GENJURÍDICO
Sequestro internacional ou direito de guarda Competência em casos internacionais

32

Ínicio

>

Artigos

>

Civil

>

Internacional

ARTIGOS

CIVIL

INTERNACIONAL

Sequestro internacional ou direito de guarda? Competência em casos internacionais

DIREITO DE GUARDA

DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

SEQUESTRO INTERNACIONAL

Jacob Dolinger

Jacob Dolinger

14/01/2025

A dissolução do vínculo afetivo tem como uma de suas possíveis consequências a disputa entre os ex-cônjuges acerca dos direitos de guarda e visitação sobre a prole comum do casal, o que inclui notadamente a prerrogativa de definir o domicílio das crianças. Esse aspecto é especialmente importante no plano do direito internacional privado porque nas famílias formadas por indivíduos de diferentes nacionalidades o fim do relacionamento pode significar também a perda do interesse em viver no exterior. Imagine-se o caso do brasileiro que transfere seu domicílio para Portugal com o único intuito de constituir família com seu companheiro no exterior, ou da brasileira que, havendo completado seus estudos nos Estados Unidos, decide permanecer no país para lá constituir família.

Nessa seara, a determinação da jurisdição competente é frequentemente o aspecto decisivo da disputa e tem repercussões substanciais concebidas para prevenir e remediar os casos de sequestro internacional de crianças. Antes da conclusão da Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, de 1980, o interesse de um dos genitores de se reinstalar no seu país de origem frequentemente era atingido de forma irregular: sem o consentimento do outro genitor, a parte interessada transferia-se para o seu país de origem com os filhos do casal e lá adotava as medidas necessárias para ver reconhecido seu direito de guarda sobre os filhos do casal. Sem saber do paradeiro exato de seus filhos, e por vezes sem conhecimento da língua, da cultura e do sistema jurídico estrangeiros, o genitor abandonado enfrentava enormes dificuldades para obter o retorno de seus filhos para o país de sua residência habitual.

A Convenção da Haia de 1980 tem o duplo propósito de prevenir a remoção ou retenção ilícita de crianças e de remediar os casos em que tais ações já foram praticadas. Para isso, a convenção estabelece a regra geral do retorno imediato das crianças sequestradas para a jurisdição de sua residência habitual. Os juízes do país de refúgio não devem proferir decisões sobre direitos de guarda e visitação, matéria reservada aos juízes da residência habitual da criança, que possuem mais familiaridade com o contexto sociocultural em que inserida a família, mais proximidade com as provas a serem produzidas e, na maior parte dos casos, com o direito aplicável à disputa. A residência habitual também é, como regra geral, o foro mais equidistante entre as partes, pois a residência habitual pressupõe algum grau de familiaridade com determinada jurisdição.

No Brasil,1 o primeiro caso de grande repercussão envolvendo a aplicação da convenção foi o caso Sean Goldman. Tratava-se de pedido de retorno formulado pela autoridade central estadunidense em favor de David Goldman, estadunidense. Sean Goldman, filho de David, encontrava-se no Brasil sob a guarda de sua família materna, após a morte de sua mãe. Embora o desfecho da disputa tenha sido favorável para David Goldman, o tempo decorrido entre a apresentação do pedido e a decisão final do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto fez com que o caso assumisse contornos de incidente diplomático entre os dois países. Em 2014, em um último desdobramento do caso, o Congresso norte-americano editou o Sean and DavidGoldman International Child Abduction Prevention Act, diploma que prevê a possibilidade de aplicação de sanções pelo governo estadunidense a Estados que descumpram obrigações assumidas no plano internacional para o combate ao sequestro internacional de crianças. Não há, contudo, notícia de efetiva aplicação das sanções previstas na lei.

Nas últimas décadas, um interessante desdobramento fático tem apresentado desafios relevantes à interpretação e aplicação da Convenção da Haia de 1980.2 No momento de sua conclusão, os principais abdutores eram os pais das crianças. Contudo, pouco tempo depois da entrada em vigor da convenção, a situação havia se invertido, e eram as mães as principais abdutoras. Essa mudança de perfil trouxe novos desafios, notadamente a necessidade de acomodar adequadamente as obrigações assumidas no âmbito da Convenção da Haia de 1980 com outros compromissos internacionais igualmente assumidos pelo país, notadamente no campo da proteção ao direito das mulheres.

Como à época de conclusão da convenção eram os homens os principais sequestradores dos filhos do casal, inexiste no texto convencional qualquer preocupação explícita com a preservação da integridade física ou psíquica das mulheres submetidas a episódios de abuso ou violência doméstica.

Diversamente do que se passa com outros instrumentos internacionais de direito internacional privado, a Convenção da Haia de 1980 não prevê a ordem pública como uma exceção geral à ordem de retorno, estabelecendo hipóteses mais pontuais em seu art. 13. O objetivo geral do dispositivo é permitir a denegação do pedido de retorno, oferecendo balizas que ajudam a demarcar as hipóteses em que o interesse na restituição da criança para o local de sua residência habitual não deve prevalecer.

No âmbito convencional, são fundamentos para o indeferimento de pedidos de retorno:3

(i) risco grave de ordem física; (ii) risco grave de ordem psicológica; e (iii) situação intolerável.

A presença de qualquer um deles basta para que se configure o óbice ao retorno, embora não seja raro identificar situações que configurem mais de um dos óbices previstos, como é o caso da deflagração de conflitos armados, instabilidade política generalizada ou crises sanitárias.4

A indisponibilidade de tratamento médico considerado indispensável para a criança também já foi caracterizada como risco grave de ordem física.5

Em 2023, a Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu sua primeira decisão envolvendo sequestro internacional de crianças. No caso Córdoba c. Paraguai, a CIDH destacou a importância do estabelecimento de procedimentos expeditos para a apreciação de pedidos de restituição de crianças ilegalmente removidas ou retidas. No caso, M subtraiu ilicitamente seu filho, D, da cidade de Buenos Aires, na Argentina, para a cidade de Atyrá, no Paraguai, em 21 de janeiro de 2006. Arnaldo Javier Córdoba, o genitor abandonado, iniciou no dia 25 de janeiro de 2006 procedimento de retorno. Além disso, a autoridade central argentina formulou pedido de cooperação direcionado à autoridade central paraguaia, que apenas apresentou o pedido de retorno perante a autoridade judicial competente em 10 de abril de 2006, dois meses depois de haver recebido o pedido.

O genitor obteve uma decisão favorável em oito meses, razão pela qual a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou não haver violação ao direito à duração razoável do processo. A efetiva execução da decisão, contudo, não ocorreu de forma igualmente expedita. Embora tenha obtido decisão favorável em setembro de 2006, as autoridades paraguaias apenas conseguiram efetivar a decisão em maio de 2015, data em que a Interpol localizou o paradeiro da criança. Ao longo de todo o período, a criança esteve matriculada em escola e foi atendida pelo sistema de saúde da cidade de Atyrá. O processo de reaproximação entre a criança e seu genitor, por sua vez, durou quatro anos. A demora em executar a ordem de retorno fez com que a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenasse o Paraguai por violação aos arts. 5,6 11.2,7 178 e 25.2.c9 do Pacto de San José da Costa Rica.

As decisões proferidas por tribunais estrangeiros que regulam os direitos de guarda e visitação são passíveis de homologação no Brasil. Devem, contudo, observar os requisitos estudados no Capítulo XXI. Assim, por exemplo, o STJ considerou ofender a ordem pública brasileira, o que impede a homologação, decisão estrangeira que conferia à genitora o direito potestativo de autorizar ou não as visitas do pai, a seu exclusivo critério.10

Autores: Jacob Dolinger, Carmem Tiburcio e Felipe Gomes de Almeida Albuquerque

CLIQUE E CONHEÇA O LIVRO DO AUTOR

NOTAS

1 Sobre o tema, v. também Nádia de Araújo, Direito Internacional Privado: teoria e prática brasileira, 2008, p. 517 e ss.

2 V. Jacob Dolinger, Direito Civil Internacional. A Família no Direito Internacional Privado, A Criança no Direito Internacional, 2003, p. 235 e ss.

3 Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, art. 13: “Sem prejuízo das disposições contidas no Artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o retorno da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se oponha a seu retorno provar: a) que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de guarda na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou b) que existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável. A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o retorno da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já idade e grau de maturidade tais que seja apropriado levar em consideração as suas opiniões sobre o assunto. Ao apreciar as circunstâncias referidas neste Artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão tomar em consideração as informações relativas à situação social da criança fornecidas pela Autoridade Central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado de residência habitual da criança”.

4 NCADAT, caso HC/E/USf 82, Friedrich v. Friedich, 78 F.3d, 1996: “First, there is a grave risk of harm when return of the child puts the child in imminent danger prior to the resolution of the custody dispute – e.g., returning the child to a zone of war, famine, or disease”.

5 25 Conferência da Haia de Direito Internacional Privado, 1980 Child Abduction Convention: guide to good practice, parte VI, 2020, p. 42.

6 26 Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 5: “Direito à Integridade Pessoal 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral”.

7 27 Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 11.2: “Proteção da Honra e da Dignidade (…) 2.Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família,em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação”.

8 28 Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 17: “Proteção da Família 1. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado”.

9 29 Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 25: “Proteção Judicial. (…) 2. Os Estados-partes comprometem-se: (…) c) a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso”.

10 STJ, SEC nº 1.041, Rel. Min. Og Fernandes, DJ 16.12.2014: “no que diz respeito à guarda e direito de visitas, verifica-se que a dita cláusula ofende ordem pública e bons costumes, por conferir à genitora verdadeiro direito potestativo. Transcrevo o teor do dispositivo: ‘1. Será concedida à esposa guarda exclusiva legal e física do filho menor das partes, Nickolas Camargo, nascido em 15 de junho de 2007. Qualquer visita do Esposo ao filho ficará ao critério exclusivo da Esposa’ (e-STJ, fl. 18). Salta aos olhos que a cláusula não condiz com o sistema constitucional e legal, o qual entende que tais direitos devem ser vistos sob o prisma do melhor interesse do menor. Deve-se, pois, garantir à criança ou adolescente a ampla convivência familiar, salvo exceções de comprovados malefícios no contato com genitor(a)”.

Assine nossa Newsletter

Li e aceito a Política de privacidade

GENJURÍDICO

De maneira independente, os autores e colaboradores do GEN Jurídico, renomados juristas e doutrinadores nacionais, se posicionam diante de questões relevantes do cotidiano e universo jurídico.

Áreas de Interesse

ÁREAS DE INTERESSE

Administrativo

Agronegócio

Ambiental

Biodireito

Civil

Constitucional

Consumidor

Direito Comparado

Direito Digital

Direitos Humanos e Fundamentais

ECA

Eleitoral

Empreendedorismo Jurídico

Empresarial

Ética

Filosofia do Direito

Financeiro e Econômico

História do Direito

Imobiliário

Internacional

Mediação e Arbitragem

Notarial e Registral

Penal

Português Jurídico

Previdenciário

Processo Civil

Segurança e Saúde no Trabalho

Trabalho

Tributário

SAIBA MAIS

    SAIBA MAIS
  • Autores
  • Contato
  • Quem Somos
  • Regulamento Geral
    • SIGA