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DIREITO DIGITAL
A medicina e o direito caminham em direções semelhantes. Por uma cultura aberta ao diálogo regrado e à “prompt engineering”

Carlos Eduardo de Vasconcelos
10/09/2025
Este artigo propõe uma analogia entre as transformações culturais no campo da saúde, a partir das reflexões de Bertalan Meskó, e as necessidades contemporâneas do sistema jurídico. A saúde digital, apoiada pela inteligência artificial, tem reposicionado o paciente como membro ativo da equipe médica. De modo semelhante, no direito, cresce a demanda por uma advocacia que reconheça o cliente como participante das estratégias do Direito ao Consenso, em cooperação com o sistema judicial e demais operadores do sistema multiportas. O texto defende a construção de uma cultura jurídica mais horizontalizada e em cooperação interinstitucional, sustentada por empatia, responsabilidade e cuidado, na qual a IA no Direito atua como ferramenta de facilitação e impulsionamento e não de substituição da atuação humana.
Introdução
Tem-se observado, no campo do direito, a crescente necessidade e demanda por cooperação entre advogados e seus clientes, bem como entre os juízes do sistema judiciário ou arbitral e demais operadores do Direito. Os clientes do sistema jurídico andam muito mais informados, impacientes e exigentes. Tem -se escrito artigos e realizado eventos científicos em defesa de uma cultura interinstitucional de operação integrada entre a advocacia e os responsáveis pelos órgãos e instituições de gestão e decisão judicial e/ou extrajudicial. Propõe-se grupos de trabalho para equacionamento de situações complexas, apoiados na boa governança da IA generativa e nas habilidades e competências dialógicas que pressupõem acolhimento, responsabilidade e cuidado. Tudo isto no âmbito normativo do já existente Sistema Brasileiro de Justiça Multiportas.
O campo do direito enfrenta hoje desafios análogos aos vivenciados pela saúde. Se, por séculos, a prática médica foi marcada pela verticalidade da relação médico-paciente, a revolução digital tem impulsionado uma virada cultural: o paciente passa a ser considerado parte integrante da equipe de cuidado. Conforme ressalta Meskó (2023), a inteligência artificial (IA) e a saúde digital permitiram a superação de uma lógica hierárquica, inaugurando uma relação de maior cooperação.
De modo semelhante, no direito, advogados, clientes, juízes e promotores ainda se organizam sob estruturas demasiadamente herméticas. Observa-se o desenvolvimento de modos e tecnologias de atuação mais horizontalizada, com base em empatia, responsabilidade e cuidado, com apoio em ferramentas tecnológicas que ampliam a capacidade de análise cooperativa.
A Experiência da Saúde como Inspiração
Na área da saúde, a inclusão do paciente na tomada de decisão não representa apenas um avanço tecnológico, mas uma mudança cultural. Pacientes deixam de ser “recursos subutilizados” para se tornarem parceiros ativos no processo de cuidado (MESKÓ, 2023).
O autor em referência destaca a importância de colocar o paciente no centro do cuidado e o impacto da IA na rotina médica, Meskó adota a metáfora segundo a qual, no modelo tradicional, os pacientes se sentem como um astronauta isolado em Marte, em busca de ajuda médica. Não há espaço para empatia e o acesso à informação e às tecnologias é limitado. Durante séculos, os pacientes foram o ‘recurso’ mais subutilizado na saúde. Suas opiniões, percepções e dados não tinham importância. Os médicos precisavam tomar todas as decisões médicas e arcar com a responsabilidade.
Agora, como eles podem contribuir, está ocorrendo uma transformação cultural. Isso necessariamente vem acompanhado de mudanças na relação médico-paciente, que costumava ter uma estrutura hierárquica. Atualmente, vem se transformando em uma relação de igual para igual. Cada parte precisa aprender seus papéis nesse novo sistema. O médico húngaro Bertalan Meskó, conhecido como “O Futurista Médico”, autor de várias obras, é um dos mais influentes pensadores globais sobre o futuro da saúde. Ele assevera que radiologia, oncologia e cardiologia serão as grandes vencedoras da revolução da IA, já que o maior número de dispositivos aprovados de IA se tornará acessível nessas especialidades.
Segundo Meskó, o ideal seria que as associações médicas e instituições fossem as responsáveis por guiá-los nesse processo, mas isso raramente acontece. Na realidade, os pacientes representam a força motriz e, à medida que cada vez mais pacientes fazem perguntas tecnológicas em suas consultas médicas, eles acabam pressionando os médicos a aprenderem mais sobre esse tipo de conhecimento e habilidades. Foquem nos valores centrais da medicina, da empatia e compaixão à comunicação e criatividade. E, ao mesmo tempo, adquiram habilidades como prompt engineering para se tornarem os vencedores da revolução da IA.
A metáfora da saúde, aqui, funciona como inspiração para o campo jurídico. Assim como os médicos estão deixando a “torre de marfim” para compartilhar responsabilidades, também os profissionais do direito devem compreender que seus clientes não são objetos processuais. Eles são agentes cujas percepções e experiências contribuem para o desenho de soluções jurídicas mais adequadas, inclusivas e legítimas.
Com efeito, nossos clientes cada vez mais trazem percepções, dados e informações para a mesa. Assim, contribuem para o manejo dos seus interesses e podem dialogar e consensuar em busca das suas reais necessidades. Essa mudança os coloca no centro do cuidado.
O Papel da IA no Direito
A inteligência artificial, tal como ocorre na medicina, desempenha função estratégica no direito. Seu potencial reside na eliminação ou redução de tarefas burocráticas e repetitivas, liberando advocacia, juízes, promotores e demais operadores do sistema para funções interpretativas, hermenêuticas, dialógicas e cooperativas, consoante os métodos de um Direito ao consenso. A IA no Direito não substitui a dimensão ética da decisão, mas amplia o espaço para a escuta ativa e para a construção colaborativa de soluções.
Essa perspectiva dialoga com autores que defendem a necessidade de maior horizontalização das relações no sistema de justiça. Habermas (1997) destaca a importância da comunicação orientada ao entendimento; Warat (1994) chama atenção para a dimensão sensível do direito; e Didier (2020) aponta para os desafios da processualística contemporânea. Nesse sentido, a IA deve ser praticada como ferramenta de apoio a um direito democrático; facilitando e impulsionando decisões, e não como ameaça.
Por uma Cultura Jurídica Integrada
A construção de uma cultura jurídica integrada pressupõe o abandono da lógica vertical que historicamente estruturou as relações entre advocacia, clientela e Judiciário. O modelo do futuro é interinstitucional, baseado na cooperação entre diferentes atores e na centralidade da pessoa humana. Essa cooperação não se confunde com a conversa descomprometida das mesas de bar. No campo do Direito, a cooperação está sistemicamente associada a uma dialética regrada pelas normas do sistema jurídico.
Essa transformação não depende apenas de tecnologia, mas de valores. Acolhimento, responsabilidade e cuidado permanecem como fundamentos centrais, mesmo em um ambiente marcado por inovação. A advocacia e o Judiciário, assim como a medicina, são desafiados a reconhecer que sua legitimidade decorre não de uma autoridade isolada, mas da capacidade de dialogar e de incluir, respeitada as normas técnicas. No caso do Direito, respeitada a hierarquia das leis, consoante as regras e princípios constitucionais.
Considerações Finais
O direito contemporâneo não pode prescindir de uma reconfiguração cultural que coloque o cliente no centro de uma dialética regrada, em cooperação com advogados, juízes e instituições. Tal como na experiência no campo da saúde, apoiada em “prompt engineering”, o Direito encontra na inteligência artificial um instrumento de suporte que fortalece — e não substitui — a dimensão humana das práticas jurídicas.
A advocacia, portanto, a despeito das instabilidades atuais, abre-se para uma cultura tendencialmente horizontalizada, que articula saberes técnicos e tecnológicos com valores éticos e relacionais, em sua dialética regrada. O futuro do Direito é integrado, interinstitucional e orientado para a dignidade da pessoa humana.
Referências
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
MESKÓ, Bertalan. The Medical Futurist. Disponível em: https://medicalfuturist.com. Acesso em: 20 ago. 2025.
WARAT, Luís Alberto. O direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1994.
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 21. ed. Salvador: JusPodivm, 2020.
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