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Distinção entre princípios constitucionais e normas programáticas na Constituição Federal

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04/11/2019

A Constituição Federal de 1988 está repleta de promessas de transformação do país. É uma das chamadas Constituições Aspiracionais, típica dos países da América Latina, como a Colômbia (1991), Equador (2008) e Uruguai (1967), mas também encontrada em alguns países europeus. As constituições de Portugal (1976), Espanha (1978), Bélgica (1831), por exemplo, contêm disposições de proteção social, apartando-se do modelo clássico de constituição voltada apenas à organização dos poderes e definição das liberdades negativas (direitos do cidadão de exigir abstenção estatal).

Outros países desenvolvidos incluem apenas timidamente em suas constituições cláusulas de busca de pleno emprego, educação fundamental gratuita e universal e assistência social aos desamparados, como as da Noruega (de 1814, arts. 110, 110 a e 110 b), Dinamarca (de 1953, §§ 75 e 76) e Finlândia (de 1999, Seções 16 a 20). Como se sabe, as constituições originalmente foram instrumentos jurídicos erigidos para refrear o poder dos governantes e buscar um equilíbrio entre os poderes. Com a evolução social e econômica de cada país, as constituições acabaram por ambicionar não apenas estabelecer limites ao exercício do poder, mas também a condicioná-lo ao alcance de metas sociais predeterminadas.

As normas que estabelecem limites ao poder do Estado têm uma característica notável: elas atribuem direitos aos cidadãos, mediante recurso aos remédios judiciais, com o objetivo de impedir uma ação concreta do Estado que extrapole os limites do permitido. Por isso são chamados de direitos à abstenção estatal. Sua forma de concretização é simples e intuitiva: impõe ou pode impor ao Estado um non facere.

Já as normas “aspiracionais”, materializadas em normas programáticas e princípios que regem a atuação do Estado, exigem uma mecânica jurídica distinta, pois seu objetivo não é exigir que o Estado se abstenha, mas o contrário, que se empenhe em alcançar determinados resultados. Isso altera substancialmente a análise do processo judicial como instrumento de efetivação das normas constitucionais. Ao judicializar um princípio ou uma norma programática não podemos mais empregar a mecânica simples dos modos de impedir uma ação estatal inconstitucional. Somos obrigados a refletir sobre como exigir que uma determinada ação seja promovida ativamente pelo Estado, visto que se encontra entre os direitos constitucionalmente inscritos.

O objetivo deste pequeno artigo é limitado a esboçar uma distinção que se tornou indispensável diante da vigência desse novo tipo de previsão constitucional. O que são princípios constitucionais e o que são normas programáticas? Sustentarei na sequência que há diferenças entre esses dois tipos de norma e também há consequências jurídicas relevantes na aplicação de uma e outra. Mais do que isso, sustentarei que é possível estabelecer critérios objetivos para distinguir os dois tipos de normas.

Vejamos alguns exemplos dessas metas a serem alcançadas e princípios que devem governar a vida social do Brasil, todos positivados na Constituição Federal de 1988:

  1. valorização do trabalho e da livre iniciativa (art. 170, caput);
  2. justiça social (art. 170, caput);
  3. soberania nacional (art. 170, I);
  4. função social da propriedade (art. 170, III);
  5. livre concorrência (art. 170, IV);
  6. defesa do consumidor (art. 170, V);
  7. defesa do meio ambiente (art. 170, VI);
  8. redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170, VII);
  9. busca do pleno emprego (art. 170, VIII);
  10. direitos sociais constitucionais.
  11. Tipologia das normas

As normas jurídicas se dividem em Princípios, Regras e Normas Programáticas. Essa não é a única forma de distingui-las, mas a que será convencionalmente adotada aqui. A Ordem Econômica constitucional brasileira veicula essas três modalidades normativas. As obras de Ronald Dworkin e Robert Alexy foram fundamentais para a superação de antigos conceitos que restringiam a aplicabilidade judicial dos princípios. Princípios são hoje aceitos e tratados como espécies de normas jurídicas e podem e devem ser utilizados como fundamentos de decisões judiciais.

Muitos autores tratam as normas programáticas como espécie do gênero princípios jurídicos, o que é facilitado pela linguagem do art. 170 CF. Mas entendo que há elementos suficientes para dar tratamento jurídico diferenciado a ambas as modalidades de normas. E se há diferença de atributos e consequências jurídicos, há boas razões para identificá-las de forma distinta.

Normas programáticas e princípios constitucionais

Princípios são as normas com o teor mais elevado de generalidade e abstração, é o que se costuma apresentar como justificativa para distingui-las das demais espécies normativas. Mas esse critério de distinção, ainda que verdadeiro, é claramente insuficiente. Também as normas programáticas são dotadas das características da generalidade e da abstração elevadas. As regras são mais pontuais e diretas, ensejam uma aplicação ao caso concreto. São os seguintes os elementos que trataremos de evidenciar na sequência para justificar uma diferença de tratamento entre os princípios jurídicos e as normas programáticas: critério da exigibilidade do Estado e critério da vinculação.

Critério da exigibilidade do Estado

Por definição, normas programáticas são metas constitucionalmente assentadas que devem ser perseguidas pelo Estado. Este deverá adotar políticas públicas tendentes à consecução desses fins. Exemplos delas:

“Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;

II – o amparo às crianças e adolescentes carentes;

III – a promoção da integração ao mercado de trabalho;

IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

(…).”

“Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

Nas normas citadas há sempre uma estrutura de criação de direitos subjetivos a políticas públicas, em que o credor é a sociedade e o devedor é o Estado. São normas que, por criarem deveres políticos ao Poder Público, empoderam os jurisdicionados e certos integrantes do próprio Estado em face exclusivamente do Estado. Assim, as normas programáticas criam direitos subjetivos exclusivamente em face do Estado e nunca em face de particulares.

Porém, este critério é insuficiente para distinguir uma espécie normativa de outra, visto que há princípios constitucionais que somente podem ser arguidos como direitos subjetivos em face do Estado. Exemplo disso são os princípios constantes do art. 4º da CF, segundo o qual “a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais” de acordo com os princípios da independência nacional; da prevalência dos direitos humanos; da autodeterminação dos povos etc. Mas há princípios que podem ser arguidos tanto em face do Estado quanto em face do particular. Como é o caso do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), que pode ser brandido judicialmente por um jurisdicionado em face de uma ação estatal, e também em face de um particular.

Isso não ocorre com as normas programáticas. Por sua aptidão jurídica, intitulam apenas o jurisdicionado em face do Estado, nunca em face de um particular. Assim, por exemplo, o rol de direitos sociais do art. 6º da CF atribui direitos subjetivos a políticas públicas nas áreas de educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados. Trata-se de normas programáticas, atribuindo direitos subjetivos à população em face do Estado. Nenhum jurisdicionado poderá invocar tais direitos subjetivos outro jurisdicionado, porque o devedor da prestação de direitos sociais é exclusivamente o Estado.

Assim, se um determinado direito subjetivo é arguível em face do Estado, nada prova que se trata de norma programática, para o fim de distingui-lo de um princípio. Porém, se tal direito subjetivo não for arguível em face do Estado ou puder ser arguido outro jurisdicionado, é sinal categórico de que não se trata de norma programática.

Critério da vinculação

Uma norma deve ser considerada vinculante se sua violação puder ser controlada pela corte constitucional[1]. No caso brasileiro, que admite o controle difuso e concentrado de constitucionalidade, adapta-se o conceito para abarcar toda possibilidade de controle de constitucionalidade e não apenas o que cabe ao STF abstratamente.

Enunciados programáticos, segundo Robert Alexy, são direitos subjetivos definitivos não vinculantes ou meras pretensões constitucionais a prestações[2]. Já os princípios, na categorização desse autor, são enunciados vinculantes, porém em caráter prima facie, ou seja, são mandatos de otimização não definitivos, “que exigem que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes”[3]. Para ele, normas (enunciados) programáticas, embora definitivas, não são vinculantes. Já os princípios são vinculantes, mas não definitivos.

Para mim, as normas programáticas atribuem sim direitos subjetivos à sociedade, mas são direitos subjetivos a políticas públicas e não a resultados específicos destas. As políticas públicas, por sua vez, não são suscetíveis de controle judicial quanto ao seu mérito. Um cidadão pode exigir que o Poder Público adote políticas públicas para fixar o valor do salário mínimo de forma que atenda aos requisitos do art. 7º da CF, mas o Poder Judiciário não tem poderes para melhorar as políticas existentes ou adotar políticas novas, para que o fim previsto seja alcançado[4]. Nesse sentido, concordo com a sistematização de Alexy, ao reputar as normas programáticas como não vinculantes, o que traz importantes consequências para a caracterização dos tipos normativos. A única hipótese que vislumbro de que as normas programáticas tenham algum poder vinculante diz respeito às prestações estatais normativas gerais, que, conforme veremos adiante, se resolve, no máximo, mediante a aplicação do art. 103, § 2º, da CF[5].

Assim, normas programáticas não apenas não podem ser controladas comparando-as com as políticas públicas escolhidas para concretizá-las. Há um aspecto adicional de extrema relevância: mesmo que se entenda que uma dada política pública fira a busca do pleno emprego, ou viole a liberdade de concorrência, ou não leve a um salário mínimo digno, esses argumentos são insuficientes para tornar inconstitucional a política pública atacada. Porque uma política pública é sempre uma escolha entre valores que serão prestigiados e valores que serão deixados em segundo plano. Uma política que defenda o meio ambiente pode deixar de lado a concorrência desejável no mercado de um dado produto. Uma política que privilegie a recuperação da empresa falida pode sacrificar a busca do pleno emprego. Uma política que não satisfaça o mínimo de dignidade de um salário pode, por outro lado, estar valorizando a busca do pleno emprego. Em matéria de norma programática não é suficiente a demonstração de que uma política pública a contradiga para tornar esta última inconstitucional. É preciso que a política pública fira outras regras ou princípios para ser atacada em juízo.

Conclusões

Em meu livro Direito Econômico – Do Direito Nacional ao Direito Supranacional (São Paulo, Atlas, 2019, 6ª edição, capítulo 6) analisei detalhadamente a aplicação desses dois critérios de distinção entre os princípios e as normas programáticas aos dispositivos da Constituição acima referidos (introdução, letras a a j), usando como referência farta jurisprudência do STF a respeito.

Nos limites deste artigo posso afirmar que a distinção tem enorme impacto sobre a justiciabilidade desses direitos. É evidente que desejamos todos que transformações sejam operadas em nosso país e que o direito e o poder judiciário possam desempenhar papéis importantíssimos nesse processo. Importantes avanços foram alcançados pela via judicial nessas mais de três décadas de aplicação da Constituição de 1988. Mas não se pode negar que houve um amadurecimento institucional do país, que permite uma nova perspectiva para os limites de justiciabilidade dos preceitos constitucionais, sem que isso represente uma visão retrógrada ou contrária aos avanços sociais.

O desenvolvimento de estudos sobre os impactos sociais e econômicos das decisões judiciais, nesse sentido, é fundamental para compreender as relações entre as teorias brandidas em juízo e o custo social delas decorrente.

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[1] ALEXY, Robert, Teoria dos Direitos Fundamentais, (Trad. Virgílio Afonso da Silva), São Paulo, Malheiros, 2012, p. 501.

[2]Idem.

[3]Idem, p. 105

[4] Cf. ADI 1458-7/DF, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 23.05.1996, DJ 20.09.1996: “Não assiste ao STF (…) a prerrogativa de expedir provimentos normativos com o objetivo de suprir a inatividade do órgão legislativo inadimplente.” Posteriormente, cf. próxima nota de rodapé, o Min. Celso de Mello passou a adotar outra postura em relação ao tema.

[5] Em sentido oposto tem reiteradamente se manifestado o Min. Celso de Mello, para quem “o caráter programático da regra inscrita no art. 227 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – impõe o reconhecimento de que as normas constitucionais veiculadoras de um programa de ação revestem-se de eficácia jurídica e dispõem de caráter cogente.” (RTJ 164/158-161). Também na ADPF 45, afirmou o Min. Celso de Mello: “a ação constitucional em referência, considerado o contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, quando, previstas no texto da Carta Política, tal como sucede no caso (EC 29/2000), venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República. Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais – que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas.”


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