva, com apoio na lição de Eduardo J. Couture[6]:”A advocacia não é apenas uma profissão, é também um múnus e “uma árdua fadiga posta a serviço da justiça”.”
O advogado, no seu mister privado, presta serviço público e exerce função social (lei 8.906/1994, art. 2º, §1º). É essencial à administração da justiça porque sem a sua presença não se cumpre a garantia do devido processo legal, que integra o rol das garantias individuais que constituem cláusula pétrea (CRFB, art. 5º, LIV e LV, cc art. 60, §4º, I).
A proteção conferida aos honorários advocatícios não constitui benesse ou privilégio conferido ao advogado, mas garantia deferida aos jurisdicionados, porque os honorários proporcionam ao advogado os meios para que ele, sem mercantilizar a profissão – o que lhe é absolutamente vedado[7] – obtenha meios necessários para a sua subsistência e de sua família, em condições dignas, equiparáveis às demais profissões incumbidas da Administração da Justiça, e, assim, exercer o múnus que a Constituição e a Lei lhe atribuem.
Em suma, a investigação da compatibilidade do tratamento favorecido a determinados créditos no processo de falência e de recuperação com a Constituição deve ser feita mediante a averiguação da existência de fundamento constitucional que autorize o tratamento diferenciado sem violar o princípio do par condicio creditorum, corolário do princípio da isonomia.
Interpretação conforme a Constituição. Examinadas as alterações do art. 44 da lei 4.886/1965, o que se conclui, no aspecto material, é que o caput é passível de preservação, mediante interpretação conforme a constituição, mecanismo de controle de constitucionalidade que impede a aplicação da norma em sentido que conduziria à sua inconstitucionalidade, como leciona o Ministro Luís Roberto Barroso:
“[…] a interpretação conforme a Constituição não é mero preceito hermenêutico, mas, também, um mecanismo de controle de constitucionalidade pelo qual se declara legítima uma determinada leitura da norma legal.
Na interpretação conforme a Constituição, o órgão jurisdicional declara qual das possíveis interpretações de uma norma legal se revela compatível com a Lei Fundamental. Isso ocorrerá, naturalmente, sempre que um determinado preceito infraconstitucional comportar diversas possibilidades de interpretação, sendo qualquer delas incompatível com a Constituição. Note-se que o texto legar permanece íntegro, mas sua aplicação fica restrita ao sentido declarado pelo tribunal.” (Interpretação e aplicação da Constituição, Editora Saraiva, 1996, p. 175).
Trata-se de mecanismo que tem sido adotado pelo Supremo Tribunal Federal, ao julgar parcialmente procedente ação direta de inconstitucionalidade, atribuindo ao dispositivo de lei impugnado “interpretação conforme à Constituição da República”[8] para afastar a interpretação que conduziria à inconstitucionalidade da norma infraconstitucional impugnada.
Para preservá-lo, o caput art. 44 da lei 4.886/1965, com a redação que lhe foi dada pela lei 14.195/2021, deve ser entendido no sentido adotado pela jurisprudência do TJSP citada no item 3, que distingue o crédito do representante comercial autônomo (pessoa física) do crédito da representação comercial exercida por pessoa jurídica/empresa, para afastar a equiparação do crédito de titularidade do representante comercial pessoa jurídica do trabalhador sob vínculo, admitindo-a para o representante comercial pessoa física.
A distinção tem fundamento constitucional, tendo em vista que para o representante comercial autônomo (pessoa física), a remuneração decorrente do contrato de representação comercial tem natureza alimentar, tal como o crédito do empregado e essa identidade de natureza autoriza a equiparação, sem incorrer em violação ao princípio do par condicio creditorum.
A natureza alimentar não está presente no crédito da empresa que exerce atividade de representação comercial, de modo que a equiparação aos créditos decorrentes da legislação do trabalho resultaria em privilégio odioso, por injustificado e, portanto, incompatível com o princípio constitucional da isonomia.
Por essa razão, a interpretação no sentido de que o caput do art. 44 da lei 4.886/1965, com a redação da lei 14.195/2021, abarcaria créditos de empresas, deve ser afastada ante a ausência de fundamento constitucional que possa justificar o privilégio.
Pondere-se ainda, que a sociedade empresária, pessoa jurídica que exerce atividade de representação comercial, pode ser uma grande empresa que não atende os requisitos da Lei Complementar 123/2006 para ser enquadrada como microempresa ou empresa de pequeno porte e, caso os seus créditos fossem equiparados aos decorrentes da legislação do trabalho, tais créditos passariam a ter, na falência e na recuperação judicial, tratamento mais benéfico do que o atribuído à microempresa ou empresa de pequeno porte.
Portanto, além de violar o princípio constitucional da isonomia, a interpretação que considere o crédito da grande empresa abrangido pelo caput do art. 44 da lei 4.886/1965, com a redação da pela lei 14.195/2021, é inconstitucional também porque viola o art. 170, IX, da CRFB, que ao dispor sobre os princípios da ordem econômica, inclui o do tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte.
No sistema recuperacional, o princípio do tratamento favorecido foi atendido com a inclusão, no art. 41, dos créditos Classe IV, dos titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte, medida que resulta no fortalecimento deste grupo de credores nas negociações com o devedor em recuperação judicial, com reflexos nas condições de pagamento dos respectivos créditos.
Norma materialmente inconstitucional. A partir das inovações trazidas com a introdução, pela lei 14.195/2021, do parágrafo único do art. 44 da lei 4.886/1965, passou-se a atribuir ao representante comercial tratamento diferenciado – e favorecido – no elemento temporal considerado para identificar os créditos sujeitos à recuperação judicial do representado.
De fato, enquanto para todos os demais credores o critério temporal previsto no art. 49 da lei 11.101/2005 é o da data do fato gerador da obrigação, para a categoria dos representantes comerciais, o critério que foi preconizado seria o da data do trânsito em julgado da sentença que reconhecer o crédito.
O tratamento é mais benéfico do que o atribuído ao titular de crédito decorrente da legislação do trabalho, ao qual o caput pretendeu equiparar o crédito do representante comercial. Isso porque, enquanto o trabalhador tem a sujeição do seu crédito à recuperação judicial definida pela aplicação do critério da “existência na data do pedido”, o crédito do representante comercial, ainda que existente na data do pedido, não ficaria sujeito se reconhecido por sentença transitada em julgado após o ajuizamento do pedido de recuperação.
Trata-se, assim, de privilégio odioso, mesmo quando o caput do art. 44 da lei 4.886/1965 é interpretado conforme a Constituição, no sentido de que o crédito equiparado ao decorrente da legislação do trabalho é, apenas, o de titularidade do representante comercial pessoa física, porque depois de equiparar, estabeleceu-se no parágrafo único tratamento mais benéfico do que o atribuído ao próprio empregado. Há, assim, clara violação ao princípio constitucional da isonomia consagrado no caput do art. 5º da Constituição da República.
Garantia constitucional do ato jurídico perfeito. Ainda que fossem superadas as inconstitucionalidades do parágrafo único do art. 44 lei 4.886/65 acima mencionadas, seria preciso fazer uma interpretação conforme a Constituição da República para se concluir que essas alterações apenas são aplicáveis às recuperações judiciais ajuizadas e às falências decretadas após a vigência da lei 14.195/2021.
O art. 5º, inciso XXXI da Constituição da República estabelece que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Por sua vez, “reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou” (Decreto-Lei nº 4.657/42). Já o art. 49 da lei 11.101/2005 dispõe que “estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos”.
Do exposto facilmente se conclui que é a data do pedido o marco temporal que submete os créditos à recuperação judicial. Isso significa que as recuperações judiciais requeridas anteriormente lei 14.195/2021, já possuíam o seu rol de créditos sujeitos com base na norma então vigente. A classificação de créditos segundo a lei vigente é ato jurídico perfeito protegido pela Constituição da República. Portanto, deve ser afastada a interpretação de que lei posterior pode “reclassificar” os créditos existentes e já submetidos à recuperação judicial.
Conclusões
O art. 44 e respectivo parágrafo único da Lei nº 4.886/65, com a redação dada pela Lei nº 14.195/2021, é motivo de insegurança jurídica, porque:
(i) a alteração do caput ou era desnecessária ou pretendeu estabelecer privilégio para determinada atividade empresarial já afastado por jurisprudência consolidada no sentido de que somente o crédito de natureza alimentar, de titularidade do representante comercial pessoa física, é que foi validamente equiparado ao crédito decorrente da legislação do trabalho, não o crédito de empresa que exerça atividade de representação comercial;
(ii) a alteração estabelecida no parágrafo único é conflitante com a tese firmada no julgamento, pela Segunda Seção do STJ, dos recursos especiais paradigmas do Tema Repetitivo 1.051, com a definição, para os fins do caput do art. 49 da Lei nº 11.101/2005, da seguinte tese de direito: “Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador”; o conflito está caracterizado pela pretensão de se excluir dos efeitos da recuperação judicial os créditos dos representantes comerciais anteriores ao pedido, se declarados por sentença transitada após o ajuizamento da recuperação judicial.
Sendo motivo de insegurança jurídica, as alterações padecem do vício de inconstitucionalidade formal, porque provenientes de Emenda parlamentar ao Projeto de Conversão da MP 1.040/2021, sem nenhuma pertinência temática com a matéria disposta na MP, cujo objetivo foi o de melhorar o ambiente de negócios, inclusive estabelecendo normas voltadas a garantir a necessária segurança jurídica, justamente o que a Emenda não faz.
O caput do art. 44 da Lei nº 4.886/65, conforme alterado pela Lei nº 14.195/2021, deve ser interpretado no sentido de que os créditos do representante comercial pessoa física são equiparados ao Crédito Trabalhista na recuperação judicial e na falência do representado. Eventual interpretação que inclua a empresa entre os destinatários do tratamento favorecido importa em criar privilégio sem fundamento constitucional plausível e, por isso, deve ser afastada por incompatível com a Constituição. Por outro lado, o dispositivo comporta interpretação conforme a Constituição, no sentido de que o crédito equiparado ao Crédito Trabalhista é o de titularidade do representante comercial pessoa física, que tem natureza alimentar e, assim, é merecedor do mesmo tratamento dispensado ao Crédito Trabalhista.
O parágrafo único do art. 44 Lei nº 4.886/65, incluído pela Lei nº 14.195/2021, é materialmente inconstitucional porque, sem nenhuma justificação plausível para tanto, cria exceção ao sistema da Lei nº 11.101/2005, sedimentado em julgamento pelo regime dos recursos repetitivos, com fixação de tese vinculante para todos os órgãos do Poder Judiciário. O parágrafo único pretende atribuir a determinada categoria – a dos representantes comerciais, pessoa física ou jurídica – tratamento mais favorecido do que o dispensado ao Crédito Trabalhista, incorrendo, assim, em clara violação do princípio constitucional da isonomia.
Por fim, caso superadas as inconstitucionalidades expostas, ainda assim seria preciso ser feita interpretação conforme a Constituição da República para se concluir que essas alterações apenas são aplicáveis às recuperações judiciais ajuizadas e às falências decretadas após a vigência da lei 14.195/2021, uma vez que o art. 5º, inciso XXXI da Constituição da República garante que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, sendo a data do pedido de recuperação judicial e a decretação da falência, respectivamente, os marcos temporais que submetem os créditos a estes regimes.
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NOTAS
[1] Conforme exposição de motivos, que corresponde à proposta dos Ministros Economia, da Justiça e de Minas e Energia. da Advocacia-Geral da União e da Secretaria-Geral da Presidência da República, dirigida ao Chefe do Poder Executivo:
“11. Por fim, temos a certeza de que a revisão do arcabouço legal por meio das inovações e mudanças mencionadas mostra-se urgente e de relevante interesse público por se inserir no conjunto de medidas de curto prazo editadas pelos Ministérios da Economia, da Justiça e de Minas e Energia, da Advocacia-Geral da União e da Secretaria-Geral da Presidência da República que objetivam minimizar os efeitos negativos da pandemia de Covid-19 sobre o nível da atividade econômica. Além disso, para que o Brasil alcance a posição desejada no Relatório Doing Business 2022, é necessário implementar as mudanças regulatórias a tempo para que sejam refletidas pelos respondentes no primeiro semestre de 2021 e constem do relatório 2022.
12. Registre-se, ademais, que Resultados de um estudo de 2013 do Banco Mundial sugerem que, em média, uma melhoria de 1 ponto percentual no ambiente de negócios medido pela pontuação do Doing Business (em comparação com as melhores economias para se fazer negócios) representa uma diferença nas entradas anuais de Investimento Estrangeiro Direto na ordem de US$250-500 milhões por ano.” Disponível aqui (acesso em 11.10.2021).
[2] No mesmo sentido, Agravo de Instrumento nº 2123265-10.2020.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator Desembargador Araldo Telles, julgado em 27.07.2020.
[3] Disponível aqui. (acesso em 11.10.2021).
[4] Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
§ 1º Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez, fundadas em responsabilidade civil, em virtude de sentença judicial transitada em julgado, e serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto sobre aqueles referidos no § 2º deste artigo.
[5] Súmula vinculante 47 – Enunciado: Os honorários advocatícios incluídos na condenação ou destacados do montante principal devido ao credor consubstanciam verba de natureza alimentar cuja satisfação ocorrerá com a expedição de precatório ou requisição de pequeno valor, observada ordem especial restrita aos créditos dessa natureza.
[6] Eduardo J. Couture. Los Mandamientos del Abogado, Buenos Aires, Depalma, 1951, pp. 11 e 31, apud, José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo, Editora Revista dos Tribunais, 6ª Edição, 2ª Tiragem, São Paulo, 1990, pp. 502/503.
[7] Nesse sentido o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil, aprovado pela Resolução nº 2/2015 do Conselho Federal da OAB, estabelece: “Art. 5º – O exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização.” (destaques acrescentados).
[8] Nesse sentido: (ADI 5139, STF – Tribunal Pleno, Relatora: Min. CÁRMEN LÚCIA, Julgamento: 11/10/2019, Publicação: 06/11/2019).