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EMPRESARIAL

Alienação Fiduciária e Atividade Empresarial

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA

CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

DIREITO EMPRESARIAL

FIDUCIA CUM CREDITORE

LEI 11.101/2005

LEI 4.728/1965

LEI 9.514/1997

29/03/2019

As relações jurídicas empresariais são portadoras de uma dinâmica peculiar e moldadas de inarredável historicidade, conforme descrições narradas em prosa e doutrina de Goldschmidt, Ascarelli e Bobbio. Tal característica impulsiona a compreensão de instituições a partir desse movimento, sobretudo pela capacidade de adaptação de instrumentos aptos à produção de riqueza. As contratações não fazem escapar a propriedade e a garantia fiduciárias e sua crescente utilização como contratos para financiamento também de atividades empresariais.

A criação de instrumentos financeiros deixou de encontrar bom enforcement contratual em garantias reais como a hipoteca e o penhor, fazendo com que o mercado se adaptasse e requeresse a sofisticação do contrato com garantia de alienação fiduciária. “Visa a proporcionar ao prestamista maior segurança no recebimento da dívida” (GOMES, 1971, p. 31).

Foi nesse espaço que o contrato de alienação fiduciária se moveu sistemicamente, por fornecer adaptação necessária para agilização do crédito entronizado na economia, em geral, e na atividade empresarial, em especial. Realiza-se, para instituições financeiras, o que Menezes Cordeiro enfatiza na confiança de construção da relação bancária geral, com diligência e estrito acompanhamento do contrato (malgrado as críticas sobre a disponibilidade para negociar) (MENEZES CORDEIRO, 1998, p. 339).

Por meio da alienação fiduciária, transferem-se ao credor o domínio fiduciário e a posse indireta da coisa móvel ou imóvel alienada. Por ser peculiar à função econômica e aos interesses das partes, o devedor é possuidor direto e depositário do bem – fato que, normalmente, é essencial para o desempenho da atividade empresária. Roppo (2001, p. 681-682) ressalta duas características gerais dos contratos fiduciários, com repercussões nos efeitos reais limitados pelos efeitos obrigacionais:

Carratteristica immediata del contratto fiduciário è la produzione combinata di effeti reali in capo al fudiciario, e di effeti obbligatori a vantaggio del fiduciante, più precisamente, la combinazione di um effeto reale com due effeti obbligatori. L’effeto reale è il transferimento della proprietà dal fiduciante al fudiciario. Gli effeti obbligatori sono: primariamente l’obbligo del fudiciario verso il fiduciante di ritrasferire a suo tempo il bene; e inoltre osservare modalità vincolate nell’amministrazione del bene per il tempo in cui resterà proprietà del fudiciario.

Observa-se, com suporte em Penteado (2012, p. 529), a clara função de permitir o adimplemento completo de uma obrigação de execução diferida, facultando ao credor cobrar o crédito sobre o bem. A eficácia pendente atua em favor do devedor, que tem a propriedade plena com o pagamento.

Importante diferir, nessa ordem de ideias, que não se trata propriamente da propriedade resolúvel em estrito sentido. Com efeito, essa é propriedade de eficácia pendente, subordinada a evento futuro, como na compra e venda com reserva de domínio, ao passo que a propriedade fiduciária tem eficácia pendente, com domínio transmitido ao credor para fins de garantia de dívida (PENTEADO, 2012, p. 529-530; MOREIRA ALVES, 1987, p. 45)

Conforme ensinamento de Moreira Alves (1987, p. 2 e 56), a garantia decorre da conjugação da transferência da propriedade com o não desapossamento da coisa que era do devedor e que serve de garantia de pagamento, com evidente natureza contratual em tal avença. “Transmitida a propriedade para fim de garantia, sua resolução se opera no momento em que perde a função, regressando ao patrimônio do primitivo titular” (GOMES, 1971, p. 22).

Evidencia-se, com tais características, instrumento de crédito com reforço de garantia, posto que lastreado na fidúcia haurida na transferência do domínio em garantia da operação econômica. Como recebe a propriedade e a posse indireta do bem alienado, a instituição financeira aumenta a certeza e a agilidade no recebimento do crédito, reduzindo, de forma inversamente proporcional, o risco da operação. Em tese, também se constatam elementos de base objetiva contratual adequados para a redução de encargos financeiros da operação – nomeadamente, juros compensatórios, mais adequados ao risco de capital.

Rizzardo (2007, p. 510) afirma haver fiducia cum creditore, com transmissão da propriedade plena ao final do contrato, ainda com a possibilidade de manter a circulação econômica do bem com nova garantia fiduciária, em sucessivas operações econômicas, uma após a outra, com constante fluxo de crédito. Diz Rizzardo (2007, p. 510), ainda, que há “transmissão fiduciária de segurança e o adquirente fica obrigado sob condição suspensiva da amortização da dívida, à retransmissão do bem alienado”.

A alienação fiduciária foi introduzida no direito positivo brasileiro para bens móveis (veículos), por meio da Lei 4.728/1965, com posterior regulação pelo Decreto 911/1969, ainda para bens móveis. A complementação do decreto acrescentou força ao cumprimento contratual inicialmente falho, conforme constata Moreira Alves (1987, p. 16). O grande jurista relata dificuldade inicial na execução da garantia, sobrevivendo com o Decreto 911/1969 a busca e apreensão do veículo, seguida da prisão civil pelo depósito infiel em caso de não apresentação do bem (que, de resto, persistiu como penalidade até julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, de aplicação do Pacto de San José da Costa

Rica para direitos humanos e consolidação da Súmula Vinculante 25, que impede a prisão civil do depositário infiel). Não demorou para que a alienação fiduciária passasse a ser utilizada com financiamentos da atividade industrial, incluindo importação e exportação de máquinas e equipamentos, inclusive com o sistema de financiamento Finame (RESTIFFE NETO, 1976, p. 62).

Seguiu-se a essa legislação a promulgação do Código de Defesa do Consumidor, com eficácia atrativa de contratos bancários para o âmbito de sua proteção (conforme arts. 2.º e 3.º do CDC e STF – ADI 2.051). Assim, os custos transacionais de respeito e tutela do consumidor também são trazidos para a alienação fiduciária em garantia, ainda que interempresarial.

Ainda em atenção a preceitos de mercado e atendendo ao que Terra (1998, p. 5) ressaltou como descrédito da hipoteca, regulou-se no Brasil a alienação fiduciária de imóvel em garantia por meio da Lei 9.514/1997. Além da certeza de tráfico da propriedade fiduciária, referida lei trouxe a interessante – e severa – inovação de retirar do Poder Judiciário a consolidação da propriedade em caso de inadimplemento, transferindo tal prerrogativa às delegações (art. 236 da CF) dos Cartórios de Registro de Imóveis. O legislador valeu-se do sistema de registros públicos imobiliários, porque o financiamento e a respectiva garantia judiciária devem ser registrados no fólio real do imóvel. Além da publicidade na matrícula, o registro consolida a eficácia pendente de transferência condicionada ao pagamento. Ocorrendo o inadimplemento do devedor, por notificação do Cartório de Registro, ele é constituído em mora. O não pagamento ou a purgação da mora no prazo de 15 dias são determinantes da eficácia plena da propriedade em favor do credor, que pode manejar posterior imissão na posse.

O novo instrumento aparelhou grande parte da expansão imobiliária de anos recentes. Se há melhor garantia para o banco, não se sabe se o advento de crise econômica poderá trazer a sobreoferta de ativos imobilizados e leilões de imóveis por instituições financeiras.

A afirmação conecta-se a outra característica legal do contrato de alienação fiduciária: trata-se do conjunto de regras previstas nos arts. 1.361 a 1.368 do Código Civil. Pelo que dispõe o art. 1.364 do CC, vencida e não paga a dívida, fica o credor obrigado a vender a coisa a terceiros, aplicando o produto da alienação no pagamento de seu crédito e despesas de cobrança, com devolução do saldo, se houver.

Ao proprietário fiduciário, é vedado ficar com o bem em seu acervo patrimonial (art. 1.365 do CC) (RESTIFFE NETO, 1976, p. 320).

Também o Código Civil trata conteúdo do contrato, previsto no art. 1.362. O contrato deve conter a menção ao total da dívida, prazo de pagamento, taxa de juros e discrição da coisa objeto de transferência, tudo sob pena de nulidade.

Fica manifesto o caráter de acessoriedade (PENTEADO, 2012, p. 530) da propriedade fiduciária. De qualquer modo, por esse instrumento de crédito, podem ser alienados móveis, imóveis e também créditos imobiliários – seja para gestão, seja para securitização (PENTEADO, 2012, p. 530). Exemplo disso são as Letras de Crédito Imobiliário (LCI) que, regidas pelo art. 12, caput, da Lei 10.931/2004, admitem a garantia de alienação fiduciária. Esse crédito cartularizado, aliás, é interessante instrumento para o financiamento imobiliário, já que o incorporador pode ser devedor fiduciante (TERRA, 1998, p. 75). Percebe-se, ainda, que as instituições financeiras ainda encontraram contrato cambiariforme para aprisionamento de um conjunto de créditos, aptos inclusive à circulação por endosso e com fortes e efetivas garantias.

Ainda que tenha sido construído o princípio da preservação da empresa como fundamento do art. 47 da Lei 11.101/2005 (LREF) (CEREZETTI, 2012, p. 315), a função econômica da garantia fiduciária erigiu uma salvaguarda para as instituições financeiras, alcunhada metajuridicamente de “trava bancária” (STJ, REsp 1.202.918).

Acontece que os bens em alienação fiduciária não se submetem aos efeitos da recuperação judicial, havendo uma sobregarantia aos credores plenipotenciários para conseguir essa modalidade de cláusula acessória. É o que se extrai do art. 49, § 3.º, da LREF:

Estão sujeitos à recuperação todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. […] § 3.º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis […] ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais […], não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4.º do art. 6.º desta Lei, a venda ou retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais à sua atividade empresarial (CHALHUB, 2006, p. 179).
Esse, aliás, é o entendimento consolidado na jurisprudência do STJ, no REsp 1.207.117, que torna relevante a salvaguarda do crédito em função de sua própria característica:
[…] Isso porque a instituição de tal privilégio (LF, art. 49, § 3.º) foi opção legislativa com nítido intuito de conferir crédito para aqueles que estão em extrema dificuldade financeira, permitindo que superem a crise instalada. Não se pode olvidar, ademais, que o credor fiduciário de bem móvel ou imóvel é, em verdade, o real proprietário da coisa (propriedade resolúvel e posse indireta), que apenas fica depositada em mãos do devedor (posse direta) até a solução do débito.

8.Deveras, tais créditos são imunes aos efeitos da recuperação judicial, devendo ser mantidas as condições contratuais e os direitos de propriedade sobre a coisa, pois o bem é patrimônio do fiduciário, não fazendo parte do ativo da massa. Assim, as condições da obrigação advinda da alienação fiduciária não podem ser modificadas pelo plano de recuperação, com a sua novação, devendo o credor ser mantido em sua posição privilegiada.
9. Não se poderia cogitar que o credor fiduciário, incluído no plano de recuperação, teria, por conduta omissiva, aderido tacitamente ao quadro. É que referido credor nem sequer pode votar na assembleia geral, não podendo ser computado para fins de verificação de quórum de instalação e deliberação, nos termos do art. 39, § 1.º, da LF, sendo que, como sabido, uma das principais atribuições do referido colegiado é justamente o de aprovar, rejeitar ou modificar o plano apresentado pelo devedor (STJ, 4.ª Turma, REsp 1.207.117, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 10.11.2015).

Percebe-se que o contrato de alienação fiduciária não é atingido pelo efeito da novação (art. 59 da LREF) da aprovação do plano de recuperação. Além disso, o bem dado em garantia não pode ser retirado do estabelecimento durante o prazo improrrogável de 180 dias, mas fica livre ao credor depois desse interregno. A depender do bem singular (art. 82 do CC) e de sua posição na universalidade (art. 90 do CC), a opção do legislador pode inviabilizar a continuidade da empresa, contrariando o princípio regente da norma.
Sobrevindo falência, os bens podem ser restituídos ao credor fiduciário ou, sendo do interesse da massa falida, pode o contrato ser cumprido pelo administrador (art. 117 de LREF).
Em caso de retirada do bem, seja na falência, seja na recuperação, o saldo de crédito na venda é quirografário, por extensão de interpretação do art. 49, § 3.º, da LREF.

Importante questão que se trava em doutrina é a utilização da alienação fiduciária por credor não bancário ou equiparado a instituição financeira (como as cooperativas de crédito). Nesse sentido, o STJ definiu, no REsp 144.776, que a preponderância da intermediação de crédito é determinante da utilização do contrato somente por instituições financeiras. Tal entendimento confirma estudo de Gomes (1988, p. 325) nesse sentido. Aliás, em referido estudo, o jurista admite as contragarantias que bancos de investimento podem tomar, quando garantem, por fiança ou aval, dívida contraída por um cliente em empréstimo externo.
Outras controvérsias perpassam a jurisprudência e auxiliam na moldura do contrato em análise, a partir dos entendimentos do Superior Tribunal de Justiça (CUEVA, 2011):
(a) Na vigência da Lei 10.931/2004, a purga da mora deve ocorrer com pagamento integral da dívida, sob consolidação da propriedade do bem imóvel (STJ – REsp 1.418.593).
(b) A pena de perdimento atinge veículo de transporte usado para descaminho ou contrabando (STJ, AgRg no REsp 1.486.131).
(c) A caracterização da mora depende da notificação (STJ – AREsp 664.699).
(d) Não há prestação de contas em financiamentos (STJ – REsp 1.293.558).
(e) Bens móveis estão sujeitos a busca e apreensão (STJ – REsp 579.314).
(f) “Crédito garantido por cessão fiduciária não se submete ao processo de recuperação judicial, uma vez que possui a mesma natureza de propriedade fiduciária, podendo o credor valer-se da chamada trava bancária” (STJ – AgRg no REsp 1.326.851. Também: REsp 1.437.988).
(g) Como alternativa à supressão de bem utilizado na atividade produtiva, o STJ tem decidido manter “a ressalva final contida no § 3.º do art. 49 da Lei n.º 11.101/2005 para efeito de permanência, com a empresa recuperanda, dos bens objeto da ação de busca e apreensão, quando se destinarem ao regular desenvolvimento das essenciais atividades econômico-produtivas” (STJ – AgRg no CC 127.629/MT).

A crescente utilização da alienação fiduciária como instrumento de garantia de créditos confirma a capacidade de adaptação de instrumentos jurídicos para dar mais agilidade ao tráfico econômico, escopo de mercado e fruto da historicidade [i.1].
Foram comprovados:
1 – Que a diminuição de frequência na hipoteca e no penhor [i.1 e 3] foi acompanhada por instrumento que dá mais garantia à concessão de créditos, com melhor e mais eficiente enforcement.
2 – Lastreada na confiança – marca dos contratos bancários assinalada por Menezes Cordeiro –, a alienação fiduciária forneceu adaptação necessária para agilização do crédito.
3 – A função da alienação fiduciária é permitir o adimplemento completo da obrigação de execução deferida, facultando ao credor cobrar o crédito sobre o bem, conforme Penteado [i. 2]. Evidencia-se contrato de crédito com reforço do cumprimento contratual.
4 – O delineamento do marco legal indica o acréscimo de instrumentos de reforço do cumprimento contratual.
5 – Também o crédito pode ser objeto de alienação fiduciária, como em crédito cartularizado em Letra de Crédito Imobiliário (LCI) [i. 3].
6 – Em razão da função peculiar, a alienação fiduciária foi salvaguardada na recuperação da empresa e na falência [i. 4], aumentando ainda mais a perspectiva de recebimento do crédito, mas criando potencial entrave à recuperação.


Bibliografia
CEREZETTI, Sheila Cristina Neder. A recuperação fiducial de sociedades por ações. São Paulo: Malheiros, 2012.
CHALHUB, Melhim Namem. Negócio fiduciário. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
CUEVA, Ricardo Villas Bôas. A trava bancária na jurisprudência do STJ. 2011. Disponível em: http://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/92122/trava_banc%C3%A1ria_%20jurisprud%C3%AAncia_cueva.pdf. Acesso em: 18 ago. 2015.
GOMES, Orlando. Alienação fiduciária em garantia. São Paulo: RT, 1971.
______. Novas questões de direito civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988.
MENEZES CORDEIRO, Antônio. Manual de direito bancário. Coimbra: Almedina, 1998.
MOREIRA ALVES, José Carlos. Da alienação fiduciária em garantia. 3. ed. Rio de Janeiro: Fórum, 1987.
PENTEADO, Luciano de Camargo. Direitos reais. 2. ed. São Paulo: RT, 2012.
RESTIFFE NETO, Paulo. Garantia fiduciária. 2. ed. São Paulo: RT, 1976.
RIZZARDO, Arnaldo. Contratos de crédito bancário. 7. ed. São Paulo: RT, 2007.
ROPPO, Vincenzo. Il contratto. Milano: Giuffrè, 2001.
SILVA, Luiz Augusto Beck da. Alienação fiduciária em garantia. Rio de Janeiro: Forense, 1982.
TERRA, Marcelo. Alienação fiduciária de imóvel em garantia. Porto Alegre: Fabris, 1998.

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