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A evolução do direito financeiro nos 35 anos da Constituição de 1988

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A evolução do direito financeiro nos 35 anos da Constituição de 1988

Marcus Abraham

Marcus Abraham

28/12/2023

Nestes recém-completados 35 anos de vigência da Constituição Federal de 1988, o Direito brasileiro passou por um processo de evolução e amadurecimento na ordem política, jurídica, econômica e social, ao consolidar a transição de um regime autoritário para o democrático, solidificando o nosso Estado democrático de Direito.

A efetividade dos direitos fundamentais e sociais se consolidou como argamassa para estabelecer uma estrutura jurídico-constitucional que permitisse garantir ao cidadão – como direito subjetivo deste e dever do Estado – os bens e serviços necessários para a sua existência com dignidade e possibilidade de florescimento pessoal.

Para acompanhar a crescente demanda da atividade estatal em favor da sociedade brasileira, o nosso sistema tributário ganhou uma nova dimensão, complexidade e elevada carga fiscal (partindo de cerca de 23% do PIB na época da promulgação da Constituição Federal de 1988 para atuais 34%).

E como a outra face da mesma moeda, o Direito Financeiro não apenas saiu do obscurantismo, como também ganhou pujança normativa e protagonismo na seara fiscal e no Direito Público, tanto em nível constitucional, como em nível de normas gerais infraconstitucionais.

Leis complementares

Inúmeras leis complementares de Direito Financeiro – instituindo normas gerais – foram editadas na vigência da nossa Constituição, tais como: a LC 61/89 (repartição de receita tributária); a LC 62/89 (liberações dos recursos do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal e do Fundo de Participação dos Municípios); a LC 63/90 (repartição de receita tributária); a LC 91/97 (coeficientes de distribuição do Fundo de Participação dos Municípios); a LC 101/00 (responsabilidade na gestão fiscal); a LC 106/2001 (coeficientes de distribuição do Fundo de Participação dos Municípios); a LC 111/2001 (Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza); a LC 131/2009 (transparência; execução orçamentária); a LC 141/ 2012 (despesas com saúde); a LC 143/2013 (critérios de rateio do Fundo de Participação dos Estados e DF); a LC 148/2014 (refinanciamento de dívidas contraídas com a União); a LC 151/2015 (refinanciamento de dívidas contraídas com a União); a LC 156/2016 (plano de auxílio a Estados e DF; refinanciamento de dívidas contraídas com a União); a LC 159/2017 (regime de recuperação fiscal dos Estados e DF); a LC 164/2018 (sanções a Municípios por descumprimento dos limites de despesa com pessoal); a LC 165/2019 (coeficientes de distribuição do Fundo de Participação dos Municípios); a LC 172/2020 (transposição e transferência de saldos financeiros dos Fundos de Saúde dos Estados, DF e Municípios provenientes de repasses federais); a LC 173/2020 (programa de enfrentamento à Covid-19); a LC 176/2020 (transferências obrigatórias da União para os demais entes políticos); a LC 177/2021 (limites a contingenciamento de despesas relativas à inovação e ao desenvolvimento científico e tecnológico); a LC 180/2021 (despesas no bojo do programa de enfrentamento à Covid-19); a LC 181/2021 (saldos financeiros; prazos de transposição, transferência, transposição e de reprogramação orçamentária pelos entes políticos); a LC 189/2022 (regime de recuperação fiscal de Estados e DF; aditivo ao acordo federativo; plano de recuperação fiscal); LC 191/2022 (programa de enfrentamento à Covid-19 e despesas com servidores públicos civis e militares da área de saúde e da segurança pública); a LC 195/2022 (ações emergenciais, em razão da Covid-19, no setor cultural); a LC 197/2022 (saldos financeiros; prazos de transposição, transferência, transposição e de reprogramação orçamentária pelos entes políticos); a LC 198/2023 (coeficientes de distribuição do Fundo de Participação dos Municípios); a  LC 200/2023 (sustentabilidade da dívida pública; regime fiscal sustentável).

Dentre todas essas, em minha opinião, a mais relevante foi a LC 101/2000, que nos brindou com a Lei de Responsabilidade Fiscal, e criou – ao menos formalmente – um novo regime e cultura para o trato das contas públicas em nosso país, pautados em padrões internacionais de accountability e de boa governança, com destaque para princípios como a transparência, planejamento e sustentabilidade fiscal.

Apesar dos efeitos positivos dela decorrentes já efetivados, ainda não se conseguiu superar o elevado tamanho da dívida pública e dos déficits fiscais recorrentes. Ademais, ainda há mecanismos legais nela previstos que não foram regulamentados – tais como o Conselho de Gestão Fiscal (art. 67) e a imposição de limites para a dívida pública federal –, sem olvidar da imperatividade das regras de limitações com despesa de pessoal que, não obstante as previsões legais (e agora constitucionais), sempre acabam sendo objeto de “brechas” ou justificativas para serem burladas, com gradativa expansão de tais gastos.

Também merece destaque a mais recente LC 200/2023, que criou o novo regime de sustentabilidade fiscal (conhecido também por “novo arcabouço fiscal”) em substituição ao regime do teto de gastos, numa nítida demonstração de que não desistimos de estabelecer uma gestão fiscal sustentável e responsável, sem afastar a possibilidade de crescimento das despesas públicas – sobretudo aquelas relacionadas a gastos fundamentais – quando do incremento das receitas públicas, desde que haja cumprimento das metas fiscais.

Emendas Constitucionais

Por sua vez, na esfera constitucional, também foram editadas diversas emendas constitucionais (talvez até em demasia em se tratando de foro constitucional). Dentre elas, citamos: a EC 10/1996 (Fundo Social de Emergência); a EC 14/1996 (despesas com educação); a EC 17/1997 (Fundo Social de Emergência); a EC 25/2000 (limites de despesa; Poder Legislativo municipal); a EC 27/2000 (DRU); a EC 29/2000 (despesas com saúde); a EC 30/2000 (precatório; ordem de preferência de pagamento); a EC 31/2000 (Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza); a EC 43/2004 (transferências obrigatórias; recursos para Centro-Oeste e Nordeste destinados à irrigação); a EC 50/2006 (repartição de receita tributária); a EC 53/2006 (despesa com educação); a EC 55/2007 (Fundo de Participação dos Municípios); a EC 56/2007 (DRU); a EC 59/2009 (despesas com educação); a EC 62/2009 (precatório; regime especial de pagamento pelos Estados, DF e Municípios); a EC 67/2010 (Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza); a EC 68/2011 (DRU); a EC 84/2015 (Fundo de Participação dos Municípios); a EC 85/2015 (transposição, remanejamento e transferência de recursos no segmento da ciência, tecnologia e inovação); a EC 86/2015 (execução orçamentária obrigatória; emendas individuais ao orçamento); a EC 89/2015 (transferências obrigatórias; recursos para Centro-Oeste e Nordeste destinados à irrigação); a EC 93/2016 (DRU, DRE e DRM); a EC 94/2016 (precatório; regime especial de pagamento para caso de mora); a EC 95/2016 (novo regime fiscal; limites de despesa pública); a EC 99/2017 (precatório; regime especial de pagamento para caso de mora); a EC 100/2019 (execução orçamentária obrigatória; emendas de parlamentares); a EC 102/2019 (leis orçamentárias); a EC 105/2019 (emendas ao projeto de lei orçamentária; receitas transferidas); a EC 106/2017 (regime extraordinário fiscal; COVID-19); a EC 108/2020 (repartição de receita tributária; FUNDEB); a EC 109/2021 (avaliação das políticas públicas); a EC 112/2021 (Fundo de Participação dos Municípios); a EC 113/2021 (precatório; regime de parcelamento); a EC 119/2022 (COVID-19; descumprimento dos percentuais de gastos mínimos em educação nos exercícios financeiros de 2020 e 2021); a EC 126/2022 (emendas individuais ao projeto de lei orçamentária); a EC 127/2023 (utilização de superávit financeiro para amortização de dívida pública e pagamentos); e a EC 128/2023 (exigência de fonte orçamentária e financeira necessária à realização da despesa).

Esta “ebulição normativa” no texto constitucional chama a atenção e permite formular algumas perguntas: acaso são necessárias quase quarenta emendas constitucionais para se levar a sério e serem respeitadas as regras do Direito Financeiro? Tais normas veiculadas por meio de emendas constitucionais são realmente de natureza e foro constitucional, ou poderiam vir por leis complementares ou mesmo leis ordinárias? É saudável para um ordenamento jurídico sofrer tantas alterações, especialmente na área das finanças públicas?

Exemplo destas indagações e constatação foi a necessidade de inserção no texto da Constituição de 1988, por meio da EC 109/2021, da imperatividade de avaliação das políticas públicas, como se algo óbvio e decorrente do bom senso não fosse naturalmente exigível do gestor público.

STF

Ainda falando em Constituição Federal, frases de dois ministros do STF (hoje aposentados) merecem ser repetidas e relembradas. Para o ministro Carlos Ayres Britto (ADI 4048), a lei orçamentária é “a lei materialmente mais importante do ordenamento jurídico logo abaixo da Constituição”. Por sua vez, ao tratar do excesso da aprovação de emendas ao texto da Constituição, disse então o ministro Marco Aurélio Mello que “a Constituição precisa ser um pouco mais amada”. Este mesmo ministro, ao abordar a feição das leis orçamentárias como “peças de ficção”, verbalizou em seu voto no julgamento na ADI 4.663: “A lei orçamentária ganha, então, contornos do faz de conta. Faz de conta que a Casa do Povo aprova certas destinações de recursos, visando às políticas públicas, sendo que o Executivo tudo pode, sem dizer a razão”.

Por outro lado, não podemos deixar de enaltecer a evolução de posicionamento do STF nas duas últimas décadas, quando passou a reconhecer materialidade e substancialidade ao conteúdo das leis orçamentárias, ao admitir que estas fossem submetidas a controle concentrado e abstrato de constitucionalidade (sobretudo por meio das Ações Diretas de Inconstitucionalidade).

Com isso, a Suprema Corte deu sua contribuição a fim de garantir, da parte do gestor público, maior atenção à correta elaboração e execução do orçamento (o qual poderá ser judicialmente controlado), em nítida afirmação de que a natureza da despesa pública, tanto na sua escolha como na sua realização, é, em sua essência, de origem jurídico-constitucional e deve contemplar mínimos essenciais e prioridades nos gastos públicos, em respeito a valores e princípios, em especial ao da dignidade da pessoa humana.

Algumas outras dificuldades no âmbito das finanças públicas e do Direito Financeiro ainda precisam ser superadas, dentro de um contexto em que ainda prevalece um espírito de “desvalorização orçamentária”.

Apesar da vitória em ver inserido o Direito Financeiro como disciplina obrigatória nos cursos de graduação em Direito em todas as faculdades do país, assim como passar a ser exigido no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, a educação fiscal ainda é incipiente em nosso país. A conscientização fiscal deve estimular o cidadão a compreender os seus direitos e deveres cívicos, concorrendo para o fortalecimento do ambiente republicano e democrático, imprescindível para qualquer nação que pretenda o bem-estar dos seus integrantes.

Também ainda não conseguimos superar as práticas e o uso indiscriminado predatório de desonerações e incentivos fiscais (cujo custo-benefício permanece imensurável e incomprovado) e a malsinada guerra fiscal que ocorre em um modelo federativo que deveria ser cooperativo e não competitivo.

Ademais, o cumprimento das metas fiscais ainda é insatisfatório, dentro de uma equação complexa e sensível: ao mesmo tempo que não se podem vincular despesas constantes a receitas eventuais ou variáveis, sob pena de se gerar um desequilíbrio nas contas públicas e o consequente déficit fiscal orçamentário e insustentabilidade da dívida pública, não é recomendável que se tenha um excedente de receitas públicas sem a respectiva despesa, implicando um acúmulo de recursos financeiros sem uma efetiva aplicação nas necessidades coletivas.

Permanece nos assombrando o fantasma dos “restos a pagar”, com o seu uso desordenado e seus efeitos deletérios na programação do exercício fiscal seguinte. E o sistema de precatórios continua excessivamente complexo e detalhado no próprio texto constitucional, com frequentes postergações temporais de seu adimplemento em favor dos entes federados devedores. O cidadão acaba tendo de esperar por anos a fio o pagamento de seu precatório, que não é meramente uma despesa, mas, antes de tudo, meio de cumprimento de uma obrigação constitucional.

Devemos também louvar o advento da impositividade orçamentária que, em regra, exige certa sinceridade orçamentária no cumprimento daquilo que foi previsto e aprovado pelo Legislativo na lei orçamentária anual. Nesse sentido, as próprias emendas parlamentares impositivas garantem aos representantes do povo um percentual mínimo de recursos a serem obrigatoriamente investidos em suas áreas de interesse e junto à população que os elegeu.

É claro que, na alocação de recursos de tais emendas parlamentares, sempre há o risco de interesses ideológicos que não levem em consideração os imperativos e urgências do país. Mas esse é o desafio da gestão do dinheiro público, descrito por Roberto Campos, ao afirmar que o problema está em deixar a “res publica” ser tratada como se fosse coisa de ninguém, abrindo-se espaço para que a tratem como “cosa nostra”.

Nesses 35 anos de Constituição Federal e de evolução das normas do Direito Financeiro, devemos reconhecer a inequívoca necessidade de constantes ajustes face à realidade fática e contemporânea, a fim de evitar eventual descompasso a acarretar ruptura entre a ordem jurídica e a social e econômica. Precisamos, também, aceitar que o texto constitucional permanece vivo e está em constante desenvolvimento.

Acredito que a justiça fiscal e orçamentária envolverá, pelo lado da receita pública, uma arrecadação equitativa e equilibrada, provida de segurança jurídica e com respeito à igualdade e à capacidade contributiva, limitada pelo mínimo existencial e pelo máximo confiscatório, devendo ser suficientemente necessária para custear os gastos estatais; pelo lado da despesa pública, as escolhas devem ser criteriosas e a destinação eficiente, para que possa atender às necessidades públicas prioritárias, sobretudo no que tange aos mínimos necessários e aos direitos fundamentais e sociais.

Repetindo o que já afirmei algumas outras vezes, mais que um conjunto de normas sobre o ingresso, a gestão e a aplicação dos recursos financeiros do Estado, o Direito Financeiro é uma ferramenta de mudança social, importante para um país como o nosso, repleto de desigualdades sociais, econômicas e culturais, a fim de oferecer ao cidadão brasileiro e aos governos os mecanismos necessários para o desenvolvimento econômico e social, com a criação de uma sociedade mais digna e justa.

Trata-se de uma estrada ladeada por flores e espinhos, em que temos coisas a comemorar e temas que suscitam nossas preocupações. Porém, não podemos perder a esperança e a mirada para adiante, sabendo que o percurso está ainda por ser feito, como imortalizado nas inspiradoras palavras do escritor latino-americano Eduardo Galeano: “A utopia está lá no horizonte. Aproximo-me dois passos. Ela se afasta dois. Caminho dez passos, e o horizonte corre outros dez. Por mais que eu caminhe, não a alcançarei. Então, para que serve a utopia? Serve para que eu jamais deixe de caminhar”.

Fonte: Jota

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