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O fornecimento de energia elétrica entre tempestades e ‘apagões’, e os direitos do consumidor.

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O fornecimento de energia elétrica entre tempestades e ‘apagões’, e os direitos do consumidor.

Bruno Miragem

Bruno Miragem

16/11/2023

O agravamento de condições climáticas em várias regiões do Brasil, nos últimos anos, vem colocando em destaque as dificuldades de preservação do fornecimento de serviços essenciais frente às consequências desses fenômenos, em especial no tocante à interrupção e conseguinte normalização dos serviços prestados. Tem destaque especial, nesse ponto, a interrupção dos serviços de distribuição de energia elétrica que tem multiplicado ‘apagões’ durante e após ocorrências de chuva e vento, em muitos casos durando vários dias.

Energia elétrica e relações de consumo

Em primeiro lugar, relembre-se os serviços de distribuição de energia elétrica são objeto de relações de consumo, nos termos do art. 3º do Código de Defesa do Consumidor. Devem seus fornecedores, delegatários do serviço de titularidade da União, observar, para além da legislação sobre concessões e permissões de serviços públicos (Lei n. 8.987/1995), e a específica do setor elétrico (Lei n. 9.427/1996), o disposto no art. 22 do Código de Defesa do Consumidor, que refere: “Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.” O parágrafo único do mesmo artigo, de sua vez, dispõe que “nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.”

A noção de adequação (‘serviço adequado’), liga-se à finalidade legitimamente esperada pelo consumidor, segundo as características do serviço prestado e os riscos que lhe são inerentes. No caso da distribuição de energia elétrica, a expectativa do fornecimento contínuo não desconsidera a necessidade de interrupções periódicas para consertos e manutenção da rede. Tanto assim é, que o prazo dessas interrupções planejadas, e as providências exigidas do fornecedor, em especial quanto à informação prévia dos consumidores sobre sua ocorrência, são detalhadas em normas regulatórias. Aliás, nesse particular, seguindo o modelo de desestatização implementado no Brasil a partir do final do século passado, ao lado da legislação, a distribuição de energia é atividade sujeita à regulação e fiscalização de agência reguladora, a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, a quem compete também a defesa do consumidor na forma da lei (art. 5º, XXXII, da Constituição da República).

Fenômenos climáticos

De outro lado, quando sejam de grande intensidade, é certo que fenômenos climáticos severos, como tempestades, podem causar interrupções de fornecimento, comumente em consequência da queda de postes ou de vegetação sobre fios que conduzem a energia de estações e subestações até os consumidores finais. Essas interrupções, dependendo das circunstâncias, podem se considerar dentro do risco normal e previsível que caracteriza a atividade. Porém, não se exime, de qualquer forma, o fornecedor de providenciar, no menor tempo necessário, o reestabelecimento do serviço para consumidor. Há, portanto, um risco inerente à atividade, decorrente de fenômenos climáticos severos que possam atingir a rede de distribuição. Todavia, insere-se na própria característica do serviço e do modelo de fornecimento, que mesmo nesses casos, havendo danos aos consumidores, devem ser ressarcidos, independentemente de culpa do fornecedor. É o caso do produto alimentício que armazenado em geladeiras ou freezers, venha a se perder pela falta de energia, ou mesmo equipamentos que no retorno do fornecimento, sofram avarias com a oscilação da tensão que possa vir a ocorrer. As regras para identificação do dano e sua reparação pelos concessionários do serviço são, inclusive, definidas por normas regulatórias específicas (hoje consolidadas na Res. n. 1000/2021, da ANEEL, que dispõe sobre as regras de prestação do serviço). De certo modo, portanto, configuram espécie de fortuito interno, que não exime a responsabilidade pela reparação, cujo modo é objeto de regulamentação.

Contexto atual

Os problemas que mais recentemente se percebem, contudo, vem merecendo atenção, não pelos fenômenos climáticos em si – mas pela gravidade e permanência de suas consequências no tempo. Em primeiro lugar, diga-se que o dever de manutenção da rede de distribuição integra a noção de qualidade esperada do serviço, inclusive pressupondo a resistência da infraestrutura a eventos climáticos moderados. Se mesmo nessas situações se multipliquem as situações de interrupção dos serviços, é de apurar em que medida se desincumbe o fornecedor do seu dever, inclusive para prevenir falhas no fornecimento. Por outro lado, em eventos climáticos severos – como grandes tempestades com ventos fortes – não se há de exigir que a rede de distribuição passe incólume. Nesse caso, contudo, a aferição de cumprimento do dever de qualidade resultará da capacidade de atendimento do fornecedor às necessidades de conserto/correção dos estragos experimentados. A demora no reestabelecimento do serviço pode sinalizar a falta de estrutura compatível para atender situações de interrupção da rede, de modo que a imputação de maior gravidade ou recorrência de danos à rede para buscar se eximir de responsabilidade esbarra no risco inerente à atividade e na ausência de medidas adequadas para sua mitigação. A maior ou menor intensidade dos ventos ou o volume de chuva não afasta o dever de que repor as condições normais do serviço em prazo razoável, considerando seu caráter essencial. Essa razoabilidade tem por parâmetro a própria essencialidade do serviço e as consequências da sua interrupção para a dignidade, saúde e bem-estar dos consumidores.

Não se deixa de considerar que a maior recorrência de hipóteses de interrupção de fornecimento ou demora na regularização pode se relacionar com a maior vulnerabilidade do consumidor. Nesse sentido, merece atenção reportagem recentemente publicada, e que sinaliza, a partir de dados da ANEEL, a desproporção do tempo médio de interrupção do serviço de energia elétrica em bairros centrais e da periferia da cidade de São Paulo. Enquanto bairros como Bela Vista, Consolação e Jardim Paulista, tiveram uma média de interrupção de energia, no último ano, de apenas 45 minutos, no Jardim Ângela – situado em uma das regiões mais pobres da cidade – a média, em determinadas áreas, foi de até 15 horas.1 Não parece haver argumentos que justifiquem essa diferença, senão opções do fornecedor em relação à priorização do atendimento de certos consumidores em detrimento de outros, tanto para reestabelecer o regular funcionamento do serviço, quanto para prevenir as consequências dos eventos climáticos, adotando providências para manutenção da rede.

As distribuidoras de energia elétrica, desse modo, como fornecedores de serviço público no mercado de consumo, estarão sujeitas também aos regimes de responsabilidade previstos no CDC, seja no caso de danos à saúde e segurança do consumidor (fato do serviço, art. 14), quanto pela falta de adequação do serviço prestado (vício do serviço, art. 20). Nesse sentido, a invocação da intensidade do evento climático, buscando sua qualificação como força maior (para eximir o fornecedor de responsabilidade), estará sempre sob o critério das providências adotadas antes para prevenir ou atenuar suas consequências (e.g. manutenção adequada da rede de distribuição, substituição de postes ou fios em condições de precariedade, podas regulares de árvores que possam atingi-los), ou depois, para restabelecer o serviço em tempo razoável, considerando sua essencialidade e as consequências de sua interrupção prolongada para a dignidade, saúde e bem-estar dos consumidores (e.g. a manutenção de equipes com treinamento adequado e em número compatível). A mera inferência sobre o caráter ‘extraordinário’ de eventos climáticos cuja intensidade vem se repetindo ao longo do tempo não deve servir como justificação para eximir-se das providências exigidas para atendimento do dever de qualidade imputado aos fornecedores. Sejam eles sociedades de economia mista (integrantes da administração pública indireta), ou sociedades empresárias que passaram a fornecer o serviço a partir do processo de desestatização levado a efeito a partir da década de 1990, e cujo principal argumento para legitimá-lo frente à sociedade sempre foi o de uma maior aptidão do setor privado para oferecer, com agilidade e eficiência, serviços públicos de qualidade. Tais expectativas cercaram-se, como não pode deixar de ser, de deveres jurídicos específicos ao fornecedor, e imputação de responsabilidade no caso de sua violação.

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1https://apublica.org/2023/11/em-sao-paulo-corte-de-luz-na-periferia-e-ate-8-vezes-mais-frequente-que-no-centro/

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