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Soft Law e Direito Privado Estrangeiro: fontes úteis aos juristas brasileiros
Carlos E. Elias de Oliveira
19/06/2023
Inauguramos a Coluna Migalhas de Direito Privado Estrangeiro, com um objetivo claro: compartilhar questões interessantes de outros países e de entidades transnacionais em Direito Civil, em Direito Notarial e Registral.
As publicações serão quinzenais, às terças-feiras, com eventuais edições extraordinárias em outros dias.
Já mantemos iniciativas similares em outras plataformas, como no perfil @direitoprivadoestrangeiro no Instagram. Esperamos que, nesta Coluna, o leitor encontre espaço para conhecer mais o que acontece fora de nosso território.
Não se trata de mera curiosidade. Conhecer experiências jurídicas estrangeiras abre-nos a criatividade, seja para formular novas teses jurídicas em processos judiciais, seja para discutir mudanças legislativas, seja para compreender mais adequadamente os fundamentos do nosso Direito.
Hoje o objetivo é tratar de uma fonte importante para estudos de direito privado estrangeiro: o soft law. Os advogados, o legislador, os magistrados, enfim, os operadores do Direito em geral brasileiros podem valer-se dessa ferramenta para guiar debates sobre questões jurídicas práticas.
No Brasil, já conhecemos instrumentos de soft law, como os enunciados das Jornadas de Direito Civil1 e os da I Jornada De Direito Notarial e Registral2, os quais – apesar de não serem vinculantes – guiam os operadores do Direito.
Soft Law e os estudos de Direito Privado Estrangeiro
O soft law (também chamado de soft norm, droit doux, direito flexível e direito plástico) consiste em regras não vinculantes adotadas em foros internacionais, como os fornecidos por institutos privados.
Apesar de não terem força vinculante, essas regras de soft law guiam os negócios privados e as instituições jurídicas locais (especialmente o Parlamento e o Judiciário) para manter um ambiente de harmonização internacional de direitos. Podem, por exemplo, ser escolhidas pelas partes como a regra aplicável a um contrato. Podem guiar câmaras arbitrais no julgamento. Servem de parâmetro pelo Poder Judiciário nacional.
O soft law consegue ter certa força orientadora por espelhar os costumes e os princípios gerais do direito, os quais costumam ser fontes dos ordenamentos jurídicos dos países. Os costumes refletem uma prática generalizada (elemento material do costume) acompanhada de uma opinio iuris (elemento subjetivo). A opinio iuris é a convicção acerca da juridicidade daquela prática generalizada3.
Dentro do conceito de soft law, podem-se incluir normas vinculantes com um conteúdo aberto ou programático, marcado pela sua flexibilidade: uma espécie de direito flexível4. Não estamos, porém, a tratar dessa acepção5. Aqui estamos a focar a acepção do soft law como um quase-direito. Abrange, por exemplo, instrumentos não obrigatórios formalmente produzidos por organismos privados ou estatais. Alcança, inclusive, o gentlemen’s agreement (acordo de cavalheiros), oriundo da doutrina anglo-saxã e que consiste em compromissos não obrigatórios que expressam uma diretriz dos Estados em concerto.
Memorandos de entendimentos, declarações, declarações conjuntas, declarações das grandes conferências internacionais, atas finais, agendas, programas de ações, recomendações, acordos não vinculantes (non-binding agreements) e leis-modelo são, no plano internacional, nomes que são empregados a instrumentos que podem designar exemplos de soft law. É preciso, porém, tomar cuidado. Por vezes, esses nomes (com ressalva óbvia do termo “acordos não vinculantes”) reportam-se a instrumentos vinculantes, escapando do conceito de soft law. É preciso olhar o caso concreto.
No direito privado, um exemplo de soft law são os princípios Unidroit6 relativos aos Contratos Comerciais Internacionais7. Não se trata de uma convenção internacional internalizada por Estados. Não há caráter vinculante. Entretanto, os referidos princípios Unidroit guiam a prática do comércio internacional e orientam interpretações a serem feitas da legislação doméstica e internacional, pois refletem um topoi (um lugar comum) jurídico. São utilizados em arbitragem ou como lei escolhida pelas partes em contratos8. Há até decisões dos Poderes Judiciários domésticos valendo-se dos princípios Unidroit. O próprio preâmbulo dos Princípio Unidroit, ao tratar de seu âmbito de aplicação, reconhece que, apesar de não ostentar uma força vinculante formal estatal, gaba-se de uma força de fato em guiar contratos, leis (domésticas e internacionais), jurisprudência e doutrina9. Os princípios Unidroit caminham para ser uma espécie de “Restatements10 internacional dos princípios gerais de direito dos contratos”11. Aliás, as próprias partes podem eleger, em contratos, a aplicação dos princípios do Unidroit (ou outras normas não estatais), ao menos no âmbito da União Europeia, respeitadas as particularidades das normas comunitárias europeias e as normas domésticas12.
Há importantes organizações internacionais privadas e intergovernamentais que trabalham na edição de leis uniformes ou de instrumentos de soft law, na elaboração de convenções internacionais e na promoção de práticas de harmonização internacional, especialmente em direito privado.
Considerações sobre Soft Law
Em suma, é importante sempre conhecer os principais instrumentos de soft law produzidos por instituições públicas e por respeitadas instituições privadas. No Brasil, os enunciados das Jornadas de Direito Civil e da I Jornada de Direito Notarial e Registral são exemplos de ferramentas de soft law muito utilizadas.
Convém também que outras ferramentas de soft law desenvolvidas no âmbito transnacional também frequentem os debates de Direito Privado. Todavia, cabe um alerta: esse debate há de realizado com maturidade, ciente de que esses instrumentos de soft law, embora expressem o entendimento de juristas renomados de diversos países, não necessariamente representam uma unanimidade na comunidade jurídica: não são “verdades absolutas”. Chamamos a atenção para estes instrumentos de soft law em direito privado no âmbito transnacional:
a) Draft Common Frame of Reference (DCFR), também conhecido como Projeto de Código Civil Europeu ou como projeto de Quadro Comum de Referência, o qual foi desenvolvido no âmbito da União Europeia13.
b) Principles of European Contract Law (PECL), fruto do trabalho, em três estágios, da Comissão Europeia de Direito Europeu dos Contratos envolvendo renomados juristas (comissão essa que ficou conhecida como Lando Commission, em referência ao jurista Ole Lando, tido como o criador e o presidente da comissão). As partes I e II foram publicadas em 1995 e 1999; a Parte III, em 200314.
c) os Princípios do Unidroit sobre Contratos Comerciais Internacionais, cuja última versão é de 201615;
d) Lei Modelo de Leasing do Unidroit16;
e) Convenção do Unidroit sobre Leasing Financeiro Internacional17 (UNIDROIT Convention on International Financial Leasing)18.
f) Princípios sobre escolha da lei aplicável em contratos comerciais internacionais, da HCCH (sigla de Hague Conference on Private International Law; em francês, Conférence de La Haye de droit international privé; ou, em português, Conferência da Haia de Direito Internacional Privado)19.
g) Lei Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional da Uncitral (sigla de United Nations Comission on International Trade Law ou, em português, Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional da ONU)20;
h) Lei Modelo de Garantias Mobiliárias da OEA – Organização dos Estados Americanos (Model Inter-American Law On Secured Transactions)21;
i) Lei Modelo de Garantias Mobiliárias da Uncitral (UNCITRAL Model Law on Secured Transactions)22.
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NOTAS
1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Ver: (1) NASSER, Salem Hikmat. Fontes e normas do direito internacional: um estudo sobre a soft law. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 70-74, 92-93 e 156-157; (2) MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Forense, 2018Mazzuoli, 2018, pp. 213-214.
4 NASSER, Salem Hikmat. Fontes e normas do direito internacional: um estudo sobre a soft law. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 97-140.
5 Paulo Henrique Gonçalves Portela dá didática definição (PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado: Incluindo Noções de Direitos Humanos e de Direito Comunitário. Salvador: JusPodivm, 2021, pp. 80-81):
O conceito foi desenvolvido pela doutrina norte-americana, em oposição à noção de hard law, que se refere ao Direito tradicional. No Brasil, Nasser define soft law como um conjunto de “regras cujo valor normativo seria limitado, seja porque os instrumentos que as contêm não seriam juridicamente obrigatórios, seja porque as disposições em causa, ainda que figurando em um instrumento constringente, não criariam obrigações de direito positivo ou não criariam senão obrigações pouco restringentes”. O autor aponta ainda as seguintes modalidades de soft law:
– normas, jurídicas ou não, de linguagem vaga e de conteúdo variável ou aberto, ou, ainda, que tenham caráter principiológico ou genérico, impossibilitando a identificação de regras claras e específicas;
– normas que prevejam mecanismos de soluções de controvérsia, como a conciliação e a mediação;
– atos concertados entre os Estados que não adquiram a forma de tratados e que não sejam obrigatórios;
atos das organizações internacionais que não sejam obrigatórios; – instrumentos produzidos por entes não estatais que consagrem princípios orientadores do comportamento dos sujeitos de Direito Internacional e que tendam a estabelecer novas normas jurídicas.
(…) Em suma, o soft law inclui preceitos que ainda não se transformaram em normas jurídicas ou cujo caráter vinculante é muito débil, ou seja, “com graus de normatividade menores que os tradicionais”, como afirma Soares. Com isso, é comum que as regras de soft law tenham caráter de meras recomendações.
(…)
Exemplos relevantes de documentos internacionais que podem ser considerados como de soft law são a Declaração Universal dos Direitos Humanos, as declarações de organismos internacionais referentes à saúde pública (como a Declaração de Alma-Ata e a Declaração de Cartagena), as recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Lei Modelo sobre Arbitragem Internacional, a Carta Democrática Interamericana, as Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em condição de Vulnerabilidade e a Declaração Sociolaboral do Mercosul.
Independentemente do caráter de fonte do Direito Internacional de que se revista ou não o soft law, é inegável a influência dos diplomas que têm esse formato no atual quadro do Direito das Gentes e da Ciência Jurídica como um todo.
O soft law vem servindo, por exemplo, como modelo para elaboração de tratados e de leis internas, como parâmetro interpretativo, como pauta de políticas públicas e de ação da sociedade civil e como reforço da argumentação para operadores do Direito. (…) Cabe destacar que a própria jurisprudência dos tribunais brasileiros vem mencionando alguns desses documentos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os Princípios Yogyakarta.
(…)
A respeito do emprego da Declaração Universal dos Direitos Humanos nos julgamentos do Pretório Excelso, e a título de mero exemplo, ver os seguintes julgados do STF: ARE 639.337 AgR/SP e ADC 29/DF.
A respeito do emprego dos princípios de Yogyakarta nos julgamentos do Pretório Excelso, ver os seguintes julgados: RE 477.554 AgR/MG, ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF.
6 Unidroit é a International Institute for the Unification of Private Law ou Institut International pour l’unification du droit privé). Trata-se de uma organização intergovernamental, composta por 63 Estados membros.
7 Sobre os princípios do Unidroit em arbitragem internacional, ver: KUGUIMIYA, Luciana Lie. Os princípios do UNIDROIT relativos aos contratos comerciais internacionais na arbitragem internacional. Publicado em 1 de abril de 2021 (Disponível aqui. Acesso em 2 de março de 2022).
8 KUGUIMIYA, Luciana Lie. Os princípios do UNIDROIT relativos aos contratos comerciais internacionais na arbitragem internacional. Publicado em 1 de abril de 2021 (Disponível aqui. Acesso em 2 de março de 2022).
9 Segue o inteiro teor do dispositivo:
PREÂMBULO
(O objetivo dos Princi’pios)
Estes Princi’pios estabelecem regras gerais para contratos comerciais internacionais.
Devem ser aplicados caso as partes tenham acordado que o seu contrato sera’ regulado por eles.(*) Podem ser aplicados caso as partes tenham acordado que o seu contrato sera’ regulado por princi’pios gerais de direito, pela lex mercatoria, ou similares.
Podem ser aplicados caso as partes na~o tenham escolhido nenhuma lei para regular o seu contrato. Podem ser usados para interpretar ou suplementar instrumentos internacionais de direito uniforme. Podem ser usados para interpretar ou suplementar leis nacionais.
Podem servir de modelo para legisladores nacionais e internacionais.
10 A referência é aos Restatements of the Law, espécies de tratados que reúnem princípios gerais do common law para auxiliar os operadores do Direito nos EUA. São espécies de consolidação da jurisprudência. Assemelham-se às súmulas dos tribunais, com a diferença de que não são oriundas de órgão estatal. Os Restatements são publicados pela entidade privada American Law Institute (ALI), criada em 1923. Há quatro Restatements, os quais subdivididos em vários volumes conforme o conteúdo. Por exemplo, o Restatement of the Law Third possui volumes relativos a repsonsabilidade civil, a hipotecas (mortgages), a servidões (servitudes), a enriquecimento ilícito (restitution and unjust enrichment) etc. (Romano, 2017; Texas Law, 2022). O site oficial da American Law Institute disponibiliza, para venda, os volumes. Recomendamos leitura destes artigos: (1) ROMANO, Rogério Tadeu. O restatement of the law dos norte-americanos. Publicado em maio de 2017 (Disponível aqui. Acesso em 10 de fevereiro de 2022); (2) TEXAS LAW. Restatements of the law. Disponível aqui. Acesso em 19 de abril de 2022.
11 Princípios Unidroit relativos aos contratos comerciais internacionais 2016. Ano: 2016, p. 28 (Disponível aqui).
12 A propósito, o item 13 dos Considerandos do Regulamento Roma I (Regulamento CE nº 593/2008) dispõe:
13 O presente regulamento não impede as partes de incluírem, por referência, no seu contrato, um corpo legislativo não estatal ou uma convenção internacional.”
13 A versão completa em inglês intitula-se Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law: Draft Comoon Frame Of Reference (DCFR). Há uma versão completa (full edition) e uma versão resumida está disponível na Internet. LAW KUELEUVEN. Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law: Draft Comoon Frame Of Reference (DCFR). Ano: 2009 (Disponível aqui).
14 Ver: (1) LANDO, Ole; CLIVE, Eric; PRÜM, André; ZIMMERMANN, Reinhard. Principles of European Contract Law, Part III. The Hague/Netherlands; London/UK; New York/EU: Kluwer Law International, 2003; (2) HESSELINK, Martijn W. The Principles of European Contract Law: some choices mande by the Lando Commission. In: Global Jurist Frontiers, vol. 1, nº 1, 2011 (Disponível aqui).
15 Unidroit, 2016. Disponível neste site.
16 Unidroit Model Law on Leasing. Ano: 2010 (Disponível aqui).
17 DUARTE, Rui Pinto. A Convenção do Unidroit sobre Locação Financeira Internacional – tradução e notas. In: Documentação e Direito Comparado, nº 35/36, 1988 (Disponível aqui).
18 UNIDROIT Convention on International Financial Leasing. Ano: 1988 (Disponível aqui).
19 É uma organização intergovernamental com 83 membros (82 Estados e a União Europeia). Foi fundada em 1893. Seu escopo é promover a progressiva unificação das regras de direito internacional privado. Quanto aos princípios relativos à escolha de lei aplicável aos contratos comerciais internacionais, ele está disponível neste site.
20 UNCITRAL. Lei Modelo da UNCITRAL sobre Arbitragem Comercial Internacional 1985 com as alterações adotadas em 2006. Ano: 2006.
21 Organization of American States, 2013. Para aprofundamento, reportamo-nos a: (1) SILVA, Fábio Rocha Pinto e. Garantias das Obrigações: uma análise sistemática doo Direito das Garantias e uma proposta abrangente para a sua reforma. São Paulo: Editora Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP, 2017; (2) RODAS, João Grandino. Facilitar o uso de garantias mobiliárias incrementaria a economia. Publicado em 4 de junho de 2020.
22 UNCITRAL Model Law on Secured Transactions. Ano: 2019 (Disponível aqui).