
32
Ínicio
>
Direito Digital
DIREITO DIGITAL
STF e a nova responsabilidade civil das plataformas digitais

Anderson Schreiber
13/08/2025
No último dia 26 de junho, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do RE 1.037.396/SP, no âmbito do qual debateu a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). Como se sabe, o artigo 19 afirmava textualmente que as plataformas digitais somente respondem por danos derivados de conteúdos publicados por seus usuários em caso de descumprimento de ordem judicial específica.[1]
A norma criava uma espécie de imunidade das plataformas digitais à responsabilidade civil, uma opção legislativa que não era apenas inédita em nosso sistema jurídico, mas cujos efeitos nocivos já haviam sido vislumbrados pela doutrina mesmo antes da publicação do Marco Civil da Internet, há mais de uma década.[2]
Por um placar de 8 a 3, o STF enfim concluiu que o artigo 19 do Marco Civil da Internet era parcialmente inconstitucional, merecendo uma interpretação conforme a Constituição. Tal interpretação foi descrita pelo STF em uma tese contendo nada menos que 14 pontos.
A própria extensão da proposta aprovada pelo STF reflete, em primeiro lugar, a dificuldade inerente à tarefa de disciplinar a responsabilidade civil das plataformas digitais. Embora seja fácil compreender o equívoco da imunidade criada pelo artigo 19, bem mais tormentosa é a missão de construir algo para colocar em seu lugar – bastando notar que a matéria foi amplamente discutida no Congresso Nacional sem jamais alcançar um consenso mínimo que permitisse a aprovação de uma nova lei sobre o tema.
Nesse cenário, a própria aprovação de uma tese pelo STF já pode ser considerada uma imensa vitória. O início do julgamento do artigo 19 parecia sugerir que cada ministro pretendia tecer, qual alfaiate, sua própria disciplina jurídica sobre o tema. A cada voto, via-se uma nova proposta que não coincidia nem mesmo com os termos e expressões usados na proposta anterior, dificultando a identificação das áreas de consenso. A caixa de pandora das soluções criativas parecia ter sido aberta, mas uma mudança de rumo no julgamento conduziu, em boa hora, a um consenso sobre os pontos mais importantes na matéria.
O que mudou na responsabilidade civil das plataformas digitais
Em primeiro lugar, o STF destacou que a exigência de ordem judicial contida no artigo 19 acabava por resultar em “estado de omissão parcial”, não assegurando proteção suficiente a bens jurídicos constitucionalmente protegidos, como os direitos fundamentais e o próprio Estado Democrático de Direito.
Partindo desta premissa, a Suprema Corte expandiu as hipóteses de responsabilização civil com base em notificação extrajudicial, valendo-se de uma ampliação do escopo do artigo 21 do Marco Civil da Internet. Limitado, em sua versão original, à veiculação de “cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado”, o artigo 21 passa agora a se aplicar a todos os “danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros em casos de crimes ou atos ilícitos”.[3]
O artigo 21 (notificação extrajudicial) torna-se, portanto, a regra, enquanto o artigo 19 (ordem judicial específica) se reduz a exceção, invertendo-se a lógica originária do Marco Civil da Internet. Na interpretação dada pelo STF, a exigência de ordem judicial continua valendo para os crimes contra a honra, “sem prejuízo da possibilidade de remoção por notificação extrajudicial”.
Essa última ressalva parece constituir mera faculdade das plataformas digitais. Sua responsabilidade civil, na hipótese de crimes contra a honra, somente surge em caso de descumprimento de ordem judicial específica. A solução do STF é, neste particular, bastante saudável. Crimes contra a honra exprimem vestígio de uma legislação penal superlativa, sendo certo que tais disputas melhor se resolveriam na esfera puramente civil.
Além disso, a hipótese de crime contra a honra é frequentemente lembrado como hipótese que pode gerar um “chilling effect” (efeito resfriador) sobre a liberdade de expressão no mundo digital, em especial por meio da atuação de políticos e outras figuras públicas que se insurgem contra críticas públicas em redes sociais, tentando censurá-las.
A manutenção dos crimes contra a honra no âmbito do artigo 19, com exigência de ordem judicial, merece, portanto, elogios. A tese do STF não chega a esclarecer o que ocorre com os ilícitos civis que atentem contra a honra das pessoas naturais e jurídicas. A redação ampla do item 3 da tese, que alude a “atos ilícitos” em geral, sugere que basta, agora, a notificação extrajudicial para deflagração da responsabilidade civil das plataformas digitais (art. 21), mas o ponto poderia ter sido expressamente abordado pela corte.
A ampliação da responsabilidade: novos crimes exigem ação das plataformas digitais
Dentre todos os direitos fundamentais, a honra é, de fato, o atributo humano que dá ensejo às discussões mais delicadas em caso de violação. Embora a honra deva ser tutelada, alegações de ofensa à honra não podem servir de escudo contra críticas e opiniões de qualquer outra pessoa, amparadas que estão por outro direito fundamental: a liberdade de expressão.
Além disso, a tese aprovada pelo STF dá um passo importante ao estabelecer, em seu item 4, verdadeira “presunção de responsabilidade” em algumas hipóteses que delimita expressamente: “(a) anúncios e impulsionamentos pagos; ou (b) rede artificial de distribuição (chatbot ou robôs)”. Em tais situações, fica dispensada até mesmo a notificação extrajudicial, assegurando-se, todavia, aos provedores a possibilidade de excluírem a sua responsabilidade “se comprovarem que atuaram diligentemente e em tempo razoável para tornar indisponível o conteúdo.”
A notificação extrajudicial é também dispensada nas seguintes hipóteses taxativamente indicadas pelo STF no item 5 da tese:
“(a) condutas e atos antidemocráticos que se amoldem aos tipos previstos nos artigos 296, parágrafo único, 359-L, 359- M, 359-N, 359-P e 359 R do Código Penal; (b) crimes de terrorismo ou preparatórios de terrorismo, tipificados pela Lei nº 13.260/2016; (c) crimes de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação, nos termos do art. 122 do Código Penal; (d) incitação à discriminação em razão de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, sexualidade ou identidade de gênero (condutas homofóbicas e transfóbicas), passível de enquadramento nos arts. 20, 20 A, 20-B e 20-C da Lei nº 7.716, de 1989; (e) crimes praticados contra a mulher em razão da condição do sexo feminino, inclusive conteúdos que propagam ódio ou aversão às mulheres (Lei nº 11.340/06; Lei nº 10.446/02; Lei nº 14.192/21; CP, art. 141, § 3º; art. 146 A; art. 147, § 1º; art. 147-A; e art. 147-B do CP); (f) crimes sexuais contra pessoas vulneráveis, pornografia infantil e crimes graves contra crianças e adolescentes, nos termos dos arts. 217-A, 218, 218-A, 218-B, 218-C, do Código Penal e dos arts. 240, 241-A, 241 C, 241-D do Estatuto da Criança e do Adolescente; g) tráfico de pessoas (CP, art. 149-A)”.
Como se vê, o rol se limita à prática de crimes, aludindo expressamente aos dispositivos legais que as descrevem. O entendimento da corte é de que as plataformas digitais têm, nestes casos, um dever de cuidado que antecede e independe de qualquer alerta dos usuários ou vítimas, estando compelidas a agir para evitar a circulação destes conteúdos criminosos aprioristicamente.
A exigência de atuação preventiva das plataformas digitais
Aqui, vale observar que, conforme destaca o item 5.4 da tese aprovada pelo STF, “a existência de conteúdo ilícito de forma isolada, atomizada, não é, por si só, suficiente para ensejar a aplicação da responsabilidade civil do presente item. Contudo, nesta hipótese, incidirá o regime de responsabilidade previsto no art. 21 do MCI.” Em outras palavras, o que se está pretendendo evitar é uma “falha sistêmica” que permita a difusão destes conteúdos criminosos.
É fácil perceber que uma orientação desta abrangência dificilmente pode ser aplicada pelo juiz em cada caso concreto. A tarefa exige uma visão do todo e, portanto, convida o Poder Legislativo a refletir sobre a atribuição de tal competência a órgãos públicos específicos ou, o que seria ainda mais apropriado, a criação de uma autoridade autônoma, composta por representantes do Poder Público, da sociedade civil, dos agentes de mercado e, também, da academia.[4] Uma entidade desta natureza plural poderia exercer de modo mais abrangente o monitoramento e a fiscalização da atuação das plataformas digitais, sem prejuízo de outras autoridades já existentes que podem atuar no âmbito de suas próprias atribuições (como a ANPD e o Cade).
A mesma observação vale para o disposto no item 3.2 da tese aprovada pelo STF, segundo o qual “em se tratando de sucessivas replicações do fato ofensivo já reconhecido por decisão judicial, todos os provedores de redes sociais deverão remover as publicações com idênticos conteúdos, independentemente de novas decisões judiciais, a partir de notificação judicial ou extrajudicial”.
A diretriz interpretativa se dirige a evitar violações repetitivas ou sistemáticas da ordem jurídica. Não parece que juízes singulares possam, isoladamente, dar conta deste recado no julgamento de ações judiciais individuais, vislumbrando-se também aqui um convite ao Poder Legislativo para refletir sobre a atuação de órgãos públicos ou entidades independentes, cujo olhar possa transcender a disputa contida em cada processo judicial específico.
Diretrizes adicionais e deveres de autorregulação das plataformas digitais
Os itens 8 a 11 da tese também oferecem diretrizes que vão além dos processos individuais de responsabilidade civil. Ali, o STF indicou “deveres adicionais” das plataformas digitais, ordenando que “os provedores de aplicações de internet deverão editar autorregulação que abranja, necessariamente, sistema de notificações, devido processo e relatórios anuais de transparência em relação a notificações extrajudiciais, anúncios e impulsionamentos”.[5]
São deveres que ampliam a necessidade de uma atuação proativa das plataformas, exigindo a adoção de condutas capazes de prevenir os danos, e não apenas repará-los. Trata-se de medida que, além de inteiramente necessária na realidade atual, corrobora que a visão do STF sobre o tema vai muito além de meros processos individuais de responsabilização civil.
A tese do STF, registre-se, isenta as plataformas digitais de responsabilidade pela remoção indevida de conteúdo nas hipóteses mencionadas no seu item 5. Em outras palavras, se um conteúdo for removido indevidamente porque aparenta se enquadrar em um dos crimes mencionados, o usuário pode pleitear judicialmente o restabelecimento, mediante “demonstração da ausência de ilicitude”, mas não fará jus a indenização em tal caso. A isenção de responsabilidade nesta hipótese parece uma contrapartida adequada em uma tese que exige atuação mais ativa das plataformas digitais na remoção de conteúdos ilícitos.
Limitações da tese e considerações finais
Como nada é perfeito, há, evidentemente, alguns pontos que merecem reparo na tese aprovada pelo STF. Por exemplo, o item 12 afirma que “não haverá responsabilidade objetiva na aplicação da tese aqui enunciada”. Todavia, o item 7 da mesma tese afirma que “os provedores de aplicações de internet que funcionarem como marketplaces respondem civilmente de acordo com o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90)” – diploma legislativo que, como se sabe, elege a responsabilidade objetiva como regra.
A modulação temporal, medida mais que recomendável, também poderia ter sido mais clara quanto ao seu termo inicial: a linguagem empregada (“somente se aplicará prospectivamente”) deixa dúvida sobre se a tese se aplica ou não a processos em curso que versem sobre danos ocorridos antes da sua aprovação pelo STF. Há, ainda, um uso terminológico um tanto disperso do termo “provedor”, usado, por exemplo, nos itens 1, 3, 5, 5.1, 5.2, 5.5, 7, 8 e 11, como “provedores de aplicações de internet”, e, no item 3.2, como “provedores de redes sociais”.
São, todavia, descuidos muito pontuais em uma tese que, além de ter sido fruto de um difícil consenso, logra oferecer solução alvissareira para o difícil problema da atuação das plataformas digitais. Além disso, a tese do STF deixa amplo espaço ao Congresso Nacional, encerrando-se, inclusive, com um apelo expresso ao Poder Legislativo para que elabore “legislação capaz de sanar as deficiências do atual regime quanto à proteção de direitos fundamentais”.
E o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, chegou a frisar, durante o julgamento, que “o Tribunal não está legislando. Está decidindo dois casos concretos que surgiram. Está decidindo critérios até que o Legislativo defina critérios sobre essa questão”.[6]
O fato de os ministros do STF terem alcançado um consenso sobre tema tão delicado merece ser festejado e aplaudido, na medida em que o início do julgamento parecia revelar visões nada conciliáveis sobre o tema.
O julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet ofereceu um norte para a disciplina jurídica da matéria, superando um modelo lacônico e demasiadamente subserviente a uma visão de imunidade das plataformas digitais, como a melhor doutrina já destacava desde a edição da lei, há mais de uma década.
CLIQUE E CONHEÇA OS LIVROS DO AUTOR

LEIA TAMBÉM
- Do Direito dos Contratos ao Direito dos Negócios
- Direito à Reserva Humana: um limite para a IA
- Proibição de celulares em escola
NOTAS
[1] “Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.”
[2] Ver, entre outros, Anderson Schreiber, Marco Civil da Internet: Avanço ou Retrocesso? A responsabilidade civil por danos derivado do conteúdo gerado por terceiro, in Newton de Lucca et al. (coords.), Direito e Internet III: Marco Civil da Internet, Lei nº 12.965/2014, t. II, São Paulo: Quartier Latin, 2015, pp. 277-305. Na mesma direção, Bruno Terra de Moraes, A Responsabilidade Civil na Lei 12.965/14: Uma Leitura sob a Perspectiva da Tutela da Pessoa Humana, in XXV Congresso do Conpedi, Florianópolis: Conpedi, 2016, pp. 26-44; e João Quinelato Queiroz, Responsabilidade Civil na Rede: Danos e Liberdade à Luz do Marco Civil da Internet, Belo Horizonte: Processo, 2019, pp. 147-153; entre outros.
[3] Item 3 da tese de repercussão geral.
[4] A proposta não é nova. Ver, entre outros, Fabrício Bertini Pasquot Polido, “Uma autoridade para ‘fiscalizar’ plataformas digitais no Brasil?” (JOTA 21.6.2023).
[5] Para mais informações, ver Laura Schertel Mendes et al., “Oito medidas para regular big techs garantindo liberdade de expressão”, in Folha de S. Paulo, 28.2.2023.
[6] “STF decide por responsabilizar redes sociais. Veja como ficam regras” (Metrópoles, 26.6.2025).