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Francisco Bilac Pinto Filho

Francisco Bilac Pinto Filho

04/06/2020

Em algumas obras de sua autoria, Carl Schmitt (1888-1985) repete acerca de os receios das decisões judiciais atentarem contra os poderes estatais e suas decisões, repetindo uma frase de Guizot, segundo a qual, ao alargar as funções judiciais aos assuntos estatais, corremos o risco “não de jurisdicionalizar a política, mas pelo contrário, corremos o risco de politizar a Justiça” (“Es würde nicht etwa die Politik juridifiziert, sondern die Justiz politisiert”).

Esse dilema, apesar de ter se iniciado na era do constitucionalismo, final do século XVIII e início do século XIX, ainda ecoa nos sistemas de controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário (judicial review).

Sendo do início do século XIX (1803), a decisão Marbury x Madison abriu à Suprema Corte norte-americana o poder de controlar a constitucionalidade das leis da Federação e dos Estados. O artigo 3.º da Constituição norte-americana que trata do Poder Judiciário da União e dos Estados não destaca esse poder da Suprema Corte. Se hoje nos parece normal o controle de constitucionalidade das leis, em 1803, a decisão foi uma revolução para aqueles que acreditavam que os Juízes da Suprema Corte deveriam apenas apreciar litígios entre a União e os Estados estrangeiros, entre a União e os Estados federados, entre cidadãos e os entes federados e entre os próprios cidadãos.

Schmitt era francamente contrário a esse tipo de intromissão do Poder Judiciário, sobretudo em decisões políticas dos Estados e da Federação. Para ele, as nações europeias haviam desenvolvido o Direito Administrativo como fruto de um Estado colossal que se formara por toda a Europa, seja em federações, como a alemã, seja como Estado unitário, como a França.[1] A esfera administrativa, como um braço do Poder Judiciário, era o meio de discutir a validade de atos administrativos emanados das administrações. No entanto, essa jurisdição administrativa não se atrevia a examinar atos políticos em essência.

No olhar de Schmitt, a força da Suprema Corte norte-americana era tão grande que os Estados Unidos da América haviam se tornado um estado judicial. A quantidade de intromissões da Suprema Corte em assuntos sobre economia e trabalho sob os argumentos de que muitas implementações legislativas foram consideradas inconstitucionais na Europa era inadmissível.

Ao tempo em que escrevera sua obra, Oguardião da Constituição(1925), a Alemanha era regida pela Constituição de Weimar, que fora promulgada alguns meses após a abdicação do Imperador Guilherme II e a instauração da República, em 19 de agosto de 1919.

O processo de emenda constitucional da Constituição de Weimar previa a iniciativa exclusiva do Parlamento e a aprovação de dois terços dos membros para que a Constituição fosse emendada. Houve a tentativa de promulgar uma emenda constitucional proibindo a revisão constitucional de leis pelo Poder Judiciário da Alemanha, que seria concretizado por um simples parágrafo no art. 103 prevendo a existência da Suprema Corte do Reich e das Cortes dos Estados.[2]

Hugo Preuss, o redator da Constituição do Reich, opôs-se à emenda argumentando aos parlamentares que o poder de revisão das cortes de justiça deveria ser permitido, a não ser que a Constituição o proibisse.[3]

O problema fundamental era o fato de a Constituição do Reich ser omissa a esse respeito.

A rigor, nem todos os alemães tinham consciência do que era efetivamente o judicial review nos moldes norte-americanos. Embora a emenda não tenha passado pela atuação de Hugo Preuss, a dimensão do controle judicial só começou a ser percebida mais tarde. Prússia e Baviera adotaram em suas constituições a possibilidade de o Poder Judiciário estadual analisar a constitucionalidade das leis de acordo com as constituições locais.

Wilhelm Kahl, um dos grandes juristas alemães do início do século XX, era francamente contrário à possibilidade do judicial review, já que, segundo suas palavras, “o judicial review colocaria as decisões das cortes acima da lei, em vez de submetê-las a ela”.[4]

Numa das interpretações de um expoente professor universitário, Gerhard Anschütz,[5] o sistema alemão era completamente distinto do sistema norte-americano de emenda e interpretação constitucional. A constituição alemã não estava acima das leis da República alemã, mas sim à sua disposição para conformar interpretações.

Para Anschütz, o órgão legislativo que tinha o poder de emendar a Constituição do Reich era o mesmo poder que poderia interpretar suas próprias criações.

Como confirma Heinrich Nagel, “ao contrário da Constituição norte-americana, a Constituição de Weimar não era um instrumento superior às leis, mas, pelo contrário, ela era inteiramente submetida à discrição do Reichstag”.[6]

Schmitt, com os receios dos arroubos legislativos que a Constituição de Weimar provocara, não é de todo contrário ao controle de constitucionalidades, desde que ele fosse expressamente autorizado. Para ele, em um Estado baseado sob o Direito Consuetudinário, o limite da atuação parlamentar se encontrava nas tradições do povo, muitas reconhecidas pelo sistema misto judicial-parlamentar (Câmara dos Lordes) e pelos textos pretéritos que ainda eram reconhecidos pelos súditos e pelas autoridades.

Em um sistema de Constituição escrita rígida, não há essa garantia das tradições. O maior freio ao arbítrio deve estar na própria Constituição.

Pode-se facilmente abusar do procedimento do poder legislativo para outras normatizações correspondentes a preceitos jurídicos, para ordens particulares, dispensas, indultos, rupturas, privilégios etc. Aí reside, muito frequentemente, um risco para independência judicial e deveria ser aprovado um direito de exame judicial (defensivo) para salvaguarda da posição constitucional da justiça, o que seria uma autoproteção dos tribunais contra intervenções não autorizadas dos outros poderes políticos.[7]

Entretanto, o próprio Schmitt acrescenta: “Nesse aspecto, os tribunais podem ser guardiões de uma parte da Constituição, ou seja, daquela que diz respeito à sua própria base e posição, das determinações sobre a independência da justiça”.

Schmitt abraçava a tese de que havia certamente uma diferença entre o controle político e o controle jurisdicional de interpretação da Constituição, especialmente sobre a aplicação do art. 48, que autorizava o Presidente do Reich a tomar medidas extraordinárias em casos excepcionais de grave ameaça à ordem interna da Federação.

Em uma interpretação sobre as teorias de Schmitt, o núcleo duro da Constituição – pensado pelos pais fundadores do constitucionalismo – o que é Político restringe-se à limitação do poder, à organização do Estado e à escolha do modelo econômico.

Esses assuntos não poderiam ser apreciados por qualquer corte de justiça, pois tratam da criação e conformação estatal. O controle do Político deve permanecer nas mãos do Parlamento, que tem a prerrogativa de emendar a Constituição. E, ainda quando haja franca oposição ou interpretações diversas sobre emendas constitucionais, deve caber ao Parlamento discorrer sobre as normas por ele mesmo promulgadas.

Hoje, poderíamos espargir as teorias de Schmitt para abarcar também os direitos e garantias fundamentais do cidadão, tendo em vista sua conformação com o Estado de Direito no Brasil, EUA e Europa, os quais talvez sejam os que mais suscitem a atuação do Poder Judiciário para confirmá-los ou adaptá-los. Nesse campo, o abuso interpretativo é digno de nota.

Sabemos que nos modelos constitucionais construídos após a Segunda Guerra o controle judicial de constitucionalidade fez parte de uma grande maioria de constituições promulgadas e/ou outorgadas.

Não se cogita mais dessa dúvida, quando o próprio ordenamento constitucional prevê o judicial review, às vezes por todo e qualquer magistrado, às vezes por uma Corte Suprema.

No entanto, as palavras e os pensamentos do início do século XX servem como inspiração, quando nos defrontamos com tantas decisões que inovam o próprio texto constitucional brasileiro, impondo-lhe interpretações que afrontam abertamente a literalidade de preceitos constitucionais.

Já é passada a hora de examinar a construção do modelo de criação do judicial review em solo europeu para que possamos ter a esperança de limitar tantas mutações constitucionais que vêm ocorrendo em nosso país, como uma modelagem de emendas constitucionais que proíbam que o cerne constitucional (limitação do poder, organização do Estado e escolha do modelo econômico) seja restrito ao corpo legislativo constituído para resgatarmos a importância da democracia representativa, se ainda houver tempo.

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[1] SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 111.

[2] “Art. 103. A jurisdição ordinária (Ordentliche Gerichtsbarkeit) consiste na Suprema Corte do Reich

(Reichsgericht) e cortes dos Estados.”

[3] FRIEDRICH, Carl Joachim. The issue of judicial review in Germany. Political Science Quarterly, v. 43, n. 2, p. 189, 1928. JSTOR. Disponível em: www.jstor.org/stable/2143300. Acesso em: 31 maio 2020.

[4] “Wilhelm Kahl questioned the desirability of giving this power to the courts because ‘it would place them above the law instead of subjecting them to it’. Kahl also objected to the courts determining the distribution of power, the very argument put forward in the eighty-first papers of The Federalist by Hamilton, when advocating judicial review” (Ibidem, p. 190).

[5] Gerhard Anschütz escrevera com Richard Thoma os Comentários à Constituição do Reich de 1919. Foram publicadas 14 edições de 1919 a 1933.

[6] NAGEL, Heinrich. Judicial review in Germany. The American Journal of Comparative Law, v. 3, n. 2, p. 237, 1954. JSTOR. Disponível em: www.jstor.org/stable/837741. Acesso em: 1.º jun. 2020.

[7] SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição cit., p. 26.


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