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DIP financing e a lei 14.112/20: inovação ou confusão?

DIP FINANCING

LEI 11.101/05

LEI 14.112/20

LRE

29/07/2022

Dentre as modificações introduzidas na lei 11.101/05 (LRE) pela lei 14.112/20, uma das mais festejadas consistiu na criação de uma seção específica sobre o financiamento do devedor ou do grupo devedor durante a recuperação. Com o argumento de preencher uma lacuna legal, a reforma inseriu os arts. 69-A a 69-F na LRE e, a partir de então, o ordenamento brasileiro teria passado a disciplinar o chamado “DIP Financing”, prática de mercado comum nos EUA e calcada na § 364 da lei de falências daquele país, que versa sobre a obtenção de crédito pelos devedores em crise.

É verdade que, pela nova redação do art. 84 da LRE, os valores entregue a título de “financiamento” têm uma classificação melhor entre os créditos extraconcursais na falência, estando em segundo lugar na ordem de pagamento. Por outro lado, nos termos do art. 69-B, eventual reversão da decisão que autoriza o “financiamento” não altera sua natureza extraconcursal nem as garantias outorgadas, para os casos de financiador de boa-fé que já desembolsou os recursos ao devedor.

Todavia, os incentivos param por aí.

Sem escrutinar cada um dos artigos que versam sobre a matéria, este artigo propõe discutir um tema preliminar e que não foi suficientemente esclarecido pela lei 14.112/20, qual seja: o que pode ser enquadrado como “financiamento” nos termos da Seção IV-A do Capítulo III da LRE?

Possiveis origens dos recursos de financiamento

Em linhas gerais, as empresas podem se financiar com recursos próprios ou de terceiros. No primeiro caso, podem recorrer, v.g., a excedentes de caixa, reservas de lucros ou venda de ativos. No segundo caso, os recursos podem ingressar via participação societária ou dívida. É possível que os atuais sócios aportem recursos ou, ainda, que a empresa recorra a novos sócios, sejam investidores privados ou via mercado de capitais. Já os financiamentos por dívida podem ocorrer por meio do sistema bancário, de factorings, de adiantamentos de pagamentos por clientes, de vendas a prazo por fornecedores e até mesmo por mútuos fornecidos pelos próprios sócios da empresa.

Há, portanto, uma ampla gama de possibilidades tanto no que se refere à origem dos recursos como à pessoa do financiador, cada qual podendo ser acomodada em diversas estruturas jurídicas. Daí se indagar qual dessas estruturas, fontes e financiadores a lei 14.112/20 deveria ter considerado para fins de concessão de vantagens e privilégios em processos de recuperação judicial e que limites deveriam ter sido criados.

Longe de abordar a questão, o artigo que inaugura a Seção IV-A assim dispõe:

Durante a recuperação judicial, nos termos dos arts. 66 e 67 desta Lei, o juiz poderá, depois de ouvido o Comitê de Credores, autorizar a celebração de contratos de financiamento com o devedor, garantidos pela oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos, seus ou de terceiros, pertencentes ao ativo não circulante, para financiar as suas atividades e as despesas de reestruturação ou de preservação do valor de ativos.

As lacunas dos arts. 66 e 67

Note-se que o art. 69-A, assim como os demais artigos da LRE, não diz o que é financiamento, mas simplesmente remete aos arts. 66 e 67, o que já denota a assistematicidade do legislador, pois nenhum desses dispositivos fala em “contratos de financiamento”, mas em alienação ou oneração de bens do ativo não circulante e em obrigações assumidas durante a recuperação judicial, respectivamente.

Também não é possível distinguir os “contratos de financiamento” pela sua finalidade, uma vez que o legislador, ao invés de diferenciar o emprego dos recursos no curso ordinário dos negócios ou fora dele, como ocorre nos EUA, trouxe referências amplas que, a rigor, possibilitam que o devedor utilize os valores captados para qualquer fim vinculado ao seu negócio.

Conflitos entre os arts. 69-A e 67

Dificuldade maior surge porque o art. 69-A dispõe que o juiz poderá autorizar a celebração de “contatos de financiamento”, mas, a princípio, nenhum dos atos previstos no art. 67 requer autorização judicial.[1] E, caso se considere que qualquer obrigação pecuniária assumida pelo devedor durante a recuperação equivale a “contrato de financiamento”, teríamos o absurdo de se exigir autorização judicial para a celebração de todo negócio jurídico que resulte em crédito contra o devedor em recuperação judicial, o que criaria dificuldades imensas para suas atividades.

Não é esse o propósito da norma, tanto que a própria LRE, após a reforma pela lei 14.112/20, passou a distinguir, no art. 84, os créditos extraconcursais representados pelo “valor efetivamente entregue ao devedor em recuperação judicial pelo financiador, em conformidade com o disposto na Seção IV-A do Capítulo III” daqueles representados por “obrigações resultantes de atos jurídicos válidos praticados durante a recuperação judicial, nos termos do art. 67”. Contudo, se o próprio art. 69-A remete ao art. 67, como diferenciar ambas as situações?

Dip financing e Interpretações possíveis

Há, ao menos, duas interpretações possíveis.

Pela primeira, o conceito de financiamento contido na Seção IV-A não é definido pelo negócio jurídico que o representa, mas tão somente pela existência ou não de autorização judicial para sua celebração, ainda que esta, a rigor, não seja necessária.

Em outras palavras, “contrato de financiamento” equivaleria a todo contrato celebrado nos termos dos arts. 66 e 67 que tenha sido autorizado pelo juiz e implique recebimento de pecúnia ou outros bens ou direitos pelo devedor, destinados a “financiar as suas atividades e as despesas de reestruturação ou de preservação do valor de ativos”.

Esta interpretação confere às partes e ao juiz a possibilidade de reclassificar, na falência, qualquer crédito posterior que, na nova ordem de pagamento do art. 84 da LRE, seria pago nos termos do inciso I-E, mas, devido à autorização judicial, será pago conforme inciso I-B, portanto, antes de todos os demais, com exceção das quantias referidas nos arts. 150 e 151 da LRE.

Não nos parece que o intuito da norma seja permitir que a mera autorização judicial de qualquer negócio jurídico, garantido ou não por bens do ativo não circulante e que resulte em crédito contra o devedor, implique ao seu titular um tratamento na falência melhor do que o de outros credores que também negociaram com o devedor durante a recuperação judicial e, pela dinâmica das atividades empresariais, não puderam aguardar pela autorização judicial.

Por outro lado, esse entendimento poderia levar a diversos pedidos de autorização para celebração de negócios jurídicos que não a requerem, somente sob a justificativa de se ter um tratamento melhor em caso de falência ou de se buscar a segurança trazida pelo art. 69-B da LRE.

Pela segunda interpretação, que nos parece a mais acertada, para fins da Seção IV-A, financiamento é todo negócio jurídico que possa implicar crédito contra o devedor e esteja garantido “pela oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos” do devedor ou de terceiros, pertencentes ao ativo não circulante. Como o art. 66 da LRE exige prévia autorização do juiz, ouvido o comitê de credores, para alienação ou oneração de bens dessa natureza, o art. 69-A apenas reflete a exigência legal.[2]

Nessa perspectiva, o juiz não autoriza propriamente a celebração do contrato de financiamento, mas sim a outorga, em garantia, de bem do ativo não circulante. Esse entendimento é confirmado pela própria redação do art. 69-A, que se refere conjuntamente aos arts. 66 e 67 da LRE, bem como a “contratos de financiamento com o devedor, garantidos pela oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos”.

Se fossem quaisquer contratos de financiamento, a norma não traria o adjetivo “garantidos” e remeteria apenas ao art. 67. Logo, a disciplina da Seção IV-A pressupõe a existência de garantias representadas por bens ou direitos do ativo não circulante do devedor ou de terceiros.[3]

Isso não significa que o juiz tem que se ater à análise da garantia a ser outorgada, mas deverá também examinar os termos do negócio jurídico principale, se constatar alguma invalidade, não poderá homologá-lo, sem que o vício seja sanado. A par disso, em homenagem às garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, deverá possibilitar que os credores se manifestem acerca do pedido de autorização antes de decidi-lo, embora a LRE não traga expressamente essa previsão, demandando apenas a oitiva do comitê de credores.[4]

Adicionalmente, seria dispensável a autorização judicial para outorga de garantia de bens de terceiro pertencentes ao ativo não circulante, uma vez que esses bens não integram o patrimônio do devedor e, por isso, sua oneração não prejudica os credores sujeitos à recuperação judicial. Todavia, se o legislador assim previu, a exigência deverá ser observada.

Em suma, embora a lei não seja clara a respeito, o financiamento disciplinado na Seção IV-A do Capítulo III somente pode ser conceituado a partir do seu acessório, significando todo o negócio jurídico garantido por bens ou direitos do ativo não circulante do devedor ou de terceiros, que implique crédito contra o devedor e tenha sido previamente autorizado pelo juiz da recuperação judicial para financiar as “atividades e as despesas de reestruturação ou de preservação do valor de ativos”.

Na realidade, seria dispensável uma seção específica para prever um tratamento melhor, na falência, para créditos surgidos durante a recuperação judicial garantidos por bens ou diretos do ativo não circulante, bastando ao legislador classificar esses créditos em uma posição melhor no art. 84 da LRE.

Fonte: Migalhas

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Financiamento na Recuperação Judicial e na Falência


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NOTAS

[1]  Nas palavras de Fábio Ulhoa Coelho, “[o] princípio é o debtor-in-possession. Vale dizer, apenas e casos excepcionais, especificamente dispostos na LF, os administradores da sociedade em recuperação judicial precisam de autorização judicial para a prática de um determinado negócio jurídico, pela recuperanda. “Desse modo, o financiamento das atividades da empresa e da própria recuperação judicial é um negócio jurídico a ser celebrado pelos administradores em princípio independentemente de autorização judicial ou interferência dos credores.” (Comentários à Lei de Falências e Recuperação de Empresas. 14ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 270).

[2] Para parte da doutrina, a Lei 14.112/2020 teria adotado o modelo “DIP-juiz” ao invés do modelo “DIP-credor”, já que a decisão sobre o financiamento caberia ao juiz e não aos credores reunidos em AGC, uma vez que o sistema brasileiro tutela outros interesses e não só o dos credores, conforme art. 47 da LRE (cf. COSTA, Daniel Carnio; MELO, Alexandre Correa Nasser de. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência – lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005 – de acordo com a lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020. São Paulo: Juruá, 2020, p. 126). A perspectiva, embora tenha fundamentos corretos, não altera a nossa conclusão de que a autorização judicial se refere à alienação ou oneração do bem e não propriamente ao financiamento.

[3] Em sentido semelhante, entendendo que a autorização judicial somente é necessária para financiamentos garantidos por bens ou direitos do ativo não circulante da recuperanda ou de terceiros, excluídos os que não possuem essa classificação contábil, cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários…, p. 270-271.

[4] Essa exigência deverá inviabilizar a imediata autorização de pedidos de outorga de garantias a financiamento formulados com a petição inicial de recuperação judicial, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos com as first day orders. Com efeito, ainda não haverá comitê de credores constituído, nem administrador judicial para exercer as funções deste. Tampouco haverá tempo hábil para manifestação dos credores.

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