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O ‘caso 123 Milhas’: algumas lições para a proteção do consumidor no mercado de consumo digital

Bruno Miragem

Bruno Miragem

05/09/2023

O recente anúncio da suspensão da emissão de passagens aéreas vendidas pela agência de viagens on line 123 Milhas na sua linha promocional, vendida com datas flexíveis para embarques previstos de setembro a dezembro desse ano, seguido do pedido de recuperação judicial deferido pelo juízo competente, em Belo Horizonte, onde está a sede da empresa, vem merecendo ampla cobertura dos meios de comunicação, e justificada atenção dos juristas em geral.

Não faltam, como se tornou habitual na internet, juízos peremptórios de muitos que se arrogam ter antecipado o caráter insustentável do modelo de negócios da empresa (o conhecido ‘eu avisei’), ou que sobre o caso destacam toda a sorte de mazelas do sistema jurídico local (com variações acacianas, sob a fórmula de que ‘o Brasil não é um país sério’). Merece destaque, entretanto, o interesse dos consumidores lesados, que, afinal, compraram, pagaram (ou vem pagando, em parcelas) e foram surpreendidos pela quebra antecipada ou inadimplemento propriamente dito, por parte do fornecedor.

123 milhas e violações ao CDC

Sobre o caso em particular, merecem atenção dois aspectos específicos. A oferta inicial de devolução do valor pago em vouchers ou créditos para serem utilizados junto ao próprio fornecedor inadimplente viola expressamente o disposto no art. 35, III, do CDC. Por outro lado, os consumidores que adquiriram as passagens aéreas com o pagamento em parcelas, tem a sua disposição o novo art. 54-G do CDC, incluído pela Lei 14.181/2021, que veda ao fornecedor “de produto ou serviço que envolva crédito (…) realizar ou proceder à cobrança ou ao débito em conta de qualquer quantia que houver sido contestada pelo consumidor em compra realizada com cartão de crédito ou similar, enquanto não for adequadamente solucionada a controvérsia, desde que o consumidor haja notificado a administradora do cartão com antecedência de pelo menos 10 (dez) dias contados da data de vencimento da fatura, vedada a manutenção do valor na fatura seguinte e assegurado ao consumidor o direito de deduzir do total da fatura o valor em disputa e efetuar o pagamento da parte não contestada, podendo o emissor lançar como crédito em confiança o valor idêntico ao da transação contestada que tenha sido cobrada, enquanto não encerrada a apuração da contestação”.

O exame do ‘caso 123 Milhas’, contudo, é também uma oportunidade para reflexão sobre os desafios postos à proteção do interesse dos consumidores no mercado de consumo digital.

Riscos relacionados ao modelo de negócio no mercado digital

Um primeiro aspecto a ser notado diz respeito ao próprio modelo de negócio, no fornecimento de produtos e serviços na internet. Nos últimos anos, nos acostumamos a referir sobre as ‘plataformas digitais’, parte da ‘economia de plataforma’, um dos modelos negociais que ganharam mais força no mercado digital, aproximando consumidores e fornecedores a partir de um terceiro que, com características diversas, intermedia o fornecimento de produtos e serviços. Porém, em geral, a atenção se move aos exemplos mais vistosos, as ‘grandes plataformas’ ou ‘big techs’, quando a rigor, a liberdade de modelos de negócio na internet (art. 3º, VIII, da Lei n. 12.965/2014) vem dando a lugar a fornecedores de diferentes portes, que se relacionam também de modos distintos com o consumidor no ambiente digital. Há os fornecedores que, afinal, migraram para a internet, já tendo uma consolidada atividade no mercado de consumo tradicional. Adotam assim, em geral, um modelo híbrido de atuação, com diferentes modos de interação entre seus estabelecimentos físico e virtual; outros já nasceram digitais, só exercem sua atividade na internet, não sendo percebidos ou localizados fora dela.1

Isso traz repercussões de várias ordens. De um lado, na perspectiva da própria atividade empresarial, qual o patrimônio desses que se voltam a fornecer produtos e serviços exclusivamente pela internet? A ideia tradicional do patrimônio da sociedade empresária como garantia dos credores é desafiada, tanto pela dificuldade de se identificar, afinal, a constituição regular do fornecedor pela internet, quanto o real valor do seu patrimônio social. O capital social, como se sabe, há muito deixou de ser um requisito seguro para garantir os credores de uma sociedade. No caso dos demais elementos que conferem valor à atividade empresarial, muitos deles, no ambiente virtual, são relativamente fugazes. As noções de clientela e aviamento associam-se, de modo íntimo, à reputação do fornecedor. Muitas vezes, não há ativos físicos, como móveis, imóveis ou estoque. Há valor da marca ou do nome de domínio, praticamente dependente da reputação e confiança do consumidor. Uma crise de confiança, como regra, pode levar mais facilmente o fornecedor à crise ou à quebra, a exemplo do que já é característico de alguns setores econômicos desde sempre (assim o exemplo dos bancos e o risco da chamada ‘corrida bancária’, como profecia que se autorrealiza). Mais uma vez usando o exemplo atual: quantos compraram passagens do 123 Milhas, depois de noticiada a suspensão das emissões, mesmo antes da decisão judicial que deferiu a recuperação judicial? A reputação é elemento imaterial que assume maior destaque no mercado de consumo digital. A confiança na marca é elemento decisivo, tanto para valorização da empresa, quanto para depreciação completa do seu valor de mercado.

A ausência de ativos físicos, por outro lado, cria uma dificuldade prática no caso de insolvência do fornecedor. Afinal, a garantia típica do devedor – o patrimônio do credor – sujeita-se a variáveis de modo diverso do que ocorre com fornecedores no mercado de consumo tradicional. A depreciação dos ativos é mais rápida e intensa. Muitas vezes, restarão apenas o direito sobre certo software que sustenta o modelo de negócio, uma vez que o próprio método comercial não é admitido como objeto de propriedade industrial (art. 10, III, da Lei 9.279/1996).Como se viu no ‘caso 123 Milhas’, o deferimento da recuperação judicial, faz com que, também em relação aos créditos decorrentes de relação de consumo, recaia a suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, assim como a proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor (art. 6º, II e III, da Lei 11.101/2005). Merece atenção, contudo, o disposto no §1º do art. 6º da Lei 11.101/2005, ao definir que “terá prosseguimento no juízo no qual estiver se processando a ação que demandar quantia ilíquida”. No ‘caso 123 Milhas’, aliás, a hipótese foi corretamente excluída da determinação de suspensão de ações, pela decisão que deferiu o pedido de recuperação. Nesse particular, devem se consideradas as ações em que os consumidores, a par do cumprimento do contrato ou restituição do equivalente, pretendam também a indenização por danos materiais e morais decorrentes do inadimplemento.

O modelo de negócio da 123 Milhas também merece atenção, já que – conforme já se referiu – no mercado de consumo digital, a intermediação entre consumidores e fornecedores é um traço característico da denominada economia de plataforma. A intermediação, contudo, em um mercado despersonalizado e desmaterializado como é o do ambiente digital, sobretudo quando se trate do fornecimento de serviços, potencializa o risco de que sendo diferentes os fornecedores que promovem a oferta e contratação do serviço, e os que realizam a prestação, o desajuste entre eles repercuta sobre o consumidor. Em outros termos, se quem vende não é quem entrega ou realiza a prestação, o consumidor confia que ao pagar para o primeiro, cumprirá também em relação ao fornecedor direto. Porém, o ‘caso 123 Milhas’ mostra que, necessariamente, não é o que o ocorre.

A solução tradicional do Código de Defesa do Consumidor, quando ainda não se cogitava a existência da internet ou do mercado digital, foi a de solidariedade entre o fornecedor direto e seus prepostos e representantes autônomos (art. 34). Outra solução de destaque é o do reconhecimento da solidariedade da ‘cadeia de fornecimento’ nos regimes de responsabilidade pelo fato e pelo vício do produto e do serviço. Na intermediação feita por plataformas digitais, de maior ou menor porte, essas soluções até poderão ser admitidas, mas não sem esforços de interpretação das respectivas normas. Afinal ao contratar por intermédio da plataforma digital, não há certeza de que o fornecedor direto esteja necessariamente vinculado, ciente, ou se disponha a prestar. No caso específico das agências de viagens (assim como nos serviços de corretagem em geral), a intermediação sempre expõe certo risco de que o fornecedor direto não esteja ciente ou vinculado à prestação contratada, mesmo no mercado de consumo tradicional.

No mercado de consumo digital, o que muda é a escala em que essas situações podem ocorrer. O ‘caso 123 Milhas’, nesse sentido, é ilustrativo. Um investimento massivo em publicidade (nos dois últimos anos foi, respectivamente a maior – 2021 – e a segunda maior – 2022 – anunciante do país),2 e a oferta de um serviço de transporte que, sendo contratado por certo valor com o consumidor, não era para logo adquirido junto ao fornecedor direto (o transportador aéreo), impunha um risco elevado que, originalmente assumido pela empresa, ao alcançar certo nível, inviabiliza a própria atividade, repercutindo no inadimplemento ao consumidor. Nesse particular, bem se diga que isso nada tem a ver com as conhecidas discussões envolvendo a natureza das milhas ou pontos (‘programas de milhagem’) e a possibilidade de sua transferência, quer seja considerando-as direito de crédito – equiparado a bem – exigível do fornecedor que os concede, ou em sentido oposto, entendendo válidas as disposições dos contratos de adesão que lhes definem como intransmissíveis – mesmo sujeitas ao questionamento sobre a validade da cláusula frente ao CDC.

O que chama a atenção é o risco exponencial de modelos de negócio na internet envolvendo a venda de produtos ou serviços que o intermediário não tem como entregar ou prestar, favorecendo meios heterodoxos para a formação do ‘fluxo de caixa’ do fornecedor, transferindo riscos ao consumidor e, em alguns casos, podendo favorecer, intencionalmente ou não, esquemas de ‘pirâmide financeira’, nos quais os recursos que obtidos mais recentemente sirvam para adimplir obrigações anteriores, porém exigindo do modelo um fluxo estável e permanente novos recursos (novos consumidores), o que ao sofrer qualquer interrupção ou redução, provoca a insolvência do fornecedor.

Outra solução tradicional, geralmente festejada pela doutrina, sempre foi o do modelo de desconsideração da personalidade jurídica e outros meios de extensão da responsabilidade patrimonial previstos no art. 28 do CDC.A fórmula do seu §5º até hoje retumba: “Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.” Sua interpretação e aplicação se dão com a devida cautela pela jurisprudência, e atualmente delimitada também pela exigência legal de incidente processual próprio (art. 133 e ss do CPC/2015). Porém, mesmo aqui, a efetividade da norma pressupõe a existência de patrimônio dos sócios e administradores, assim como no caso de grupo econômico, a existência de responsabilidade subsidiária de seus integrantes só terá efeito prático se ao menos um deles contar com patrimônio para responder pelas obrigações do fornecedor insolvente. Em danos com um grande contingente de consumidores lesados – como ocorre negócios celebrados pela internet – não faltam exemplos de que mesmo a extensão de responsabilidade a terceiros não é suficiente para ressarcir o prejuízo de todos.

O ‘caso 123 Milhas’ assim, provoca uma gama de questões para debate. Especificamente, no setor de turismo, coloca em evidência os riscos do modelo de negócio de agências de viagens on line que ofereçam preços substancialmente menores do que os praticados pelo próprio fornecedor direto do serviço. Em perspectiva mais ampla, destaca desafios do mercado de consumo digital como um todo: desde a inexistência ou fragilidade, em muitos casos, da função de garantia do patrimônio do fornecedor frente aos consumidores; a necessidade de informações mais claras e precisas sobre quem são os fornecedores (o que, em parte, é atendido pelo Decreto n. 7.962/2013 e pelo Projeto de Lei 3.514/2015, da Câmara, que altera o CDC); além de meios que permitam, mesmo respeitada a liberdade de modelos de negócio na internet, identificar e prevenir riscos substanciais de danos causados ao consumidores em decorrência de falhas na sua concepção.

Que estimule, igualmente, a construção de modelos jurídicos aderentes à realidade, compatibilizando a liberdade de modelos de negócios na internet e a necessária efetividade da proteção dos consumidores

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LEIA TAMBÉM

1 Sobre os aspectos gerais da disciplina da proteção do consumidor no mercado de consumo digital, seja permitido remeter à nova Parte III, da 9ª edição do nosso Curso de Direito do Consumidor, em vias de publicação pela editora Forense.

2https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2023/08/21/em-meio-a-crise-com-passagens-123milhas-e-o-2-maior-anunciante-do-brasil.htm.

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