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A entrega na porta do consumidor de alimentos adquiridos por meio de aplicativos: o dever de informar e o equilíbrio da relação

Thiago Ferreira Cardoso Neves

Thiago Ferreira Cardoso Neves

12/03/2024

O Código de Defesa do Consumidor e os direitos do consumidor têm sede constitucional. O constituinte originário, ao redigir o texto da Constituição, fez inserir na Lei Fundamental três disposições que dão ao diploma consumerista um valor axiológico superior: o art. 5º, XXXII, que dispõe que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”; o art. 170, V, que estabelece que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: […] defesa do consumidor”; e o art. 48 do Ato Disposições Constitucionais Transitórias que prevê que “o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará o código de defesa do consumidor”.

Dos referidos dispositivos é possível perceber que a proteção do consumidor, parte mais fraca das relações jurídicas de consumo, é um comando constitucional, ou seja, o constituinte dispôs que é dever do Estado promover a defesa do consumidor, e que esta defesa se daria por meio de um Código.

Assim, cumprindo a determinação constitucional (embora tardiamente, uma vez que o Constituinte previu que o Código de Defesa do Consumidor deveria ser elaborado no prazo de 120 dias a contar da promulgação da Constituição, e o CDC só foi editado quase 02 anos depois), o legislador editou o diploma consumerista, nele inserindo aquilo que chamou de direitos básicos do consumidor, trazendo um rol em seu art. 6º, buscando atender ao comando constitucional.

Dentro desse rol, que não é taxativo, ex vi o disposto no art. 7º do diploma consumerista (que prevê que os direitos do consumidor previstos no Código não excluem outros previstos em outras leis e até mesmo tratados e convenções internacionais), é assegurado, no art. 6º, III, do CDC, o direito à ampla informação sobres os produtos e serviços oferecidos pelos fornecedores.

O direito à informação é um dos mais importantes nas relações de consumo, na medida em que garante ao consumidor a sua autodeterminação informada, isto é, a possibilidade de decidir conscientemente sobre a aquisição, ou não, de produtos e serviços. Dito de outra forma, estando o consumidor bem-informado sobre todos os aspectos da contratação, ele pode decidir, livre de vícios de vontade, se quer ou não adquirir os bens.

Por isso, a informação é um dever anexo à boa-fé, pois umbilicalmente ligado à ética e à lealdade. É um ato de lealdade bem informar a outra parte, a fim de que ela possa livremente decidir por contratar ou não. A ocultação de informações, especialmente aquelas relevantes, pode, inequivocamente, induzir o outro a erro. 

Entregador de aplicativo deve subir até apartamentos?

E é com essa ideia que a questão atinente à existência, ou não, de um dever de o entregador de aplicativos de compras de alimentos e congêneres precisa ser enfrentada.

O uso de aplicativos para compras de refeições em restaurantes e lanchonetes, assim como de remédios em farmácias e até mesmo produtos em supermercados, vem crescendo em progressão geométrica.

Além da própria pandemia do Coronavírus, que fez eclodir o uso desses aplicativos, é especialmente a comodidade que eles oferecem que os torna um grande atrativo para a aquisição dos bens sob esta forma. O conforto de receber os produtos na porta de sua casa é, sem sombra de dúvidas, o principal motivo para a utilização dessas ferramentas tecnológicas. Até porque o preço do produto fica mais caro, pois na grande maioria dos casos é cobrada uma taxa pelo serviço. Portanto, parece-nos induvidoso que a principal razão para o uso desses aplicativos é a facilidade e a tranquilidade de não precisar se locomover.

Destaque-se, ainda, que o principal serviço ofertado é, inequivocamente, o de delivery, que por definição é entrega, e mais especificamente, entrega no local determinado pelo cliente.

De tudo isso nasce a nossa questão: se o consumidor utiliza essas ferramentas principalmente pelo conforto de receber o bem em seu lar, ou até mesmo no trabalho, não seria lógico que a entrega deveria ser feita preferencialmente em mãos, na porta desses locais? Reformularemos. Se o objetivo do aplicativo é exatamente oferecer o máximo de conforto e comodidade ao consumidor, não deveria o prestador de serviço, por exemplo, subir até o andar do prédio em que mora ou trabalha o consumidor e entregar o produto na sua porta? A resposta não é simples. E exatamente por não ser simples que temos visto, diuturnamente, uma série de conflitos envolvendo os clientes e os entregadores.

Não são raros os casos em que as discussões descambam para a violência, verbal e física, gerando uma situação sensível para todos os envolvidos. Os aplicativos, no entanto, lavam as mãos, e não se movimentam para dar uma solução. A resposta é sempre a mesma: o entregador não é empregado ou preposto do provedor que gerencia o aplicativo, e logo não pode ser determinado a ele que faça a entrega na porta de casa do consumidor. Essa decisão, então, compete ao entregador.

Mas é evidente que essa resposta dos aplicativos não satisfaz os consumidores. Por isso, é preciso entender essa relação, a fim de encontrarmos a melhor solução sob o ponto de vista jurídico.

Primeiro, é preciso deixar claro que, tanto o aplicativo, quanto o restaurante (ou a lanchonete, a farmácia ou o supermercado), e também o entregador (que como regra não é preposto ou empregado do aplicativo ou do restaurante), são fornecedores de produtos e serviços e, logo, sujeitos às normas de ordem pública do Código de Defesa do Consumidor. Então, a nosso sentir, nenhum deles pode se eximir do cumprimento dos deveres impostos pelo diploma consumerista, na medida em que integram a cadeia de fornecimento.

No entanto, é evidente que a entrega na porta de casa não é um dever imposto pela lei. Não há, no Código de Defesa do Consumidor, uma disposição sequer que determine que, nas compras à distância, o bem deva ser entregue nas mãos do consumidor e na porta de sua casa. Essa obrigação, portanto, deve nascer do contrato.

E se é uma obrigação que deve nascer do contrato, esse contrato deve obedecer ao que prevê a lei consumerista. E um dos comandos impostos pelo Código de Defesa do Consumidor é a informação. Sim, o dever de informar sobre o qual falamos no início desse texto.

É certo, e acredito que nesse ponto todos concordem, que não há uma obrigação legal do fornecedor, seja ele o aplicativo, o restaurante ou o entregador, de levar o bem até a porta de casa do consumidor. No entanto, embora não haja uma imposição legal, esse fato deve ser informado previamente ao consumidor em cada entrega, a fim de que ele possa escolher se quer, ou não, a entrega do bem pelo entregador que se recusa a subir na porta do seu apartamento.

Veja-se. A entrega na porta da casa do consumidor é, de fato, uma decisão, como afirmam os aplicativos, do entregador, e quanto a isso não se pode questionar. O entregador é, induvidosamente, um fornecedor de serviços, ainda que pessoa natural, e como tal decide como vai oferecer e prestar o seu serviço de entrega.

Mas, se ele assim se caracteriza, ele tem o dever de informar previamente como seu serviço é prestado, isto é, ele tem o dever de, antes de iniciar a entrega, informar ao consumidor que não levará o produto adquirido até a porta da sua casa, oportunizando a este, portanto, decidir se deseja que aquele entregador preste o serviço. O que ele não pode fazer é, apenas no momento em que chega no endereço do consumidor, informar que não irá subir até o apartamento. 

O prévio dever de informar, então, é uma garantia do consumidor, que tem o direito de decidir se aceita a entrega por aquele prestador que se recusa a entregar, por exemplo, a refeição na porta de sua casa, ou se escolherá outro que o faça.

O não cumprimento desse dever importa em inequívoca violação ao direito básico do consumidor à informação, caracterizando um inadimplemento contratual, a chamada violação positiva do contrato. 

Ainda sobre o dever de informar de modo pleno nas relações de consumo, não podemos deixar de observar que se o consumidor não é informado de forma clara, destacada e precisa sobre todos os aspectos do contrato, as cláusulas contratuais (e evidentemente há um contrato de prestação de serviço na entrega de bens), especialmente aquelas que tragam dúvidas ou incertezas, devem ser interpretadas favoravelmente ao consumidor, na forma do art. 47 do CDC.

Destaque-se, ainda, que na hipótese em discussão se tem, induvidosamente, um contrato de adesão, para o qual se impõe, conforme art. 54, §§ 3º e 4º do CDC, que seja redigido em termos claros e ostensivos, destacando as cláusulas que imponham limitações aos direitos dos consumidores.

Isso significa que, em se tratando de um serviço de entrega em domicílio, se nada for informado ao consumidor acerca do local da entrega, a interpretação deve ser a mais favorável ao consumidor, isto é, de que ela deve ser feita na porta dele, especialmente levando em consideração que a função desses aplicativos é oferecer a máxima comodidade ao cliente. Com efeito, eventual limitação a esse direito, como a obrigação de o consumidor ter que descer até a portaria para pegar o produto, deve ser informada de modo prévio e destacado. Assim sendo feito, não pode o consumidor exigir que seja feita a entrega daquela forma.

De tudo o que foi dito podemos concluir que: (i) há entre aquele que adquire o bem por meio desses aplicativos, o provedor do aplicativo, o comerciante e o entregador, uma relação de consumo; (ii) essa relação de consumo deve observar as disposições do Código de Defesa do Consumidor que prevê como direito básico do consumidor a informação e, consequentemente, impõe aos fornecedores o dever de informar; (iii) em se tratando de um serviço de delivery que se propõe a oferecer ao consumidor a maior comodidade possível, a presunção é de que as entregas serão feitas na porta de casa ou do trabalho do consumidor; (iv) na hipótese de limitação a esse direito, deve o fornecedor informar previamente, e de modo destacado, possibilitando ao consumidor decidir se quer, ou não, receber a entrega por meio daquele entregador; e (v) uma vez não cumprida essa obrigação, ter-se-á o inadimplemento contratual, o qual só será afastado se o entregador provar alguma causa excludente, como nos casos dos condomínios que proíbem que entregadores subam nos apartamentos ou salas comerciais.

Como conclusão, devemos observar que a questão é extremamente sensível. Não desconhecemos o fato de que a imensa maioria dos entregadores se encontram, também, em uma situação de vulnerabilidade, dependendo deste trabalho para sobreviver, sendo certo, ainda, que sua remuneração é baixíssima. No entanto, ao ingressar nesse ramo de atividade, ele deve ter a consciência de que está integrando uma cadeia de fornecimento, em que do outro lado há um consumidor, na maioria das vezes também vulnerável (imagine-se um idoso que se vê obrigado a sair de seu apartamento para ir buscar sua refeição), e que, portanto, deve se sujeitar às disposições do Código de Defesa do Consumidor.

Por isso, cremos no equilíbrio dessa relação. Ao entregador não pode ser imposta a obrigação de ir até a porta do consumidor para fazer a entrega. Mas, por outro lado, para que ele não seja obrigado a fazê-lo, ele precisa informar previamente de modo claro, preciso e, sobretudo, transparente. Esse é o dever que se impõe pela boa-fé.


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