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A importância econômica das sociedades por ações
GEN Jurídico
24/03/2021
por Ana Frazão*
Do ponto de vista econômico, o século XIX foi marcado pela emergência da produção industrial em massa, decorrente da Revolução Industrial. Tais modificações, como esclarece Engrácia Antunes,[25] levaram à substituição do modelo de economia artesanal e mercantil exercido por inúmeros pequenos empresários para um modelo progressivamente mais concentrado, caracterizado pelo exercício coletivo da atividade empresarial, por meio de sociedades comerciais. Com o incremento do volume e da complexidade das atividades empresariais foi tornando-se cada vez mais difícil desenvolvê-las, com eficiência, por um só indivíduo, exigindo-se a conjugação de esforços e de capital.
Dessa forma, as sociedades por ações foram pensadas para fazer frente aos desafios e às necessidades da economia, consolidando as características até então apontadas da personalidade jurídica,[26] da separação patrimonial perfeita e da livre circulação de ações. Mais do que isso, o tipo societário foi também concebido para endereçar os conflitos de interesses que normalmente surgem em sociedades com grande base acionária, acionistas com perfis distintos, administração disjuntiva e separação patrimonial perfeita que também projeta efeitos externos, afetando diretamente os credores da sociedade – os chamados credores sociais.[27]
Apesar de todas as vantagens oferecidas pelo tipo societário, as sociedades por ações não foram muito utilizadas na primeira metade do século XIX, uma vez que estavam submetidas ao regime da autorização estatal. Entretanto, como o regime da livre criação foi sendo gradualmente implementado ao longo do século XIX, inclusive no Brasil, surgiu o terceiro período na história das sociedades anônimas, marcado pela livre constituição, de forma a atender aos anseios do liberalismo econômico do período. Foi somente com a liberalização que houve um grande incremento na utilização da sociedade por ações, que se tornou uma das principais ferramentas da atividade econômica ou, como dizia Ripert,[28] “o maravilhoso instrumento do capitalismo”.
A expansão das sociedades por ações foi tão rápida que, no final do século XIX, já era preocupante o agigantamento de várias companhias não apenas em decorrência do seu crescimento interno, mas também em razão dos diversos mecanismos de concentração empresarial.[29] Vale ressaltar que as implicações decorrentes do crescente poder das sociedades por ações não são apenas econômicas, mas também sociais e políticas. Não é sem razão que muito da história da criação do Direito da Concorrência veio da ideia de que o poder econômico sem limites poderia comprometer a própria ideia de democracia.[30]
É por essa razão que Fábio Konder Comparato31 sustenta que “a disciplina da sociedade anônima constitui, atualmente, o autêntico ‘direito constitucional’ da atividade econômica, no setor privado”. Em sentido próximo, Calixto Salomão Filho[32] chama a atenção para a necessidade de se pensar em um Direito Empresarial Público, em que o Direito Societário, tenha ele como foco as sociedades anônimas ou não, seja compreendido no espectro maior da vida econômica como um todo, em amplo diálogo com áreas como o Direito Concorrencial e o Direito Regulatório.
Verdade seja dita que, na atualidade, a figura da sociedade por ações isolada perdeu parte do seu protagonismo, diante da importância cada vez maior dos grupos societários e de outros agentes relevantes, como os fundos de investimento e outros importantes veículos de investimento.
Outro fenômeno que vem marcando as fases mais recentes do capitalismo, especialmente em relação às sociedades de capitais, é o progressivo esgarçamento da distinção entre sócios e credores da sociedade – a distinção entre equity e debt –, o que possibilita o surgimento de figuras híbridas ou com grande flexibilidade, em que as posições de credor e sócio podem ser modificadas de acordo com os interesses dos investidores.
Com efeito, especialmente diante da economia digital e das chamadas startups, novas soluções – como o investimento-anjo – e arranjos contratuais – como o mútuo conversível em participações societárias – são pensados para resolver o problema do investimento com maleabilidade e adaptabilidade, diante dos resultados futuros do empreendimento.
Por outro lado, cada vez mais determinados credores, como os bancários, podem influenciar na sociedade de forma tão ou mais decisiva do que muitos sócios, o que não apenas causa um embaralhamento na distinção entre credores e sócios, mas torna cada vez mais provável a situação de controle externo.[33]
Diante da multiplicidade de empreendimentos e das diferenças que apresentam em termos de porte e perfil, abre-se a discussão sobre a necessidade de se pensar em maior flexibilidade do tipo societário ou mesmo na sua simplificação, o que poderia ser alcançado por meio da criação de sociedade por ações simplificada,[34] que possa comportar outros tipos de empreendimento que não apenas os grandes, tanto na economia digital quanto na tradicional. No Brasil, tal modelo ainda se ajustaria a uma característica específica da economia nacional, em que empresas familiares têm uma ampla presença e importância.
De toda sorte, apesar de todas as transformações econômicas e dos questionamentos à arquitetura jurídica atualmente existente, é inequívoco que persiste a considerável importância das sociedades por ações, como estrutura inicial a partir da qual se poderão criar novos arranjos e estruturas ainda fundamentais para a economia, dentre os quais os grupos societários e os grupos contratuais.[35]
*Ana Frazão – Professora de Direito Civil, Comercial e Econômico da Universidade de Brasília – UnB. Advogada.
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[25] ANTUNES, José Engrácia. Os grupos de sociedades: estrutura e organização jurídica da empresa plurissocietária, Coimbra: Almedina, 2002. p. 33-34.
[26] Adverte-se que, no início do século XIX, não era claro que as sociedades por ações teriam personalidade
jurídica, o que somente se consolidou algumas décadas depois. Ver, sobre o tema, os comentários de
Ana Frazão ao art. 1 º da Lei nº 6.404/1976, na seção “Características das sociedades por ações”.
[27] Ver comentários de Ana Frazão ao art. 1º da Lei nº 6.404/1976, na seção “Sociedades por ações e
equacionamento da relação entre poder e responsabilidade e dos conflitos de agência”.
[28] RIPERT, Georges. Aspectos jurídicos do capitalismo moderno. Campinas: Red Livros, 2002. p. 128.
[29] Segundo Fábio Konder Comparato (Aspectos jurídicos da macroempresa. São Paulo: Ed. RT, 1970. p. 40),
o processo de concentração acentua-se especialmente a partir da década de 1940.
[30] FRAZÃO, Ana. Direito da concorrência: pressupostos e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 30-39.
[31] COMPARATO, Fabio Konder; SALOMÃO, Calixto Filho. O poder de controle na sociedade anônima. Prólogo.
[edição eletrônica]. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
[32] SALOMÃO, Calixto Filho. O novo direito societário. Eficácia e sustentabilidade. São Paulo: Saraiva, 2019.
p. 31-39.
[33] Ver comentários de Ana Frazão ao art. 116 da Lei nº 6.404/1976, na seção “Casos delicados de atribuição
de responsabilidades: controle compartilhado, controle gerencial e controle externo.”
[34] Ver Projeto de Lei 4.303/2012 da Câmara dos Deputados.
[35] Sobre a distinção entre grupos societários e grupos contratuais, ver: FRAZÃO, Ana. Direito da concorrência,
cit., p. 169-244.