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Estado no combate às Fake News

Irene Patrícia Nohara
13/10/2025
No artigo que reflete sobre como o Estado se estruturou institucionalmente diante da intensificação de proliferação de Fake News (Desinformação), é abordado que:
O mundo passa por um desafio sem precedentes no combate à desinformação. Ao mesmo tempo em que a internet representou um marco de abertura dos canais de divulgação de conhecimento e de troca de informações, via redes sociais, provedores e aplicativos de conversas, as possibilidades antevistas por Pierre Lévy (LÉVY, 2010, p. 189), no sentido de se construir uma “verdade coletiva”, enveredaram também para um “caixa de pandora” de impactos na divulgação de notícias fraudulentas com a intenção de provocar danos.
A ideia inicialmente otimista da libertação da palavra pela internet passa, portanto, na atualidade, por uma crise sem precedentes, pois a conexão provocada, impulsionada pelo uso de plataformas digitais, redes sociais e apps, pode provocar, dada a escala massiva de disseminação de conteúdo, dentre eles, “fake news”, uma ameaça às instituições e ao próprio Estado Democrático de Direito.
Assim, mesmo diante das transformações positivas que a revolução da internet provocou na forma e na velocidade de comunicação entre pessoas, pois atualmente as ideias circulam de forma mais livre, sem intermediários, por meio de dispositivos, plataformas e redes sociais, tal abertura vem provocando perplexidades sociais e jurídicas.
Impactos das fake news no Estado Democrático de Direito
A ascensão dos extremismos, a possibilidade do controle e da manipulação do resultado de eleições por meio das tecnologias analytics, e a difusão de informações falsas que prejudicam a publicidade de atos, programas, campanhas de órgãos públicos, no tocante à difusão e adesão às políticas públicas de caráter informativo e de orientação social, são fatores que revelam que a desinformação divulgada online tem potencial de provocar ameaças ao Estado Democrático de Direito.
O PL 2.630 e os debates sobre regulação no Brasil
Assim, é preocupação global a regulação para o combate à desinformação por fake news, tendo em vista seu impacto negativo sobre a sociedade e o Estado. No Brasil, desde a criação do PL 2.630, em 2020, de relatoria na Câmara dos Deputados por Orlando Silva, houve ganhos em termos de consensos e das discussões sobre os limites e sobre os impactos da liberdade de divulgação de informações nas plataformas, dispositivos e redes, mas este projeto está em aprofundada discussão.
O PL 2.630 pretendeu estabelecer normas relativas à transparência de redes sociais e de serviços de mensagens privadas, com ênfase na responsabilidade dos provedores pelo combate à desinformação, seja em conteúdos patrocinados ou na atuação do poder público.
Se o caminho é regular e estimular à autorregulação de critérios de combate às fake news, é imprescindível que o Estado se estruture institucionalmente para cumprir tal múnus, pois de nada adianta criar regras em uma disciplina legal, se não houver órgãos e entidades encarregadas de orientar, fiscalizar e aplicar sanções à violação da disciplina legal, a partir de critérios preestabelecidos e de ponderações adequadas.
Assim, analisa-se a compatibilização da atuação estatal com o ordenamento jurídico em um ambiente político-ideológico excessivamente polarizado e imerso no fenômeno da pós-verdade.
Liberdade de expressão e os limites do combate à desinformação
Para tanto, aborda-se o desafio de lidar com a expressão de pensamento, para evitar que haja censura, vedada pela Constituição, em especial, em plataformas e aplicativos, ainda mais diante da rediscussão dos limites interpretativos ou da possível revisão do art. 19 do Marco Civil da Internet; depois, será analisado o comportamento do sistema de justiça, sendo importante o papel do Judiciário na contenção e na punição, dada proibição de censura pelo Estado; por fim, problematiza-se os desafios de institucionalização do governo no combate às fake news, desde a estruturação por desconcentração, a partir da criação da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia (PNDD) como também a via, que se avizinha no debate, da descentralização, tendo em vista a possibilidade de criação de uma agência especializada.
O fenômeno das fake news na história da comunicação
O fenômeno das fake news não é recente. Não é possível situá-lo no tempo da humanidade, tendo em vista que até os animais (no geral), que também possuem habilidades de comunicação, são capazes de comunicar fake news,[1] isto é, de mentir com a intenção de se beneficiar. Se o comportamento oportunista dos animais de deliberadamente divulgar “notícia falsa” com aparência de realidade é encontrado na natureza, muito provavelmente o ser humano, enquanto animal dotado de maior sofisticação de raciocínio e de comunicação, deva ter disseminado fake news desde a tenra possibilidade de comunicação grupal.
Contudo, mesmo não recente, o fenômeno da disseminação de “notícias falsas” ganha maior impacto a partir do século XXI, tendo em vista a conexão transterritorial em escala sem precedentes, viabilizada pela internet, e impulsionada por programação em redes sociais, plataformas e apps de comunicação.
De acordo com Pierre Lévy (LEVY, 2010), a sociedade mundial deu saltos de desenvolvimento nas comunicações em períodos históricos cada vez mais curtos, sendo de se ressaltar, na síntese por ele traçada, a transição da oralidade para a escrita ocorrida na Mesopotâmia, há 5.000 anos, pois o registro escrito possibilitou o arquivamento de conhecimentos dependentes outrora da transmissão verbal; a disseminação do papel impresso, a partir de Gutemberg, em 1440 (século XV); a escala mais massiva dos jornais, com a alfabetização de parcela da população para que houvesse a leitura e compreensão do material, no século XVIII; a fotografia, a televisão, o telefone e o rádio, do final do século XIX ao início do século XX, e, por fim, o salto revolucionário e disruptivo mais recente ocorrido com a internet, que iniciou uma escalada de conexão de pessoas no final do século XX e sua progressiva disseminação no mundo no início do XXI.[2]
A internet veicula uma das mais recentes revoluções, sendo responsável pela mudança estrutural da comunicação e da forma de transmissão de informações entre pessoas. Também as redes sociais, como Instagram, Facebook e LinkedIn, e aplicativos de comunicação, a exemplo do whatsapp, propiciaram a conexão e a troca célere de mensagens e informações entre pessoas.
Segundo Pierre Lévy, antes da “libertação da palavra” proporcionada pela internet, a opinião pública era mais facilmente controlada por meio de uma mídia fechada. Assim, havia sempre um editor ou um filtro institucional, que delimitava pautas e conduzia discursos, sendo que, na atualidade, qualquer pessoa pode ser um canal de divulgação de informações, opiniões e percepções de forma mais livre e sem intermediários.
Entretanto, ao unir pessoas, nem sempre as redes e apps propiciam a troca aberta de ideias, sendo mais comum que pessoas estabeleçam as conhecidas comunicações “entre bolhas” de outras pessoas que pensam da mesma forma, e que procuram a rede para se juntar, como regra geral, aos que professam as mesmas crenças, visões de mundo e opiniões. Nesta perspectiva, a pós-verdade propiciou a disseminação de discursos de ódio, a prática da segregação se proliferou no ambiente online e também a opressão de grupos minoritários, sendo este, lamentavelmente, um caldo de cultura para disseminação de fake news.
Ainda, sabe-se que a comunicação não tem apenas a intenção de simples troca de ideias, mas que com a reviravolta pragmática na percepção da linguagem (OLIVEIRA, 1996, p. 150), percebe-se que a fala realiza uma ação, ao dizer, e é apta a influenciar pessoas, provocando delas determinados comportamentos, dadas as suas dimensões ilocucionárias e perlocucionárias, para além da função meramente descritiva.
Fake news e a pandemia da COVID-19
Um dos problemas mais dramáticos vivenciados recentemente, que acenderam diversos alertas para o fenômeno, foram desinformações veiculadas em larga escala e que atrapalhavam a realização dos objetivos das políticas públicas na pandemia da COVID-19, o que gerou um receio sobre os potenciais impactos negativos do uso das fake news nas políticas públicas da área da saúde pública.
São exemplos de fake news, checadas pelo Ministério da Saúde, e que, portanto, foram classificadas como informações falsas, as seguintes (des)informações: “vacina da gripe aumenta risco de adoecer de coronavírus”, “máscaras sem qualidade são distribuídas pelo Ministério da Saúde”, “máscaras de doação da China são contaminadas como coronavírus”, “café previne coronavírus”, “alimentos alcalinos evitam coronavírus”, “beber água de 15 em 15 minutos cura coronavírus”, “chá de limão com bicarbonato quente cura coronavírus” e “álcool em gel é a mesma coisa que nada”.[3]
Quando da circulação destes conteúdos era um momento de disseminação rápida da doença, em que ainda não havia cobertura vacinal suficiente para a proteção das pessoas, a ponto de diminuir o número de mortes que se avolumava. Era imprescindível, então, a adequada orientação social para evitar males ainda maiores do rápido contágio da COVID-19, situação em que as informações falsas tinham um grande potencial de ocasionar prejuízos públicos, pois, imagine alguém deixar de usar máscara por receber uma mensagem dizendo que a máscara de origem chinesa estaria sendo contaminada, um dado falso e preconceituoso.
Desafios tecnológicos no combate às fake news
Um dos obstáculos para o combate às fake news, na atualidade, é que, ainda que se pudesse fazer um controle prévio de conteúdo que circula nas redes, youtube, apps e web (o que, no fundo, a proibição de censura acaba limitando), ou ainda, buscasse não o controle prévio em si, mas sua verificação por humanos com a finalidade de promover uma checagem individualizada capaz de identificar as peculiaridades de cada conteúdo com seus elementos de linguagem, ironia, contexto etc, considerado o volume de conteúdo digital que trafega na rede, provavelmente, não teríamos tempo e nem humanos suficientes para esta tarefa, uma vez que, de acordo com os dados divulgados pelo relatório Domo, a cada minuto de nossas vidas são incluídas quinhentas horas de novos vídeos, apenas no YouTube. Ou seja, um humano precisaria de mais de 82 anos de dedicação integral e ininterrupta, sem dormir, comer ou fazer qualquer outra atividade fisiológica, por exemplo, só para assistir todos os vídeos que são postados em apenas um dia no youtube.[4]
Nessa realidade de produção de conteúdo em escala e postagem pulverizada, não há soluções humanas aptas a realizar averiguações suficientemente, sendo imprescindível, portanto, contar com o auxílio da própria tecnologia, como o uso de softwares e robôs, para que haja identificação de determinadas tipologias de fraudes, em função de suas características mais prováveis, a partir de algoritmos de programação.
Geralmente, quando é feita uma varredura para identificar pedofilia ou violação de direitos autorais, por exemplo, há uma programação prévia, baseada em banco de dados e inteligência artificial para que se torne possível tal rastreamento com capacidade igualmente escalável quando comparada à produção de conteúdo digital.
Ademais, outro ponto jurídico relevante é determinar qual o “conteúdo” de suposta fake news que de fato pode vir a ser alvo do controle e de sua limitação de circulação, pois os órgãos estatais reguladores não podem se transformar em catalogadores da verdade ou da inverdade de todo conteúdo que circula na web, retirando de expressão aquilo que não entendam como sendo verossímil, sob pena de resgatarmos o clima de monitoramento e de repressão da expressão de pensamento, o que seria próprio dos regimes autocráticos.
Por conseguinte, o primeiro pressuposto do combate às fake news é delimitar o que significa fake news e qual o grau de restrição a esse tipo da atividade no contexto do Estado Democrático de Direito.
Estruturação institucional do governo brasileiro
O combate à desinformação das políticas públicas deve ser visto como tema transversal. Trata-se de uma questão que é enfrentada não apenas no Brasil, mas também internacionalmente. Tendo em vista os impactos negativos da ação de fábricas de fake news, produzindo informações prejudiciais às políticas públicas, houve a criação, por meio do Decreto nº 11.328/2023, da Procuradoria Nacional da União em Defesa da Democracia (PNDD).
Trata-se de uma decisão política em favor da desconcentração, tida como distribuição de atribuições entre diversos órgãos despersonalizados de uma mesma Administração, sem que haja quebra de hierarquia (NOHARA, 2023, p. 518). Assim, de acordo com o inciso II do art. 47 do Decreto nº 11.328/2023, houve atribuição de competência à Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia (PNDD), para representar a União, judicial e extrajudicialmente, em demandas e procedimentos para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas.
É muito relevante, para o caso do Brasil, que haja contextualização desta decisão política de estruturação de uma atuação do órgão voltada para tal circunstância. As eleições de 2022 foram marcadas por um ambiente muito tenso de polarização política, tendo sido ainda advindas de uma realidade anterior de pandemia, em que o governo federal anterior se notabilizou por ser contra as políticas de isolamento, sendo inclusive, por meio do anterior Presidente da República, favorável a tratamentos preventivos, mesmo que sem comprovação científica de sua eficácia.
Ainda, um pouco antes da eleição houve uma enxurrada de acusações que circularam de forma viralizada intentando questionar a legitimidade do sistema eleitoral, disseminando desinformação acerca das urnas eletrônicas, que buscavam gerar sua deslegitimação.
A criação da Procuradoria Nacional da União em Defesa da Democracia (PNDD)
Assim que tomou posse, no início de 2023, o Presidente assina, em conjunto com o Advogado Geral da União, Jorge Rodrigo Araújo Messias, decreto com a preocupação específica de atribuir tarefas a um órgão da AGU voltado sobretudo para a defesa da democracia, com escopo de enfrentar as desinformações que prejudicam os objetivos das políticas públicas.
De acordo com Minuta submetida à consulta pública, as atribuições de tal órgão procurarão ter uma atuação pautada na função de Advocacia de Estado; tendo em vista as finalidades do órgão de zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas; e desempenhada por Advogados da União com capacitação específica e contínua para alcançar as finalidades do órgão, evitando demandas temerárias e desproporcionais. Busca-se a formação de uma Estratégia Nacional de Defesa da Democracia, enquanto política pública, por meio do compartilhamento de informação, celebração de parcerias e aperfeiçoamento de ações integradas.
O órgão pretende se ocupar da representação judicial e extrajudicial da União em demandas e procedimentos para: (a) defesa da integridade da ação pública e da preservação da legitimação dos Poderes e de seus membros para o exercício de suas funções constitucionais; (b) a resposta e o enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas amparadas em valores democráticos e direitos constitucionalmente garantidos, cuja proteção seja de interesse da União; (c) enfrentamento da incitação ou da tentativa, com emprego de violência ou grave ameaça, que vise: 1. abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais; 2. Depor o governo legitimamente constituído; 3. impedir ou perturbar as eleições ou a aferição de seu resultado, mediante violação indevida de mecanismos de segurança do sistema eletrônico de votação estabelecido pela Justiça Eleitoral; e 4. restringir, impedir ou dificultar o exercício de direitos políticos em razão de sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
De acordo com Márcia Semer, a advocacia pública pode ser identificada com o escopo de realização de políticas públicas, dado perfil da Constituição Federal e o caráter executivo dos objetivos e direitos do Estado brasileiro, sendo possível extrair formulação jurídica das políticas públicas.[5]
A importância de políticas públicas no enfrentamento da desinformação
Quanto às políticas públicas, existe debate sobre se se trata de categoria que comporta um conceito jurídico. De um lado, Maria Paula Dallari Bucci entende que não existe propriamente um conceito jurídico da categoria, que é permeada por aspectos encontráveis na Ciência Política e na Ciência da Administração Pública (BUCCI, 2006, p. 47). Caroline Müller Bitencourt e Janriê Reck, por sua vez, procuram elaborar um conceito no sentido de serem políticas públicas:
rede de decisões com função política de uma dada comunidade, com expressão e premissas jurídicas, de caráter reflexivo, que estão organizadas em torno do planejamento, ligando o manejo de instrumentos da Administração Pública a objetivos desejáveis (como principalmente a realização de direitos fundamentais) e, com isto, demandando tempo (BITENCOURT;RECK, 2021, p. 31).[6]
Leonardo Secchi entende ser a política pública uma diretriz criada para solucionar um problema público, sendo concretizada por diversos instrumentos, como leis, programas, campanhas, obras, serviços, subsídios, impostos, taxas e decisões judiciais (SECCHI, 2016, p. 5).
Secchi usa a metáfora da doença, pois, para ele, o problema público está para doença, assim como a política pública está para o seu tratamento. Logo, a doença (problema público) precisa ser diagnosticada, para então ser dada a prescrição médica de tratamento (política pública), que pode ser um remédio, uma dieta, exercícios físicos, cirurgia, tratamento psicológico, entre outros (instrumentos de política pública).
Assim, dada abrangência do conceito, há a necessidade de se fazer uma verificação para lastrear a análise jurídica da desinformação veiculada sobre políticas públicas, para averiguar se o conteúdo discutido efetivamente se refere às políticas públicas, depois, se ele tem potencial lesivo,[7] para se partir para uma etapa delicada, que engloba checar se é exclusivamente uma opinião ou se não é opinião, para, depois, averiguar se o conteúdo pode ser tido como de fato enganoso.
Note-se, contudo, que, não obstante a importância da pauta e da mobilização dos órgãos de defesa do Estado, enfeixados na Advocacia Pública da União, a atuação do governo deve ser ponderada, primeiramente, diante da atual lacuna legislativa no tema, cujo debate avança, e, depois, na identificação do que seja uma desinformação que atrapalha as políticas públicas, para se evitar criar um órgão que comece a perseguir e censurar a opinião pública tal qual um “Ministério da Verdade”.
O Estado deve, portanto, evitar mobilizar o sistema de justiça para tentar ocupar um papel central em definir o que é verdade ou mentira, ainda mais, se os conteúdos impugnados se referirem a opiniões que circulam acerca das políticas públicas. Ademais, como cada política pública tem um desenho próprio, há, por vezes, a necessidade de conhecimento especializado para tentar produzir contradiscursos[8] necessários ao combate da desinformação, sem que isso resvale para ação de propaganda governamental ou intolerância com posicionamentos diversos, porém, legítimos.
O governo, ainda que por um órgão executante também de políticas de Estado,[9] não pode atuar no sentido de confundir o múnus de informação de orientação social com a atividade de propaganda governamental, pois uma coisa é produzir uma desinformação e distribuir em massa causando um prejuízo público, outro comportamento é procurar vetar opiniões que se tenha sobre determinada política pública, não podendo o Estado, na sua ação em defesa da democracia atuar contrariamente à expressão de pensamento, ainda que tal manifestação se coloque no teor de crítica a determinada política pública.
Por isso que a decisão judicial do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 572, foi, conforme visto, no sentido de atacar esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes, mas não em matérias e postagens, compartilhadas pessoalmente na internet.
Agência reguladora como alternativa para o combate às fake news
No entanto, começa a ser cada vez mais consensual que, para equipar o Poder Público com instituições afinadas com o “estado da arte” no combate às fake news, diante destas fábricas de divulgação viralizada, nos meios digitais, de conteúdo fraudulento e prejudicial às políticas públicas, há a necessidade: (1) de criação de uma legislação atualizada, que envolva, inclusive, a reforma e rediscussão dos limites de alguns dispositivos do marco civil da internet, a exemplo do debate da interpretação e possível do art. 19 do Marco Civil da Internet; e (2) que haja uma entidade, dotada de maior autonomia e especialização, para desenvolver com mais acurácia o relevante múnus, que irá incluir também tarefas sancionatórias (com todo o cuidado em relação aos limites constitucionais).
Assim, ainda que se estabeleça uma divisão orgânica, sem quebra de hierarquia, da AGU, para se preocupar exatamente com a questão da disseminação de desinformação que prejudica políticas públicas, mais adequado seria que, contemporaneamente à aprovação do marco legislativo novo, que se enfrente os desafios tecnológicos atuais, dadas as variadas e novas formas de disseminação de desinformação, a partir da criação de uma entidade, de preferência com maior autonomia, isto é, uma agência, constituída de um colegiado coletivo, para produzir resoluções e demais atos normativos, lastreados em análise de impacto regulatório e de indispensável consulta pública, para que haja um combate mais legítimo, dialógico, atualizado, ponderado e eficiente da desinformação.
Logo, após a aprovação do marco regulatório, que trará os fundamentos e elementos estruturantes dos limites e possibilidades de combate à desinformação no atual cenário de integração em rede de plataformas e apps, a nosso ver não sujeitos à mesma disciplina regulatória dos meios de comunicação da mídia tradicional, que vão sofrendo disrupções, por se tratar de realidade distinta, melhor que houvesse a estruturação de uma agência especializada no assunto.
As vantagens da estruturação da agência, em contraponto à atribuição da missão, ainda que de forma limitada, aos órgãos subordinados ao Poder Executivo, são: (a) que a agência é uma autarquia em regime especial, o que lhe retira a subordinação direta ao governo; (b) que a agência possui um corpo dirigente especializado para tomar decisões de forma mais ponderada; (c) que a agência possui procedimentos próprios anteriores à decisão colegiada dos seus atos regulatórios, que são atos normativos submetidos obrigatoriamente à consulta pública e ao estudo de impacto regulatório; e (d) que há garantias maiores de permanência dos dirigentes na agência, dado que eles são pessoas com expertise técnica adequada e mandato fixo para o desempenho dos múnus, sobre eles recaindo uma série de determinações para evitar assimetria de informações.
Considerações finais sobre fake news e democracia
Em síntese…
Muitos acontecimentos colocam a desinformação no foco das ações dos Estados. No caso do Brasil, houve propagação em massa de desinformação prejudicial às medidas de combate à Pandemia, divulgação de informações fraudulentas sobre as urnas eletrônicas, deslegitimando o processo eleitoral, fábricas de desinformações com disparo em massa incitando parcela da população a invadir os Poderes e atacar Ministros do Supremo Tribunal Federal, mesmo após a abertura do Inquérito 4781, depois reputado constitucional, com os limites estabelecidos pela ADPF 572.
Percebe-se, pois, que o tanto de otimismo que a conexão que a era digital propiciou está agora resvalando para uma crise, que ameaça o Estado Democrático de Direito e as Instituições. O novo fenômeno é associado ao fato de que a internet representou a “libertação da palavra”, sem o filtro editorial das mídias fechadas. Tal abertura acaba facilitando a disseminação de conteúdos fraudulentos via redes sociais, aplicativos de conversa e outros meios que são abertos ao público no geral.
O primeiro desafio que o Estado deve enfrentar diz respeito à proibição de censura na ofensiva de proteção das políticas públicas em face da desinformação, sendo importante que não se crie um “Ministério da Verdade” que censure meras opiniões e críticas às políticas públicas. Também não pode o Estado se arvorar a classificar manifestações que são livremente expressadas nas redes, plataformas e aplicativos, pois, primeiramente, há a liberdade de opinião, depois, há inviabilidade de acompanhamento humano da produção livre e desenfreada de conteúdo, tendo em vista que só na plataforma de vídeos do youtube são postadas 500 horas de vídeo em cada minuto de vida humana.
Contudo, é importante saber que a liberdade de expressão de pensamento não é direito absoluto. Há um “paradoxo de tolerância”, sob pena da ascensão de extremismos que ameaçam a sociedade e as instituições. Neste contexto, um Estado que, outrora, em momentos de regimes fechados, apresentava-se como potencial violador das liberdades de expressão de pensamento, agora pode se tornar vítima da desinformação.
Assim, essa nova realidade acalenta a percepção de que há a necessidade de rediscussão dos limites do art. 19 do Marco Civil da Internet…
Como citar:
NOHARA, Irene Patrícia; MOREIRA, Diogo Rais Rodrigues. Desafios de Estruturação Institucional do Governo no Combate à desinformação por fake news sobre políticas públicas. Revista do Direito. Santa Cruz do Sul [ISSN 1982-9957], n. 71, p. 96-116. 2024.
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[1] No leste da África, segundo relata Carl Safina, vervetes, uma espécie de macaco, possuem chamados específicos para alertar a presença de algum predador, contudo, quando lutam com membros de grupos de macacos rivais e começam a perder o combate, eles blefam, dizendo ‘leopardo’, com o intuito de afugentar inimigos. Também é comum que façam o comunicado falso de ‘águia’, no intuito de liberar as árvores frutíferas da competitividade (SAFINA, 2015, p. 261).
[2] Em 1994, 1% do mundo se conectou, vinte anos depois, em 2014, temos 35% do mundo conectado pela internet, sendo que, atualmente, em 2023, temos 5,3 bilhões de usuários da internet no mundo, de acordo com o relatório Cisco. Disponível em: https://news-blogs.cisco.com/americas/pt/2020/02/19/cisco-annual-internet-report-preve-que-5g-sera-responsavel-por-mais-de-10-das-conexoes-moveis-no-mundo-em-2023/. Acesso em 18.04.2023.
[3] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Novo Coronavírus – Fake News. Disponível em https://www.saude.gov.br/component/tags/tag/novo-coronavirus-fake-news. Acesso em 14.03.2023.
[4] Segundo a pesquisa Data Never Sleeps/DOMO, para cada minuto, há o correspondente de 500 horas de vídeos postados no youtube. Disponível em: https://www.domo.com/resources/data-never-sleeps/data-never-sleeps-10?utm_source=domo.com&utm_medium=website&utm_term=PF&lb-mode=overlay&lb-mode=overlay&lb-width=100&lb-height=100. Acesso em 15.04.2023.
[5] Importante reflexão sobre o dilema da Advocacia de Estado x Advocacia de Governo na formação identitária da Advocacia Pública foi refletida na tese de Marcia Semer (SEMER, 2020, p. 161)
[6] Também no sentido da viabilização da estruturação jurídica de um conceito de política pública (RECK, 2023).
[7] A lesividade de uma política pública tem por impacto a cidadania e, ainda, a promoção do desenvolvimento. (SMANIO;JUNQUEIRA, 2017. p. 34).
[8] Sobre produção de contra-discursos na sociedade de risco, dado que a atuação empresarial torna-se discursiva, sendo as decisões e procedimentos submetidos ao açoite da perda dos mercados, daí também a necessidade de produção de contra-discursos (BECK, 2010. p. 326).
[9] Existe tal dicotomia entre políticas de Estado e políticas de governo (BUCCI, 2006. p. 18).