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Mora e protesto em títulos de crédito: duas questões controvertidas na jurisprudência do STJ
12/02/2020
Protesto indevido
Na tentativa de estabilizar os regimes de precedentes, o STJ fixa teses e divulga julgamentos repetitivos que, em matéria comercial, representam importante fonte de estabilização interpretativa e segurança negocial.
Em matéria de protesto, conjunto de julgados do STJ cuidou da legitimidade passiva ad causam e critérios de imputação de responsabilidade para o caso de protesto[1] indevido[2] de título de crédito por endossatário. Ao receber o título com conteúdo translativo, por meio de endosso, ainda que contenha vício formal extrínseco ou intrínseco, o STJ entendeu que a responsabilidade pelo protesto é do endossatário. Resta-lhe o regresso contra coobrigados, como endossantes e avalistas.
O entendimento foi firmado pela 2ª Seção do STJ, sob regime de recurso repetitivo do art. 543-A do CPC/73 (atual art. 1.036 do CPC/2015), consagrando o entendimento de que “o endossatário que recebe, por endosso translativo, título de crédito contendo vício formal, sendo inexistente a causa para conferir lastro a emissão de duplicata, responde pelos danos causados diante de protesto indevido, ressalvado seu direito de regresso contra os endossantes e avalista” (STJ – REsp nº 1.213.256). Em seguida, tal entendimento foi consolidado pelo Enunciado nº 475 da Súmula do STJ.
Entrementes, observa-se que o conjunto de decisões se refere a vícios formais do título, sejam eles intrínsecos (como a ausência de requisitos essenciais e legais de validade da cártula), sejam extrínsecos (como no caso da essência de causa de emissão nos títulos causais), não abarcados na regra da inoponibilidade das exceções pessoais a terceiros de boa-fé, prevista no Decreto nº. 2.044/1909, no Código Civil de 2002 e na Lei Uniforme de Genebra. Tais vícios decorrem de defeitos ínsitos ao próprio título (vícios cartulares) e não a defeitos da relação jurídica que lhe deu origem, estes concebidos como exceções pessoais (vícios extracartulares).
A diferenciação entre os vícios do próprio título e as exceções pessoais concernentes à relação jurídica pode ser bem exemplificada pelas duplicatas. Na seara dos vícios extrínsecos encontra-se uma duplicata emitida sem lastro, assim caracterizada pela inexistência de causa subjacente em contrato de compra e venda ou de prestação de serviços (duplicata “fria”). A ausência de causa debendi desafia vício formal extrínseco, que contamina o título de crédito desde sua origem, não se regularizando com a circulação da cártula por meio de endosso. Desta feita, caso uma instituição financeira receba o título sem lastro em endosso translativo e o leve a protesto sem se cercar das devidas cautelas, responderá pelas perdas e danos (STJ – Ag Rg no Ag nº 1.211.212 – Min. João Otávio Noronha e EDecl no REsp nº 931.709 – Min. Paulo de Tarso Sanseverino).
Situação diferente, entretanto, é o desfazimento do negócio jurídico subjacente que deu lastro à emissão da duplicata, consolidando-se em defeito da relação jurídica e não do título (vício extracartular e não cartular). Caso transferido por meio de endosso, o desfazimento do negócio não pode ser oponível a terceiro de boa-fé, em razão dos princípios cambiários da autonomia e da abstração. Nota-se que o ponto chave para distinção do vício extrínseco e da exceção pessoal é o momento de origem: o vício extrínseco nasce com o próprio título de crédito. Gozando de causa para existir, a cártula se origina sem máculas e, uma vez posta em circulação, protege os endossatários quanto a eventuais alegações de vícios extrínsecos. A própria qualificação do terceiro de boa-fé reside na ciência ou não da falta de titularidade de seu antecessor; ciente dos vícios cartulares supramencionados, o terceiro não poderá ser considerado titular do respectivo direito e, pois, estará de má-fé, precisamente em função de saber, quando da transmissão da cártula, que o endossante não era o legítimo titular.
Nos títulos de crédito considerados abstratos e independentes da causa, torna-se imperioso anotar que os vícios considerados serão os intrínsecos, haja vista que, com a circulação, o endossatário adquirente de boa-fé ficará protegido pela impossibilidade de oposição de exceções pessoais a terceiro de boa-fé, como as exceções que se fundam em devolução da mercadoria, vícios, diferenças de preços e o próprio desfazimento do negócio jurídico. Nesse sentido, o endossatário que protesta uma duplicata sem aceite e sem que esteja acompanhada de comprovante da entrega das mercadorias ou da efetiva prestação de serviços ignora requisito formal essencial para protesto do título, incidindo em vício intrínseco e não em exceção pessoal (STJ – REsp nº 1.213.256).
Também não se identifica hipótese de caracterização de solidariedade, já que a conduta geradora do dano foi individualizada no endossatário (AgRg no Ag nº 1.404.834 – Min Marco Buzzi). Isso porque, diversamente do endosso-mandato, o endosso próprio e pleno transfere a titularidade da cártula ao endossatário, bem como todos os riscos a ela associados. O endossatário passa a exercer o direito emergente do título em seu próprio nome, cabendo-lhe, além de praticar os atos necessários ao resguardo e garantia desses direitos, reclamar o pagamento da importância constante no título de seus coobrigados.
Por outro lado, o endossatário passa a ter direito de regresso em desfavor dos demais coobrigados. Não se trata, porém, de efeito necessariamente vinculado à responsabilidade assumida pelo endossante quanto ao pagamento da dívida. A responsabilidade dos coobrigados será acionada graças à garantia no que diz respeito à própria existência da dívida, em consequência semelhante à cessão de crédito, motivo pelo qual, ainda que o título seja transferido por endosso translativo com cláusula “sem garantia”, os endossantes e seus respectivos avalistas poderão ser igualmente acionados.
Outrossim, para garantir o direito de regresso em face dos coobrigados, não é necessário o protesto. Pelo contrário, o ato formal do protesto tem por objetivo pontuar o inadimplemento do título, bem como a falta de aceite ou de devolução. Não abarca as hipóteses nas quais a cártula é contaminada por vícios formais, extrínsecos ou intrínsecos. Em outros termos, embora o protesto seja necessário apenas para a cobrança dos coobrigados cambiários, o protesto engloba as situações em que o título é, de alguma maneira, exigível do devedor principal. Dessa maneira, os fins originários do protesto não atendem aos pressupostos e desideratos para cobrança dos coobrigados por vícios formais, razão pela qual sua ocorrência leva à possibilidade de indenização.
O conjunto de casos também indica discussão de causalidade para reparação de danos, que se verificam após a identificação de protesto indevido de títulos de crédito com vícios intrínsecos e extrínsecos. A adjetivação de protesto por indevido decorre da ilicitude da pronúncia pública do inadimplemento da cártula, sendo que o próprio título é prova de crédito que ou não existe ou é nulo. A impertinência da ação de protestar gera, por si e independentemente de prova do dano[3], o dever de indenização; trata-se, portanto, de dano moral in re ipsa, mesmo que o prejudicado seja pessoa jurídica. Além das consequências danosas comuns às pessoas físicas e jurídicas, como a inscrição do nome no rol de maus pagadores, o protesto, no que diz respeito às pessoas jurídicas, pode servir para fins falimentares (art. 94, inciso I, §3º da Lei nº 11.101/2005), razão pela qual deve-se evitar que instrumento de efeitos tão relevantes, como o protesto, sejam subvertidos.
Outro ponto da discussão é o dever de cuidado e diligência exigível das instituições financeiras, já que as decisões assumiram o pressuposto de que é dos bancos o risco e dever de cuidado em se certificar da regularidade das cártulas, especialmente da realização ou não do pagamento, da existência de aceite na duplicata ou prova da prestação dos serviços. A instituição financeira assumiu o risco negocial ao tomar a posição de titular da cártula. Afasta-se qualquer debate acerca de constituir o protesto, nesses casos, mero exercício regular do direito. Na perspectiva de alguns autores, adotar tal posição seria defender a impensável transformação de fato penalmente típico, que é a emissão de título falso, inexistente como título em si, em ato lícito, não obstante a ausência de causa legítima.
Dever de cancelamento de protesto
Também foi firmada tese em repetitivos do STJ com base no art. 543–C do CPC/73 e art. 1036 do CPC/2015, com grupo de controvérsias fundamentalmente baseado na imputação de dever conexo – ao devedor que deu causa ao inadimplemento de obrigação – de retirar e dar baixa no protesto lavrado por título posteriormente quitado.
A formação dessa obrigação do devedor decorre da posse do título protestado e quitado ou do fornecimento de declaração de ausência (ato jurídico unilateral) outorgado pelo credor, com base no art. 26, caput e §1º, da Lei nº 9.492/97 (STJ – 3ª T – AgRg no REsp nº 1.414.249 – Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino).
Os recursos que firmaram a tese no repetitivo foram o REsp nº 1.424.792 e REsp nº 1.339.436, ambos da 2ª Seção e relatados pelo Min. Luis Felipe Salomão. Basicamente, o fundamento das decisões, após ressaltar papel da proteção do crédito, foi diferir (a) a atribuição de retirada do nome do protesto ao devedor e (b) nos demais sistemas (SCPC e SERASA, por exemplo), por aplicação do art. 43 do CDC, incumbe-se ao credor tal ônus. Nessa linha é a doutrina de Marlon Tomazette: “A própria documentação exigida denota que a iniciativa do cancelamento deverá ser do devedor, ao contrário do que ocorre na inscrição direta nos cadastros de inadimplentes, pois a baixa nesses casos só poderá ser solicitada pelo próprio credor. Se o credor não toma a iniciativa de cancelar o protesto, isso não lhe gera qualquer responsabilidade, uma vez que o devedor é o maior interessado em tal cancelamento”[4].
Considera-se, destarte, que o Código de Defesa do Consumidor não se aplica às hipóteses de protesto de títulos. Isso porque, enquanto o CDC gera consequências na relação privada entre fornecedores de produtos e prestadores de serviços, a Lei nº 9.492/97 centra-se nos efeitos da relação privada na comunidade em geral. No âmbito consumerista, o credor deve providenciar a retirada do nome do devedor do rol de maus pagadores por força da aplicação da boa-fé objetiva, responsável pela incidência do dever de cooperação na realização de interesse da parte contrária na fase pós-contratual, visando à proteção da pessoa e dos bens da contraparte.
Em relação ao protesto, entendeu-se que há regime legal próprio na Lei nº 9.492/97, por ser lei especial e posterior ao CDC, em virtude, inclusive, da devida interpretação do art. 2º da Lei nº 9.492/97. A perspectiva é deveras distinta do CDC. Não que se negue, aqui, a aplicação do princípio da boa-fé objetiva e da cooperação entre as partes; reconhece-se, porém, que o credor não pode ser obrigado a arcar com os custos relacionados à cobrança da dívida, sendo que o protesto é o instrumento necessário para sua cobrança, uma vez ocorrida a mora (art. 395 do Código Civil).
Ademais, orienta Wille Duarte Costa que o cancelamento é feito junto ao Tabelionato, se houver pagamento, com requerimento do interessado que apresente o título protestado ou declaração de anuência[5]. Como sustentou a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo – CNC, em seu papel de amicus curie no REsp nº 1.339.436 – SP, o ponto chave para debate da controvérsia é o “interesse” consubstanciado no art. 26 da Lei nº 9.492/97, compreendido como a posição favorável à satisfação de uma necessidade.
Nesse sentido, argumentam que os credores, após o recebimento de seus créditos, não guardam qualquer interesse, seja jurídico ou econômico, no cancelamento do registro do protesto concretizado, visto que os efeitos pretendidos inicialmente com o protesto já foram devidamente satisfeitos com a quitação da dívida; há interesse jurídico e econômico em realizar o protesto, mas não em retirá-lo.
Por outro lado, prossegue a orientar Wille Duarte Costa: se o cancelamento do protesto “tiver por fundamento outro motivo que não o pagamento do título ou documento da dívida será efetivado por decisão judicial”. E exemplifica: “se a assinatura do interessado foi falsificada; se já prescrita a execução; se, nos casos de duplicatas seja sem lastro ou ‘fria’; se as mercadorias adquiridas já tinham sido devolvidas; se o protesto efetivou-se antes de vencido o título; se o intimado para o protesto não foi o sacado ou obrigado principal; se já ocorreu a consignação em pagamento do débito; se a obrigação tiver sido cancelada por ordem judicial”[6]. Percebe-se que, em qualquer dos casos, seja a baixa do protesto diretamente junto ao Tabelionato, seja por meio de medida judicial, o ônus da iniciativa de retirar o protesto é sempre do devedor, ainda que os encargos pela realização do protesto, nas situações de protesto indevido, possam recair sobre o credor.
Portanto, com o pagamento do título, que implica devolução da cártula ou declaração de anuência, por disposição do art. 324 do CC, verte-se ao devedor o dever de baixa ao protesto, em consonância ao art. 325 do CC. Afirmou-se no Acórdão do REsp nº 1.339.436: “como o art. 26, caput, da Lei nº 9.492/97 disciplina que o cancelamento do registro do protesto será solicitado mediante apresentação do documento protestado (conforme parágrafo 1º, apenas na impossibilidade de COSTA, exigida a declaração de anuência), é possível inferir que o ônus do cancelamento é mesmo do devedor, pois, a interpretação de que a lei especial estivesse dispondo que, mesmo com a quitação da dívida, o título de crédito devesse permanecer em posse do credor, seria temerária para com os interesses do devedor e eventuais coobrigados”.
Soma-se a isso que o art. 19 da Lei nº 9.492/97 determina que o pagamento do título deve ser acrescido de emolumentos, que são devidos também pelo causador do inadimplemento. O art. 325 do Código Civil também dispõe em sentido semelhante, vez que determina que se presume a cargo do devedor as despesas com o pagamento e a quitação. Não obstante, nada impede seja convencionada na relação negocial a incumbência do credor em proceder ao cancelamento do protesto.
Cancelado o protesto, conforme descreve Wille Duarte Costa, “as certidões não podem informar sobre sua existência, a não ser mediante requerimento escrito do devedor, ou requisição judicial, em casos específicos, sob pena de responder o Tabelião civilmente pelos prejuízos que causar, por culpa ou dolo. Também não serão fornecidas informações ou certidões, mesmo sigilosas, a respeito dos apontamentos feitos no livro de protocolo, a não ser mediante requerimento escrito do devedor, ou requisição judicial. A razão é porque o protesto reflete no cadastro de cada pessoa que participa do título protestado”[7].
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Bibliografia
ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1969.
COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
MARTINS, Fran. Títulos de crédito. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo. Lei do cheque. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio F. da. Títulos de crédito. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
SIDOU, J. M. Othon. Do cheque. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial. v. 2. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011.
[1] O protesto é “ato solene destinado principalmente a comprovar a falta ou recusa de aceite ou do pagamento da letra. É esse um ato de natureza cambial que não consta do próprio título” (MARTINS, Fran. Títulos de crédito. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 193). Cuida-se, ainda, de “prova insubstituível da apresentação do título ao devedor” (COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito. 4. ed. Belo Horizonte: DelRey, 2008. p. 227).
[2] A adjetivação de indevido ao protesto decorre irregularidade “sob o ponto de vista formal, ou mesmo aquele protesto por falta de pagamento se a dívida inexiste. Nesses casos o prejuízo causado ao devedor deverá ser indenizado, na medida em que não ocorre o exercício regular do direito” (TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial. v. 2. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 175).
[3] (…)“A jurisprudência desta Corte já se posicionou no sentido de que o dano moral direto decorrente do protesto indevido de título de crédito ou de inscrição indevida nos cadastros de maus pagadores prescinde de prova efetiva do prejuízo econômico, uma vez que implica ‘efetiva diminuição do conceito ou da reputação da empresa cujo título foi protestado’, porquanto, ‘a partir de um juízo da experiência, […] qualquer um sabe os efeitos danosos que daí decorrem’ (REsp 487.979/RJ, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 08.09.2003)” (…).(STJ – REsp 1022522/RS – 4ª T. – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – J. 25.06.2013 – DJe 01.08.2013).
[4] TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial. v. 2. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 174.
[5] COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito. 4. ed. Belo Horizonte: DelRey, 2008. p. 258.
[6] COSTA, Wille Duarte, op. cit., p. 258. Também: TOMAZETTE, Marlon, op. cit., p. 174.
[7] COSTA, Wille Duarte, op. cit., p. 258.
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