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O Supremo Tribunal Federal aprisionado em uma história única

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O Supremo Tribunal Federal aprisionado em uma história única

CÁRMEN LÚCIA

ROSA WEBER

STF

Tathiane Piscitelli

Tathiane Piscitelli

20/09/2023

Trinta e cinco anos após a promulgação da Carta de 1988, o que se constata é que as prerrogativas enunciadas pela promissora Constituição Cidadã estão longe de ser efetivamente alcançadas. O objetivo de construir uma sociedade “livre, justa e igualitária”, em que o racismo seja repudiado e homens e mulheres sejam “iguais em direitos e obrigações”, soa mais como uma utopia do que como retrato da realidade brasileira.

O mais fiel símbolo desse panorama tem sido o Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte de justiça do país. Existente há 132 anos, dentre 169 ministros homens, apenas 3 mulheres, todas brancas, compuseram a corte. O fato é reflexo do caráter patriarcal de nossa sociedade: aos homens cabem os espaços de poder e decisão; às mulheres, especialmente às negras, a posição de subserviência, ainda que de forma velada.

STF e igualdade de gênero

Por mais de um século, temos tido o ponto de vista predominantemente branco e masculino orientando as decisões do órgão de cúpula do Poder Judiciário, responsável por resguardar a Constituição, os princípios norteadores da República e os direitos fundamentais dos cidadãos e cidadãs. Esse fato torna-se particularmente preocupante à medida que cresce a designação de questões fundamentais a serem discutidas no Supremo, especialmente relacionadas à igualdade de gênero, sexo e raça, bem como aos direitos de trabalhadores, povos indígenas e pessoas com deficiência.

No caso das temáticas de gênero, em particular, assuntos de grande relevância foram decididos no âmbito do tribunal [1]: apenas em 2012, foram julgadas a ADI 4424, que assentou a natureza incondicionada da ação penal em casos de violência doméstica; a ADC 19, que declarou a constitucionalidade de dispositivos da Lei Maria da Penha; e a ADPF 54, que declarou a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada no Código Penal. Em 2016, foi julgado o RE 778.889, que fixou a tese de que os prazos da licença adotante não poderiam ser inferiores aos prazos da licença gestante.

Em todos esses julgados, as sustentações das ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber foram essenciais para a defesa da perspectiva dos direitos à vida e à dignidade da mulher. Particularmente no caso do RE 658.312, cujo julgamento, realizado em 2014, discutiu a constitucionalidade do intervalo de 15 minutos para mulheres trabalhadoras antes da jornada extraordinária, a defesa por parte das ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia da possibilidade de tratamento diferenciado entre homens e mulheres de acordo com parâmetros constitucionais foi de grande relevância no debate estabelecido entre as ministras e seus colegas Luiz Fux e Marco Aurélio. Diante desse cenário, surge a pergunta: como aceitar que uma corte que julga questões tão relevantes não seja representativa da sociedade brasileira?

Tal questão relaciona-se com o que a escritora Chimamanda Ngozi Adichie chamou de o “perigo de uma história única”[2] – quando apenas um ponto de vista domina a narrativa, ela é destituída de toda a sua complexidade e reduzida a um só aspecto, dentre os tantos que possui. No caso da história pessoal contada por Chimamanda, o monopólio da narrativa do continente africano pelas potências ocidentais fez com que sua imagem diante da sociedade norte-americana se resumisse à de uma nigeriana vítima de um país “catastrófico”, inferior e isolado do restante do mundo.

Mulher negra no STF

No caso brasileiro, a ausência de representação negra e feminina em uma instância tão relevante como o STF encaminharia a um cenário em que as vidas dessa parcela da população seriam decididas por aqueles que, em muitas das vezes, mal conseguem conceber suas realidades. Com isso, muito se perderia em vivências e perspectivas que poderiam enriquecer o entendimento das complexidades do contexto brasileiro e, dessa forma, possibilitariam um olhar mais diverso no julgamento das causas na corte.

Ter uma mulher negra no STF significa, sobretudo, representar o Brasil real. Em 2022, 51,1% da população era composta por mulheres, 55,9% por negros e 28% por mulheres negras[3]. Nas palavras de Lélia Gonzalez, “a mulher negra é responsável pela formação de um inconsciente cultural negro brasileiro. Ela passou os valores culturais negros; a cultura brasileira é eminentemente negra, esse foi seu principal papel desde o início” [4].

À despeito de tal relevância, ser negra e mulher no Brasil ainda impõe profundos desafios: é “ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no nível mais alto de opressão”[5], segundo a socióloga. Como seria possível, ao STF, julgar de forma justa tais realidades sem que se desse espaço para que fossem representadas por quem as viveu? Negar espaço a essas vozes implica, em última instância, retratar artificialmente apenas uma parcela do país.

Por essa razão, a escolha do ministro ou ministra a suceder Rosa Weber envolve, sobretudo, um imperativo de correção de desigualdades históricas. Para que se impeça a ocorrência de retrocessos e para que avancemos em termos de justiça social, é essencial que uma mulher negra suceda a mulher que agora deixa seu cargo de ministra da corte. Nossa população, majoritariamente feminina e negra, precisa ser inteiramente representada nas instâncias de decisão.

Sobre as autoras

GABRIELA MARÍLIA NATIVIDADE SOARES – Pesquisadora do Núcleo de Direito Tributário da FGV Direito SP e aluna de graduação da Faculdade de Direito da USP
TATHIANE PISCITELLI – Coordenadora acadêmica do Grupo de Pesquisa “Métodos Adequados de Resolução de Disputa em Matéria Tributária” do Núcleo de Direito Tributário do Mestrado Profissional da FGV Direito SP. Professora de Direito Tributário e Finanças Públicas da Escola de Direito da FGV Direito SP e coordenadora do Núcleo de Direito Tributário do Mestrado Profissional da mesma instituição. Doutora e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo

Fonte: Jota

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NOTAS

[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA; INSTITUTO MAX PLANCK; SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Cadernos de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Concretizando Direitos Humanos. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoPublicacaoTematica/anexo/2_Cadernos_STF_Genero_Direito_das_Mulheres.pdf . Acesso em 06 set 2023.

[2] ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

[3] IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2022. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv102004_informativo.pdf. Acesso em 06 jun 2023.

[4] GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo-afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 285.

[5] GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo-afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 50.

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