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JURISPRUDÊNCIA
A responsabilidade civil pela perda de uma chance: a técnica na jurisprudência francesa
Daniel Amaral Carnaúba
14/10/2021
RESUMO: A responsabilidade civil pela perda de uma chance é comumente apresentada como uma espécie de prejuízo, ou como uma teoria sobre a causalidade parcial. O presente estudo pretende desmistificar esse paradoxo, partindo de uma correção metodológica: como qualquer criação jurisprudencial, a responsabilidade civil pela perda de uma chance é uma técnica desenvolvida para resolver um problema concreto; a saber, o problema da reparação de interesses sobre eventos aleatórios. A incerteza, inerente a esse tipo de litígio, é em princípio incompatível com as regras da responsabilidade. Para superar a dificuldade, os tribunais franceses desenvolveram um método de deslocamento do objeto da reparação: repara-se a chance, e não o resultado aleatório. A incerteza é então assimilada pelo Direito, projetando-se no momento da quantificação da indenização.
Palavras-Chave: Responsabilidade civil – Perda de uma chance – Incerteza – Jurisprudência francesa
ABSTRACT: The loss of chance doctrine is commonly presented as being an independent heading of damages, or as legal theory concerning partial causation. This article aims to unravel this paradox, through a methodological shift: as any other judge-made-law concept, the loss of a chance is a technique conceived to solve a particular case; namely, cases in which the plaintiff claims compensation for his expectations on a random event. At a first sight, uncertainty, an unavoidable element of this kind of lawsuit, is irreconcilable with Tort Law principles. To overcome this dilemma, French courts have developed a method of displacement of compensation: they repair the chance, not the random result. The uncertainty is therefore incorporated to Law, and determines the amount of damages awarded.
Keywords: Tort law – Loss of a chance – Uncertainty – French case law
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O cerne do problema: a reparação dos interesses sobre eventos aleatórios. 3. A evolução da técnica na jurisprudência francesa. 3.1. Primeira técnica: a negativa do direito à reparação. 3.2. Segunda técnica: o deslocamento do objeto da prova. 3.3. Terceira técnica: o deslocamento do objeto da reparação. 3.3.1. A reparação das chances perdidas: uma questão de certeza. 3.3.2. A avaliação das chances perdidas: uma questão de probabilidade. 4. Os limites da técnica: a chance real e séria. 5. Conclusão. 6. Bibliografia.
1. Introdução – A responsabilidade civil pela perda de uma chance[1]
Poucos assuntos têm aguçado tanto a curiosidade de nossos juristas quanto o tema da responsabilidade civil pela perda de uma chance. De confessa origem francesa, o tema ganhou destaque em nosso ordenamento em meados da década passada[2]. Desde então, contam-se pelo menos quatro monografias publicadas[3], alguns artigos[4] e, sobretudo, um número crescente de julgados que, se já passam dos quinze no Superior Tribunal de Justiça, alcançam as centenas em alguns Tribunais Estaduais[5].
Poucos assuntos, contudo, levantam tantas suspeitas e tantas incertezas quanto o tema ora em comento. A começar pela própria natureza do conceito de responsabilidade civil pela perda de uma chance. Ainda que a discussão não tenha provocado grandes debates em nossa literatura, um breve estudo das fontes francesas revela o paradoxo ao redor dessa noção: trata-se de um conceito relativo à causalidade jurídica, notadamente, de uma forma de assimilação da causalidade parcial[6]? É nesse sentido que por vezes têm respondido alguns autores daquele país[7]. Trata-se de um tipo específico de prejuízo? Tal é o que afirma a maioria da doutrina francesa, há muito tempo[8].
O presente estudo pretende desmistificar esse paradoxo, partindo de uma correção metodológica de grande importância: em nosso ver, a questão é no mais das vezes abordada pela ordem inversa. Antes de constituir um tipo de prejuízo ou uma nova teoria causal, a responsabilidade pela perda de uma chance é método decisório, criada pela jurisprudência francesa para contornar um problema concreto, a saber, o problema da reparação dos interesses sobre eventos aleatórios.
Como toda construção jurisprudencial, a perda de uma chance é um instrumento jurídico concebido teleologicamente. Uma técnica, portanto.
Ora, na qualidade de técnica, a perda de uma chance não pode ser reduzida aos seus componentes. Com efeito, uma técnica jamais poderia ser compreendida senão pelos fins aos quais ela se destina e pelos métodos que emprega para atingi-los. Para entender a real dimensão da técnica de reparação de chances, o primeiro passo é se debruçar sobre a dificuldade a ser superada; sobre os litígios que efetivamente são enfrentados pelos tribunais, seus contornos, suas implicações (2). Só então poderemos compreender a sucessão de julgados que, na França, redundaram na criação da hoje denominada ‘teoria da perda de uma chance’ (3) e os limites impostos a essa técnica pela própria jurisprudência francesa (4).
2. O cerne do problema: a reparação dos interesses sobre eventos aleatórios
Um advogado deixa transcorrer o prazo para a interposição de um recurso. Em razão da desídia, a decisão de primeiro grau, contrária aos interesses de seu cliente, torna-se juridicamente inatacável. Devidamente inscrito no concurso, o candidato ao cargo público é excluído do certame, por falha da instituição organizadora. Ou sofre um acidente de trânsito às vésperas do exame, impedindo-o de realizar a prova. O erro de diagnóstico priva o doente da terapia adequada ao mal que o acometia. E se àquele tempo havia expectativas de tratamento, a doença evolui de tal forma que o quadro clínico do paciente é agora terminal. Inconformada, a vítima, em cada um desses incidentes, ajuíza uma ação de reparação em face do responsável.
Eis aí alguns litígios normalmente resolvidos por meio da reparação de chances.
O ponto em comum a esses casos é que, em todos eles, o incidente atingiu o interesse do requerente sobre um evento aleatório[9]. A vítima tinha uma expectativa, incerta, de obter uma determinada vantagem ou de evitar um mal maior. E essa expectativa foi frustrada ou dificultada em razão fato imputável ao réu[10].
O problema é que a procedência ou improcedência da demanda reparatória agora ajuizada depende, ao menos em princípio, desse resultado incerto. Em uma frase diversas vezes repetida pela jurisprudência francesa[11], René Savatier afirma que “a função da responsabilidade é a de restabelecer, tanto quanto possível, o equilíbrio destruído pelo dano, recolocando a vítima, à custa do responsável, na situação em que ela estaria sem o ato imputado a este”[12].
Ora, nas hipóteses mencionadas, é impossível determinar qual é ‘a situação em que vítima estaria sem o ato imputado ao réu’. Como o interesse em questão é aleatório, o litígio comporta uma dúvida irredutível sobre a sorte da vítima. Não fosse pelo incidente, teria ela alcançado o resultado desejado? O paciente estaria curado? O jurisdicionado ou o candidato saíram vitoriosos? Não se sabe e nunca se saberá[13].
Isso coloca os julgadores em uma situação bastante embaraçosa. Eles não podem declarar o réu responsável pela reprovação no concurso, pela perda do processo, ou pela ausência de cura, pois, para tanto, seria necessário pressupor que a vítima obteria aquele resultado incerto. Pela mesma razão, não podem rejeitar pura e simplesmente a demanda, pois tal decisão significaria que chegaram à conclusão inversa[14].
A verdade é que o problema da lesão a interesses aleatórios denuncia incompatibilidade entre o Direito e a incerteza; entre a dogmática jurídica, a qual pressupõe o controle da realidade, e a dúvida irredutível, à qual esta técnica deve responder. Forjada para regular os setores em que a realidade é amplamente dominada pela ação humana, a regra jurídica se mostra incapaz de regular o que está além deste controle, como é o caso dos interesses aleatórios[15].
Para resolver esse empasse, a jurisprudência francesa passou a adotar uma solução tanto mais engenhosa quanto evidente: nesse tipo de situação, não é o resultado aleatório que deve ser reparado pelo responsável, mas sim a chance de obtê-lo. Existe uma certeza em todos esses conflitos; a certeza de que a vítima tinha uma chance de alcançar o resultado que desejava, e que essa oportunidade desapareceu, em razão do fato imputável ao réu. O montante da reparação não corresponderá ao valor da vantagem desejada, mas a uma porcentagem desta, de acordo com as probabilidades efetivamente perdidas pela vítima.
Nota-se que o método em questão passa necessariamente por duas etapas: em um primeiro momento, há a renúncia à reparação de um interesse outrora considerado (a perda do resultado esperado) para que, ato contínuo, a vítima receba a indenização em razão de outro interesse (a perda da chance de obter este resultado). Trata-se, portanto, de um método que implica o deslocamento do objeto da reparação[16].
E os juízes adotaram esse método justamente porque ele permite a tomada de decisão, a despeito da incerteza que acomete a situação em conflito. Dado que a chance encerra em si o elemento aleatório – por definição, a realização de uma chance nunca é certa – a reparação das chances os poupou da tarefa sobre-humana de destrinchar a dúvida sobre o resultado do evento aleatório.
Poderíamos assim retomar nossa afirmação inicial. Ao invés constituir uma espécie de prejuízo ou uma nova teoria sobre o nexo casal, a perda de uma chance seria mais bem definida como uma técnica decisória, criada pela jurisprudência francesa para superar as insuficiências da responsabilidade civil diante das lesões a interesses aleatórios. Essa técnica consiste no deslocamento da reparação: a responsabilidade deixa de se preocupar com a intangível vantagem aleatória desejada, e passa a considerar a chance como objeto a ser reparado.
Engenhosa, a técnica da reparação de chances é fruto de uma evolução lenta e contínua da jurisprudência francesa. É o que estudaremos na próxima seção.
3. A evolução da técnica na jurisprudência francesa
É comum, mesmo em obras francesas[17], remeter a origem da teoria da perda de uma chance a um julgado proferido em 17 julho de 1889 pela Chambre de Requêtes da Corte de Cassação[18]. Uma análise mais minuciosa da decisão e daquelas que a sucederam revela o quanto essa concepção é equivocada.
Na verdade, até meados da década de 1930 não há qualquer referência na jurisprudência francesa, direta ou indireta, à indenização pela perda de uma chance. Antes de assimilar a técnica de deslocamento do objeto da reparação, os tribunais daquele país haviam considerado duas outras formas de lidar com as lesões aos interesses aleatórios: a primeira, simplesmente negando à vítima o direito à indenização (3.1). Já a segunda consiste em neutralizar a incerteza com a ajuda das presunções de fato (3.2). A reparação de chances somente surgiria em uma terceira etapa nesta linha evolutiva (3.3).
3.1. Primeira técnica: a negativa do direito à reparação
A primeira posição adotada pela jurisprudência francesa foi a de recusar qualquer indenização à vítima, nos casos de lesão a interesses sobre eventos aleatórios. A solução foi especialmente empregada na passagem do século XIX ao XX, nas demandas reparatórias tratando de cavalos de corrida impedidos de se apresentar em uma competição, quer em razão do atraso imputável ao transportador do animal, quer em razão de qualquer outro incidente vitimando o cavalo antes da realização da corrida.
Os tribunais consideravam que o óbice à participação do cavalo no evento não gerava, em si, direito de indenização em favor de seu dono. Na visão dos magistrados, a álea, própria ao esporte, era um obstáculo insuperável à reparação. E essa posição se fundava em dois argumentos.
O primeiro deles é que não haveria nexo causal entre a perda do prêmio e a conduta imputável ao transportador. Foi o que afirmou o Tribunal de Comércio de Seine, em um julgamento proferido em 3 de julho de 1913:
“Considerando que, se a exclusão das éguas das competições em que estavam inscritas foi consequência do acidente que as matou, que, se entre este acidente e a não-participação dos referidos cavalos nas corridas de Rilleux-Sathonay e de Aix-les-Bains, há um nexo direto e necessário de causa e efeito, esta relação direta não está mais configurada se consideradas a alegada conduta culposa e a vitória nas referidas corridas, que nada é, com efeito, mais aleatório que a vitória em uma corrida, e que não é de forma alguma certo que caso elas pudessem ter participado das competições nas quais estavam inscritas, as éguas de Croizet teriam ganhado o prêmio”[19].
Outro fundamento por vezes levantado pelos magistrados era a incerteza acerca do prejuízo. É o que decidiu o Tribunal Civil de Limoges, em 11 de janeiro de 1896. No caso, o dono de um vitorioso cavalo de corrida pleiteava a reparação pela ‘perda de uma chance de obter o prêmio’, tendo em vista que o transportador se atrasou em entregar o animal para as provas realizadas em La Rochelle. O Tribunal rejeitou esse pedido:
“No que tange à obtenção do prêmio pelo cavalo Pezzaro, pouco importam os prêmios alcançados por esse cavalo no ano de 1895, este tribunal não tem certeza de que ele obteria equivalente sucesso na competição de La Rochelle; que, por esse viés, não há prejuízo certo”[20].
No mesmo sentido decidiu a Corte de Apelação de Rouen, em 8 de agosto de 1903:
“Convém afastar o primeiro fato, relativo ao prêmio da corrida: 1.000 francos o qual [o proprietário do animal] dava como um ganho certo, visto que este fato não é pertinente em razão da impossibilidade de afirmá-lo”[21].
Foi também em razão da incerteza acerca do casamento que a Corte de Apelação de Paris denegou o pedido de uma noiva, que havia intentado uma ação de reparação contra o responsável pela morte de seu pretendente[22]. Igual argumento foi empregado pelo Tribunal Civil de Meaux para declarar improcedente a demanda formulada pelo pai de uma criança falecida em um acidente, que buscava a indenização referente à assistência alimentar que seu filho lhe providenciaria no futuro[23]. Ainda no mesmo sentido, a vítima, impossibilitada de explorar sua invenção patenteada, viu seu pedido ser declarado improcedente pelo Tribunal Civil de Oran, que considerou “incerto e eventual” o prejuízo alegado[24]. A Corte de Cassação, por sua vez, entendeu pela improcedência da demanda de um diretor de teatro que requeria, em razão do acidente sofrido por um importante membro de sua troupe, a indenização referente às perdas de receitas de seu espetáculo[25].
O que podemos pensar desse posicionamento? Sob o ponto de vista das condições da responsabilidade civil, o entendimento esboçado é irreprochável. Cumpre notar que cabe ao autor da demanda reparatória provar que sofreu um prejuízo certo, em relação causal com o ato imputado ao réu. E que nenhuma dessas duas condições encontra-se presente nos casos de lesão a interesses sobre eventos aleatórios[26].
Devemos então negar à vítima um direito à reparação, em todos os casos em que seu interesse lesado é apenas aleatório? Ce serait mal raisonner, como afirmam os Mazeaud[27].
Em primeiro lugar, recusar a reparação equivale a negar que o ato do réu tenha atingindo um interesse legítimo da vítima. Eis então o primeiro inconveniente desta solução: ela ignora o interesse aleatório, assimilando-o ao interesse inexistente. Por certo, o interesse em questão versa sobre uma possibilidade. Contudo, trata-se de uma aspiração inegável e legítima da vítima, aspiração esta que foi lesada pelo ato imputável ao réu. O Direito pode desprezá-lo?[28]
No mais, não nos parece que as regras comuns relativas ao ônus da prova possam ser aplicadas, sem desnaturação, aos casos de lesão a um interesse aleatório. Poderíamos seriamente condicionar o acolhimento do pedido formulado pelo dono do cavalo à prova, a ser produzida por ele, de que este animal venceria a competição? Ora, é precisamente o ato imputado ao réu que o impediu de conhecer este resultado. Seria ilógico admitir que a dúvida possa beneficiar aquele que indevidamente a criou, fazendo com que um indivíduo se valha das repercussões de sua conduta ilícita como forma evitar sua responsabilidade por ela[29].
A aplicação inflexível das regras de ônus da prova deixaria todos os interesses sobre eventos aleatórios fora do âmbito de proteção da responsabilidade civil. E é esse inconveniente que as duas outras técnicas decisórias procuram contornar.
3.2. Segunda técnica: o deslocamento do objeto da prova
“As presunções”, define o art. 1.349 do Código Civil francês, “são as consequências que a lei ou o magistrado tira de um fato conhecido a um fato desconhecido”.
Desde logo, é necessário distinguir a presunção de fato – conhecida também como presunção simples, do homem ou do juiz – de outra, a presunção legal ou de direito, também prevista no mesmo Código. Ambas representam técnicas empregadas para contornar as incertezas, por meio das quais a existência de um fato desconhecido é afirmada a partir de outro fato ou conjunto de fatos cuja existência não é duvidosa. Porém, conquanto as presunções de direito estejam estabelecidas expressamente na lei (por vezes, por questões de política legislativa), obrigando o juiz a empregá-las[30], as presunções de fato decorrem, ao contrário, da própria prudência do magistrado e de seu poder de apreciação dos fatos que lhe são trazidos à análise. É evidentemente esta última espécie que interessa ao presente estudo.
A técnica das presunções de fato “consiste em um raciocínio probatório, por meio da constatação de um nexo lógico entre o fato inacessível à prova (objeto inicial de prova ‘desconhecido’) e o fato acessível (objeto deslocado de prova, ‘conhecido’)”[31]. O juiz pode, assim, afirmar a existência de um fato controverso partindo de elementos indiretos, que indicam a probabilidade deste fato[32]. Por exemplo, o magistrado pode constatar que um veículo estava em alta velocidade em razão das extensas marcas de frenagem por ele deixadas no asfalto. A partir deste elemento conhecido – as marcas no asfalto – ele concluirá pelo elemento desconhecido – a velocidade do carro – graças ao nexo de probabilidade existente entre este e aquele. É por isto que a presunção de fato é por vezes definida como uma técnica de deslocamento do objeto da prova[33].
A presunção de fato é um instrumento concedido ao magistrado para que ele possa superar os limites de sua cognição. Trata-se de uma exigência dogmática: o juiz deve inexoravelmente decidir o litígio, e suas dúvidas não lhe servem de pretexto para não cumprir esta missão. Ao se apoiar nas probabilidades das provas indiretas, o magistrado poderá presumir os fatos desconhecidos, afastando legalmente suas incertezas[34].
A aplicação da técnica de presunção aos casos de lesão a interesses aleatórios é intuitiva. Por meios indiretos, o magistrado pode determinar se, na ausência do fato imputável ao réu, a vítima teria ou não alcançado o resultado desejado. Ou o juiz presume que o demandante obteria a vantagem, constatando, por consequência, que a não realização deste resultado é um prejuízo certo sofrido pela vítima e causado pelo réu; ou ele presume o contrário, o que implica que o ato em questão não deu ensejo a qualquer prejuízo. A incerteza é assim desfeita – ao menos no plano jurídico – com o auxílio de uma técnica legalmente consagrada.
A análise dos julgados proferidos durante o século XIX revela que este era o principal método empregado pelos tribunais franceses para resolver os casos de responsabilidade civil de advogados ou de huissiers[35]; notadamente quando o profissional, em razão da perda de um prazo processual ou de outro erro praticado durante o curso do processo, impediu que o recurso interposto por seu cliente fosse conhecido pelo tribunal ad quem.
Trata-se de um caso clássico de lesão a interesses sobre eventos aleatórios, visto que não se sabe ao certo qual seria o resultado do processo obstado. E para resolvê-lo, a jurisprudência francesa recorria às presunções[36]. Ao julgar a ação movida pelo cliente contra o profissional de justiça, os juízes examinavam o mérito do processo injustamente interrompido por este. Se eles estimassem que o cliente teria obtido ganho de causa em sede recursal, então o patrono estaria obrigado a reparar a perda da ação – o valor total da condenação incorrida pelo o cliente, ou o valor da prestação que este cliente procurava obter pela via jurisdicional. Por outro lado, nenhuma indenização seria devida pelo advogado ou pelo huissier[37] se, de acordo com a opinião dos magistrados, os pedidos pretendidos pelo cliente no primeiro processo não teriam sido acolhidos pelo órgão ad quem.
Este método de presunções, amplamente adotado pelas cortes de apelação[38], foi consagrado em um acórdão proferido em 17 de julho de 1889 pela Chambre de Requêtes da Corte de Cassação[39]. No caso, a Caixa Comercial de Limoges pleiteava que o huissier Rives, seu antigo mandatário, fosse condenado a repará-la, em razão da falha cometida por ele quando da realização de uma intimação judicial. O erro do huissier havia tornado nula uma apelação interposta pela empresa – apelação esta que buscava reverter uma condenação proferida em primeiro grau contra a Caixa, em uma ação envolvendo esta empresa e um ex-empregado, o Sr. Sigé. A Corte de Cassação rejeitou a demanda da Caixa contra o huissier Rives, considerando que a decisão favorável a Sigé seria, de todo modo, confirmada em segunda instância:
“Considerando que a Caixa Comercial formulou, perante a Corte de Apelação, um pedido contra o huissier Rives, requerendo a sua condenação caso a apelação viesse a ser declarada nula; que esta sociedade não pode reverter a decisão proferida pela Corte de Apelação em sua ação, e que a decisão a sobre a responsabilidade do huissier depende necessariamente do resultado que seria obtido na apelação, que a Corte de Apelação não poderia fazer outra coisa senão examinar qual teria sido o mérito desta apelação; que este exame foi realizado conforme o art. 7 da lei de 20 de abril 1810 visto que, em seu acórdão, a Corte de Apelação, depois de ter reconhecido que a sentença proferida pelo Tribunal Civil de Limoges[primeira instância] estava legalmente fundamentada, deu à sua decisão uma justificação minuciosa; que concluiu-se, a partir da motivos apresentados e devidamente justificados, que o prejuízo de 9.000 francos sofrido por Sigé, que movia ação de reparação contra a Caixa, foi provocado por culpa grave inteiramente imputável a esta sociedade; disto resulta que ao declarar que não haveria nenhuma razão para reformar a sentença de primeira instância, o acórdão ora atacado não violou quaisquer regras legais, nem mesmos os arts. 1382 e 1383 do Código Civil. […] Rejeita-se o recurso”[40].
Curiosamente, muitos autores consideram que este é o primeiro acórdão em que a Corte de Cassação teria adotado a técnica da reparação de chances[41]. Em nosso ver, tal conclusão é absurda: no caso em questão, a reparação de chances jamais foi aventada por qualquer dos envolvidos; nem pelas partes, nem pelos juízes. De um lado, a Caixa exigia que o huissier a indenizasse “de todo o valor da condenação”. Demandava, portanto, a reparação da própria vantagem aleatória não-obtida, e não a reparação das chances de obtê-la. De outro lado, tanto a Corte de Cassação quanto a Corte de Apelação de Limoges buscaram determinar se Rives eram ou não responsável pela condenação pronunciada contra a Caixa, estabelecendo qual teria sido o resultado da apelação, caso o huissier não tivesse incorrido em erro. Ou seja, os juízes empregaram o método das presunções, e não o da reparação de chances. Se Rives fosse declarado responsável, ele teria então de reembolsar os 9.000 francos pagos pela Caixa a Sigé. Vê-se, pois, que não era a reparação de chances que estava em jogo, mas a reparação da própria vantagem aleatória desejada.
Por fim, cumpre notar que nenhuma indenização foi concedida à Caixa, nem mesmo em razão da chance perdida. É que no acórdão relatado, a Corte de Cassação apenas confirmou a decisão proferida pela Corte de Limoges[42], que, por sua vez, presumiu que a apelação da Caixa teria sido rejeitada, de todo modo. Em suma, a demanda da Caixa contra o profissional faltoso foi inteiramente denegada pelo judiciário francês: considerou-se que a apelação estava fadada ao fracasso e que por isso o erro do huissier não teria causado prejuízos de qualquer espécie ao seu cliente. Não há, portanto, nenhuma razão para declarar este acórdão como o leading case francês acerca da reparação de chances[43].
Menos de um ano mais tarde, a Câmara Civil consolidaria este posicionamento, declarando que todo caso de lesão a um interesse jurisdicional deveria ser, obrigatoriamente, resolvido pela via das presunções[44]. No caso em questão, o Dr. Gayda, advogado [avoué[45]], havia se esquecido de incluir dentre os pedidos formulados por sua cliente, a Sra. Coste, a cobrança de um crédito acessório equivalente a 558,43 francos. Os juízes de segundo grau declararam que o profissional estava obrigado a indenizar este valor a Sra. Coste “sem que seja necessário examinar se o pedido formulado pela Sra. Coste seria ou não acolhido”, visto que “é inegável que, em razão da conduta culposa do Dr. Gayda, a Sra. Coste foi privada do direito de exigir seu crédito”. A Corte de Cassação, porém, censurou esta decisão, considerando que “seria necessário, para justificar a condenação [do Dr. Gayda] às perdas e danos, que o tribunal verificasse se o pedido que fora omitido por culpa do advogado [avoué] poderia resultar em uma demanda jurisdicional útil, e que o tribunal afirmasse a utilidade desta demanda. […] Por estes motivos, cassa-se o acórdão”.
Em outras palavras, a Corte de Cassação impunha a presunção como a única solução aplicável aos casos de lesão a interesses aleatórios ligados a demandas judiciais[46]. Para resolver o dilema, os juízes de primeiro e segundo grau estavam obrigados a determinar qual seria o resultado do processo atingido pelo erro do profissional de justiça.
A despeito dessa posição firme outrora adotada pela Alta corte francesa, a técnica das presunções não se presta ao papel de panaceia aos casos de lesão a interesses aleatórios.
Cumpre notar que a adoção de presunções só é possível quando há elementos suficientemente precisos e concordantes, que demonstrem a verossimilhança do fato presumido. Nos casos de lesão a interesses aleatórios, isso ocorre quando as probabilidades de realização do evento favorável forem excepcionalmente grandes, a tal ponto que poderíamos, sem recorrer a adivinhações, considerar a vantagem como certa. Ou, na hipótese inversa, quando as chances da vítima eram tão pequenas, podendo assim ser ignoradas[47]. Nas duas hipóteses, os elementos fornecidos indicam que o acaso se resolveria em um sentido específico, o qual poderá ser seguido pelo juiz quando da resolução do conflito. Mas tal convergência nem sempre pode ser extraída do conjunto probatório reunido no litígio envolvendo a lesão a interesses aleatórios, impedindo que o juiz se valha das presunções para dissipar a incerteza.
Na verdade, aquele entendimento inflexível da Corte de Cassação acerca da incidência das presunções aos casos de responsabilidade de advogados e huissiers – entendimento, frise-se, já superado há muito tempo[48] – se justifica em razão uma peculiaridade deste tipo interesse aleatório. É a álea em questão é uma álea jurisdicional; uma dúvida sobre seria a eventual decisão dos magistrados no processado embaraçado. Ora, ninguém está em melhor posição para dissipar essa incerteza do que o próprio Poder judiciário. Tanto assim que, enquanto mantido aquele entendimento, a jurisprudência francesa buscava a todo custo fazer com que a ação reparatória formulada contra o advogado fosse julgada pelo mesmo órgão que deveria conhecer o recurso obstado pelo profissional[49]. Em resumo, sob o manto da responsabilização do advogado, os magistrados apreciavam na verdade o próprio recurso anteriormente não-conhecido[50].
Ora, esse método nem sempre é adequado para resolver os casos de lesão a interesses aleatórios. O problema da técnica da presunção é que ela incentiva os juízes a desfazer o acaso, o que somente pode ser empreendido quando estes lançam mão de sua fantasia e autoritarismo. O magistrado está realmente em posição de afirmar qual seria a nota do candidato no concurso? Pode ele descartar a vitória do cavalo, sem que a competição tenha ocorrido? Poderia o juiz afirmar que o paciente estaria curado, quando a própria ciência médica jamais ousaria fazê-lo? Pela via das presunções o juiz, ao invés de admitir sua incerteza, elimina-a do plano jurídico, ofertando sua resposta à questão quimérica: “qual seria o resultado da chance perdida?”. Trata-se de uma missão quase profética, que não seria enfrentada com naturalidade senão pelas mentes mais arrogantes.
Em suma, a presunção pode efetivamente resolver alguns casos de lesão a interesses aleatórios. Mas não todos. No mais das vezes, não há indícios suficientemente fortes e concordantes para que o juiz admita uma presunção, nem no sentido da suposta obtenção da vantagem, nem no sentido contrário. A incerteza não poderá ser neutralizada por este método.
3.3. Terceira técnica: o deslocamento do objeto da reparação
A reparação das chances perdidas é um terceiro método capaz de resolver o problema da lesão a interesses aleatórios. Trata-se, como já o afirmamos, de um a técnica de deslocamento da reparação: ao invés de visar à vantagem aleatória desejada pela vítima – um prejuízo incerto e que não tem ligação causal com o ato do réu – os juízes concedem a reparação de outro prejuízo, a saber, a chance que a vítima tinha de obter esta vantagem. Note-se que não se trata de um mero reconhecimento de uma nova espécie de prejuízo. Há na realidade uma verdadeira substituição de um prejuízo por outro.
Afirma-se correntemente que a técnica da reparação de chances é uma criação da jurisprudência francesa[51]. A afirmação é correta, mas carece de uma precisão: antes mesmo de ser consagrada pelos tribunais, a doutrina havia antecipado, ainda que timidamente, o conceito que seria mais tarde adotado pelos juízes.
Com efeito, foi um autor, Henri Lalou, quem primeiro fez referência à reparação de chances. Já esboçada por ele em 1914[52], a ideia foi expressa de maneira mais nítida no Recueil Dalloz de 1920, em uma nota publicada por Lalou sobre um julgado datado de 29 de janeiro daquele ano. Na decisão comentada, o pai de uma criança falecida em um acidente demandava a indenização pelo prejuízo referente à “prestação alimentar” que seu filho lhe forneceria no futuro. O Tribunal Civil de Meaux rejeitou o pedido, afirmando “tratar-se de um prejuízo puramente eventual”[53]. A decisão foi criticada pelo eminente jurista:
“Uma transportadora entrega o cavalo após o fim da corrida da qual ele deveria participar; um huissier intima o apelado depois do prazo legal; em uma hasta pública, um avoué se esquece de fazer um lance em favor de seu cliente: poderíamos então afirmar que a transportadora, o huissier ou o avoué não devem perdas e danos por que o prejuízo alegado é eventual ou hipotético, visto que o proprietário do cavalo, os clientes do huissier ou do advogado não podem comprovar que, se o cavalo tivesse corrido, ele teria ganhado a corrida, se a apelação tivesse sido conhecida, a reforma seria obtida e se o lance tivesse sido proposto, seu proponente adjudicaria o bem? Tal raciocínio está correto, mas ele não é peremptório. A verdade é que, em todas estas hipóteses, houve a privação de uma chance: a chance de ganhar a corrida, de reformar uma sentença e de se tornar adjudicatário; e esta privação é um dano atual. Igualmente, o responsável pelo acidente mortal priva atualmente os ascendentes da vítima direta da chance de obter, em um futuro mais ou menos próximo, a prestação alimentar da vítima”[54].
Alguns anos mais tarde, em 1928, a nota seria incorporada à primeira edição da obra La Responsabilité Civile, do mesmo autor, sob o parágrafo de n° 146[55]. Os tribunais não haviam até então acolhido a tese da reparação de chances. Mas técnica ganharia notoriedade através do tratado de Henri e Léon Mazeaud, de 1932. Ao dedicarem alguns parágrafos à perda de uma chance, os autores despertaram a atenção dos juristas franceses sobre este tema até então pouco explorado.
À jurisprudência coube a função de desenvolver o conceito e de ampliar seu campo de aplicação. A perda de uma chance não foi consagrada de forma categórica por nenhum julgado em especial e, neste sentido, não é possível apontar um leading case francês[56]. Houve, na verdade, a progressiva assimilação do conceito pelos tribunais, a partir da década de 1930.
A Corte de Cassação proferiu seu primeiro acórdão sobre a reparação de chances em 1932[57]. Na decisão, aliás, pouco conhecida ou citada, a Chambre de Requêtes confirmou o entendimento dos juízes de segunda instância, que haviam condenado um notário que, por sua culpa, privara seu cliente da “chance de adquirir a propriedade rural que eles desejavam”. A Alta corte ressaltou que havia, em tal caso, “um prejuízo” e “um nexo causal entre o ato culposo e o prejuízo”:
“Considerando, no que concerne o prejuízo e o nexo causal entre o ato culposo e o prejuízo, que os juízes de instância inferior declararam que, em razão das falhas no exercício de sua profissão e de sua conduta dolosa, o notário Grimaldi provocou um duplo prejuízo aos consortes Marnier, que perderam toda a chance de adquirir a propriedade rural que eles desejavam, e que, de outro lado, eles tiveram de arcar com as custas de diversos atos inúteis; Considerando que, a partir destas constatações e declarações, o acórdão ora recorrido pôde concluir que a responsabilidade de Grimaldi estava configurada e apreciou, ato contínuo, soberanamente o montante das perdas e danos que ele deveria pagar aos consortes Marnier, […] Rejeita-se o recurso”[58].
Dois anos mais tarde, a mesma Corte proferiria seu primeiro julgado sobre a reparação de chances no campo da responsabilidade dos profissionais de justiça. Na decisão atacada, a Corte de Apelação de Angers havia condenado um advogado [avoué] que deixara prescrever a ação de seu cliente[59]. A despeito da incerteza sobre o resultado do processo comprometido, os magistrados de Angers constataram que havia uma perda certa, apta a gerar o dever de indenizar: “há uma certeza, visto que, proposta no prazo previsto em lei, a ação poderia resultar em uma decisão favorável, conquanto, intentada depois do prazo, ela estaria fatalmente fadada ao fracasso”. E esse argumento seria aprovado pela Corte de Cassação[60].
O método então se difundiu entre tribunais franceses. Na medida em que permite que os juízes contornem as condições da responsabilidade, a reparação de chances lhes oferece um grande potencial, e é por esta razão que os magistrados não tiveram qualquer parcimônia em emprega-lo. Dali em diante, a técnica seria aplicada aos mais diversos campos[61], a tal ponto que um julgado de 1952 pôde afirmar ser “cediço na jurisprudência que a perda de uma chance constitui não um prejuízo eventual, mas um prejuízo certo, ensejando o direito à indenização”[62]. Em seu turno, a Corte de Cassação reforçou a importância desta técnica, tendo inclusive reformado, em 1956, um julgado no qual os magistrados haviam ignorado a possibilidade de reparar as chances perdidas pela vítima[63].
A peculiaridade da reparação de chances é que, de forma sutil, ela se desvencilha da incerteza que até então impedia a aplicação da regra reparatória. Não é, porém, muito difícil compreender o mecanismo por trás da técnica. Ao contrário dos métodos anteriores, a reparação de chances não ignora a incerteza, tampouco almeja eliminá-la. A álea é simplesmente reacomodada dentro da estrutura da responsabilidade: em razão do deslocamento da reparação, a incerteza deixa de ameaçar a existência do prejuízo e passa a interferir em sua quantificação. E é por esta razão que podemos afirmar que a reparação de chances perdidas envolve sempre uma certeza e uma probabilidade[64]. A primeira – a certeza – é constatada quando da identificação do prejuízo reparável (3.3.1); e a outra – a probabilidade – entra em cena no momento da mensuração do prejuízo (3.3.2).
3.3.1. A reparação das chances perdidas: uma questão de certeza
Em sua tese consagrada ao papel do acaso no Direito, Alain Bénabent dirige severas críticas à reparação de chances. Segundo ele, a técnica seria injustificada, pois “a chance não estava destinada a manter-se indefinidamente em seu estado de chance, tampouco a conservar o valor que as probabilidades podiam lhe dar: ela estava destinada a ser usufruída, e seu valor seria, ou aumentado pelo sucesso, ou anulado pela perda”[65].
A observação é contundente e seria inútil combatê-la. A reparação de chances não reposiciona a vítima no lugar em que deveria se encontrar. Há apenas duas situações possíveis: ou o interessado obteria a vantagem aleatória desejada, ou ele não a obteria. Ora, a vítima que recebe a indenização pelas chances perdidas não é recolocada em nenhuma destas duas situações.
Porém, esta é precisamente a engenhosidade da técnica. Como visto, a incerteza inerente aos casos de lesão a interesses aleatórios torna inaplicável a regra da reparação. Não é possível afirmar como se encontraria a vítima sem o evento danoso; e por esta razão a responsabilidade se vê impedida de cumprir de forma satisfatória sua função de reparação. Resignada diante desta impossibilidade, a técnica da reparação de chances resolve o impasse renunciando ao parâmetro desconhecido, e substituindo-o por outro, bem conhecido no caso em questão: o parâmetro do passado.
No lugar de reparar aquilo que teria sido (uma reparação impossível) a reparação de chances se volta ao passado, buscando a reposição do que foi. É o status quo ante que será reconstruído. A vítima será assim recolocada, não mais na situação que se encontraria sem o acidente, mas na situação onde se encontrava antes deste. Ora, é certo que neste momento pretérito a vítima possuía uma chance. É esta chance, portanto, que lhe será devolvida sob a forma de reparação.
Encontrada a certeza, a técnica da reparação recoloca a norma reparadora em seu campo natural de ação. De um lado, a incerteza do prejuízo desaparece: tendo o status quo ante como parâmetro de reparação, o juiz pode afirmar que a chance perdida representa um prejuízo certo sofrido pela vítima. De outro lado, ele pode afirmar também que o fato imputável ao demandante é uma causa à realização do prejuízo em questão. É que a perda de uma chance pressupõe um nexo causal, não mais entre o fato do réu e a perda da vantagem, mais sim entre este fato e a chance perdida[66]. Ora, sem o fato do réu, a vítima teria chances de obter o resultado desejado, estando, pois, configurada a relação causal entre estes dois elementos[67].
Estas observações reforçam o conceito sobre o qual se erige este trabalho: a perda de uma chance não é uma nova espécie de prejuízo, mas uma técnica de deslocamento da reparação. Essa técnica implica, em primeiro lugar, o deslocamento quanto ao interesse reparado, que deixa de ser a vantagem aleatória desejada para versar sobre a chance perdida. Mas, em segundo lugar, a técnica implica outro deslocamento; um deslocamento temporal ou cronológico. A reparação não buscará mais recolocar a vítima na situação na qual ela se encontraria sem o evento danoso – um futuro hipotético e incerto – e se preocupará em devolvê-la à situação na qual ela se encontrava antes deste evento – um passado certo.
3.3.2. A avaliação das chances perdidas: uma questão de probabilidade
Considerada como um prejuízo em si, a chance absorve a álea que outrora impedia a constatação de uma lesão certa. Contudo, esta álea não desaparecerá. O acaso passa a influir na quantificação da indenização: quanto maiores forem as probabilidades, tanto maior será o valor da chance em questão e, por consequência, da indenização devida à vítima. A incerteza deixa de afetar a existência do interesse, e passa a determinar o quantum da indenização[68].
Esta influência da álea na delimitação do montante indenizável se reflete na “fórmula” de avaliação das oportunidades perdidas, consagrada pela jurisprudência[69] e pela doutrina[70] da França, e que consiste em duas etapas. Num primeiro momento, determina-se qual seria o ganho auferido ou a perda evitada, se a vítima tivesse obtido o resultado aleatório esperado. Depois, este valor será multiplicado pela porcentagem de chances que vítima perdeu em função do ato do réu, e o resultado desta conta será o montante a ser indenizado a título de perda da oportunidade.
A fórmula em questão nada mais é do que a aplicação ao Direito de uma constatação econômica: a de que o valor de uma oportunidade é diretamente proporcional ao valor resultado almejado e à probabilidade deste resultado ser obtido. Sob o ponto de vista puramente econômico, são estas duas grandezas que delimitam o valor das oportunidades. O método de avaliação jurídica não poderia fugir desta verdade.
Partindo desta fórmula, pode-se observar que o montante da indenização concedida à vítima em razão da chance perdida será sempre menor do que o montante que seria concedido a ela, caso a reparação versasse sobre a vantagem aleatória desejada. Visto que a vítima tinha apenas chances de obter esta vantagem, a probabilidade da qual foi privada será, por definição, menor do que 100%. Logo, o produto da multiplicação representará inevitavelmente uma fração da vantagem desejada. Trata-se de uma exigência lógica: a chance de obter uma vantagem jamais poderia ter o mesmo valor que a própria vantagem. Trata-se igualmente de uma exigência jurídica: a Corte de Cassação afirmou em diversas ocasiões[71] que o valor das chances é obrigatoriamente menor do que o valor do resultado desejado[72].
4. Os limites da técnica: a chance real e séria
A chance é um objeto abstrato. Ela não tem uma dimensão material e, por esta razão, é muito difícil impor-lhe limites. Para o escritor, a publicação de sua primeira obra era a chance de sua vida. Eis aí oportunidade de tornar-se célebre e milionário. O empregado recém-contratado está eufórico. O destino finalmente sorria para ele: com sua dedicação e competência, ele poderia, talvez dali a uns vinte anos, alcançar o cargo de diretor da companhia. A mãe tem certeza que sua filha de dez anos será uma excelente advogada. Ou coreógrafa.
Em princípio, nada nos impede de qualificar estas aspirações como chances e de repará-las, caso venham a ser aniquiladas pela obra de um terceiro. Todas constituem expectativas aleatórias fundadas, com maior ou menor força, sobre evidências racionais.
A reparação de chances tem assim uma grande tendência à vulgarização – uma tendência, aliás, bastante preocupante. A técnica constitui uma porta aberta aos interesses pouco importantes, pois a vítima pode, sempre, encontrar supostas chances perdidas em razão de um evento danoso. Chances que por vezes não passam de meros sonhos do demandante, ou então de seu oportunismo travestido em prejuízos.
Para evitar esse tipo de abuso, os juízes se veem obrigados a considerar que a chance perdida deve ostentar uma importância particular, como requisito à sua reparação. É necessário impor barreiras conceituais à técnica[73], para que o Direito ignore certos interesses aleatórios que não são dignos de proteção.
Uma solução simples seria condicionar a reparação de chances a uma porcentagem mínima, abaixo da qual a chance não constituiria um interesse juridicamente protegido. Esta técnica foi empregada na Itália: os tribunais italianos por vezes afirmam[74] que não há direito à reparação quando a oportunidade perdida representa menos de 50% de chances de obtenção do resultado favorável[75].
Em nosso ver, esta imposição pode gerar discriminações injustificáveis[76]. Se o objetivo é separar as chances relevantes daquelas que o são, nenhuma cifra estabelecida a priori poderá servir de critério. Isto porque o problema das chances perdidas surge nas mais variadas situações, em algumas das quais uma chance de poucas probabilidades pode representar um interesse muito relevante para a vítima. E em outras, chances muito prováveis podem não ter valor algum. Qualquer vestibulando sabe, por exemplo, que 20% de chances de passar em uma faculdade de primeira linha valem muito mais do que 80% de chances de ser aprovado em uma instituição de pouco renome. Ora, seria ilógico afirmar que este interesse é suficientemente sério, mas não aquele.
A adoção de um patamar mínimo de probabilidades – pouco importa qual seja o valor eleito[77] – é uma solução simplista e inadequada, tendo em vista a diversidade dos interesses sobre probabilidades. Um número, escolhido arbitrariamente, jamais poderia servir de divisor de águas entre as chances relevantes e aquelas que não o são[78].
A jurisprudência francesa, por sua vez, terminou por forjar um critério tanto mais brando quanto adaptado às ponderações exigidas pela casuística. Para ser reparável, afirmam reiteradamente os juízes franceses[79], a chance perdida deve ser real e séria[80]. Mas o que significa exatamente uma chance “real e séria”?
A análise dos julgados proferidos pela Corte de Cassação revela que dois elementos são levados em consideração. De um lado, as probabilidades envolvidas no caso. De outro, a prova de que a chance em questão interessava concretamente ao seu beneficiário.
No que tange ao primeiro elemento, não se deve evidentemente retornar a uma definição fundada em cifras preestabelecidas. Pode-se simplesmente afirmar que, quanto menores foram as probabilidades representadas pelas chances perdidas, tanto mais razões terão os juízes para considerar que a chance em questão não é real ou séria[81].
A ideia foi expressa pela Corte de Cassação em um julgado proferido em 4 de abril de 2001, referente a uma ação de responsabilidade intentada contra um advogado negligente. A ratio decidendi não poderia ser mais clara: “considerando que, quando um dano consiste na perda da chance de êxito em juízo, o caráter real e sério da chance perdida deve ser apreciado com relação à probabilidade de sucesso desta ação”[82].
Há, contudo, outros julgados nos quais a exigência do caráter real e sério da chance não esteve diretamente ligada às probabilidades em jogo. Nestes casos, os juízes fizeram uso do requisito para evitar as demandas oportunistas: pouco provável ou muito provável, a chance não será considerada séria se a vítima não for capaz comprovar seu interesse particular naquela oportunidade perdida[83].
Esta prova é normalmente extraída dos esforços que a vítima havia empregado na obtenção da vantagem aleatória. É por esta razão que a jurisprudência francesa adota uma postura severa em relação aos demandantes que se queixam de ter perdido a chance de exercer uma profissão, mas que não estavam até então engajados em uma atividade específica para o mister em questão[84]. Assim, em um julgado proferido em 12 de maio de 1966[85], a Segunda Câmara Civil da Corte de Cassação negou a indenização requerida por uma jovem, que afirmava ter perdido a chance de ascender à profissão de farmacêutica. Segundo a Corte, a demandante “não havia empreendido qualquer estudo especial que poderia garantir seu acesso à profissão em questão” e por isto “não poderia se queixar da privação das vantagens da carreira, que eram puramente hipotéticas”.
Por outro lado, os tribunais franceses não hesitam em reparar a oportunidade de exercer uma carreira específica quando a vítima preparava-se para esta profissão. Por exemplo, a alta corte cassou, em 1961, uma decisão que denegava a uma jovem, vítima de um acidente, a reparação das chances de se tornar comissária aérea. A despeito do fato de que a demandante “não exercia, à época do acidente, nenhuma atividade assalariada”, a Corte de Cassação ressaltou que “ela acabara de concluir estudos específicos e de realizar uma viagem à Inglaterra para melhorar seus conhecimentos de inglês, com o objetivo de se preparar à profissão de comissária de bordo” e que deste modo o acidente a havia “impedido de aproveitar sua aptidão para o emprego em questão, aptidão esta obtida com seu trabalho especialmente realizado para tanto e pelas despesas que incorreu em sua preparação”[86]. Igualmente, nem a Corte de Apelação, nem a Corte de Cassação puderam ignorar o prejuízo material sofrido pela viúva de um estudante atingido fatalmente em um acidente. A tragédia interrompera a ascensão brilhante da vítima direta, que já se encontrava no sexto ano de medicina[87].
Note-se então que, quando os juízes condicionam a reparação de uma chance ao seu caráter real e sério, eles não querem nada além da prova concreta de que a vítima estimava aquela chance e que, assim, esta perda representa uma lesão efetiva a um interesse seu. O objetivo dos tribunais é de descartar os falsos interesses, inexplicavelmente “descobertos” pela vítima apenas no momento em que esta propôs sua ação de reparação.
Dois julgados, proferidos na década de 1980, ilustram claramente a posição adotada pela Corte de Cassação no que tange à noção de “chance real e séria”. Os recursos interpostos eram idênticos: os herdeiros de um empregado, falecido em um acidente fatal, se insurgiam contra uma decisão que lhes havia negado a reparação das chances de melhorar sua condição financeira. Nos dois casos, os demandantes argumentavam que a vítima direta poderia exercer uma nova atividade após sua aposentadoria, o que aumentaria os recursos da família.
Havia apenas uma diferença relevante entre estes dois litígios. No primeiro, a vítima direta já estava, antes do acidente, em vias de negociação para se tornar consultor[88]. No outro, contudo, não restava qualquer traço da atividade que possivelmente seria exercida pelo falecido. Sua viúva se limitava a afirmar que ele poderia, depois da aposentadoria, “aumentar seu salário exercendo por sua conta a profissão de motorista de ambulância, ou um outro ofício”[89].
E foi precisamente esta diferença que levou a Corte de Cassação a tomar decisões diametralmente opostas em cada um destes casos: os ministros cassaram o primeiro julgado – a Corte de Apelação não poderia ignorar que a vítima direta havia recebido proposições “reais e sérias” para continuar a trabalhar como consultor, após sua aposentadoria – mas confirmaram o segundo – “nenhuma prova fora produzida pelo demandante acerca da perda efetiva de uma chance séria de melhoria de seus proventos”.
Pode-se assim concluir os tribunais franceses tem dois objetivos em mente, quando exigem que a chance reparável seja real e séria[90]: de um lado, desejam evitar que a reparação de chances seja empregada em prol de interesses ignóbeis. De outro, que a técnica se torne um subterfúgio às demandas especulativas.
5. Conclusão
Concebido como uma ordem de regulação da atividade humana, o Direito por vezes pressupõe a previsibilidade desta atividade; pressupõe, em outras palavras, o completo controle do homem sobre as consequências do seu agir. Ora, a álea vai de encontro a esse postulado. Um dado evento é aleatório justamente porque não está totalmente dominado pelo conhecimento, excedendo nossas capacidades e previsões.
A reparação da lesão a interesses aleatórios é um exemplo marcante deste eterno dilema entre o Direito e a incerteza. E para contorna-lo, a jurisprudência francesa cunhou, sucessivamente, três soluções: em primeiro lugar, negando que este tipo de interesse mereça reparação. A segunda resposta foi a de buscar afrontar a dúvida inerente ao conflito, neutralizando-a por meio das presunções.
A reparação das chances perdidas é uma terceira técnica decisória, que consiste no deslocamento do objeto reparado. A responsabilidade deixa de considerar a vantagem aleatória desejada, concedendo à vítima uma indenização equivalente à chance de obter esta vantagem.
As três soluções continuam hoje plenamente aplicáveis aos casos lesão a interesses aleatórios, separadas, contudo, por suas respectivas condicionantes. Se dispuser de elementos suficientemente precisos e concordantes, o magistrado há de resolver a incerteza por meio das presunções. Se a chance em questão for juridicamente irrelevante, deve ignorá-la, por não tratar-se de oportunidade real ou séria. Nas demais hipóteses, impõe-se a reparação das chances perdidas.
Tomando o contrapé das técnicas anteriores, este último método não se propõe a ignorar, tampouco a desfazer a incerteza. A reparação de chances perdidas admite a álea e a incorpora à reparação, projetando-a no momento da quantificação da indenização devida. O principal objetivo desta técnica é o de superar a incompatibilidade entre a incerteza e o Direito, permitindo assim que os interesses sobre eventos aleatórios recebam a merecida proteção da responsabilidade civil.
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[1] Este artigo foi escrito com base em minha dissertação de mestrado defendida em 2009 na Faculdade de Direito da Sorbonne. Para a íntegra da pesquisa, cf. La perte d’une chance: l’álea et la technique. Dissertação: Université Panthéon-Sorbonne – Paris 1 (em tradução). Agradeço a Rodrigo Fogagnolo Mauricio, Fabiana Nunes e Fernando Carnaúba pela leitura das versões preliminares e críticas a este trabalho.
[2] Notadamente, após a prolação do acórdão Show do Milhão – STJ, REsp n° 788.459/BA, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 08.11.2005. Contudo, as primeiras manifestações sobre o tema remontam à palestra proferida por François Chabas na Faculdade de Direito da UFRGS em 23 de março de 1990, intitulada ‘La Perte d’une Chance en Droit Français’. Cf. TJ-RS, Ap. Civ. n° 589.069.996, Rel. Des. Ruy Rosado, j. 12.06.1990; TJ-RS, Ap. Civ. n° 591.064.837, Rel. Des. Ruy Rosado, j. 29.08.1991.
[3] Cf., em especial, Silva. Rafael Peteffi da. Responsabilidade civil pela perda de uma chance. São Paulo: Atlas, 2007; Savi, Sérgio. Responsabilidade civil por perda de uma chance. São Paulo: Atlas, 2006; Higa, Flávio da Costa. A perda de uma chance no direito do trabalho. Dissertação: Universidade de São Paulo, 2011 (no prelo).
[4] Cf., em especial, Noronha, Fernando. Responsabilidade por perda de chances. Revista de Direito Privado, vol. 23, 2005, p. 28-46; Silva, Rafael Peteffi da. A responsabilidade pela perda de uma chance e as condições para a sua aplicação. In: Delgado, Mário Luiz, e Alves, Jônes Figuerêdo (coord.). Novo código civil: questões controvertidas. São Paulo: Método, 2006, vol. 5, p. 443-4461.
[5] Recentemente, a questão ganhou as honras do enunciado 444, referendado pela V Jornada de Direito Civil, de organização do Conselho Nacional de Justiça: “Art. 927. A responsabilidade civil pela perda de chance não se limita à categoria de danos extrapatrimoniais, pois, conforme as circunstâncias do caso concreto, a chance perdida pode apresentar também a natureza jurídica de dano patrimonial. A chance deve ser séria e real, não ficando adstrita a percentuais apriorísticos”.
[6] Cf., contudo, os trabalhos de Flávio da Costa Higa (A perda de uma chance no direito do trabalho, op. cit., p. 161-176) e de Rafael Peteffi da Silva (Responsabilidade civil pela perda de uma chance, op. cit., 101-110), que enfrentam o problema da causalidade dentro da teoria da perda de uma chance. O primeiro partindo da classificação da perda de chance em “típica” e “atípica”; e o segundo, adotando como critério a interrupção ou não do processo aleatório após a conduta do responsável.
[7] Boré, Jacques. L’indemnisation pour les chances perdues: une forme d’appréciation quantitative de la causalité d’un fait dommageable. JCP 1974, I, 2620; Savatier, René. Traité de la responsabilité civile en droit français. 2. ed. Paris: LGDJ, 1951, t. II, p. 11-12. Esse último autor viria a mudar de opinião. cf. Une faute peut-elle engendrer la responsabilité d’un dommage sans l’avoir causé?. D. 1970, chrn. 123-126. No Direito Espanhol, a concepção da perda de chance como uma nova teoria causal foi defendida por Luis Medina Alcoz. La teoría de la pérdida de oportunidad: estudio doctrinal y jurisprudencial de derecho de daños público y privado. Cizur Menor: Thomson-Civitas, 2007.
[8] Mazeaud, Henri, Mazeaud, Léon, e Tunc, André. Traité théorique et pratique de la responsabilité civile délictuelle et contractuelle. 6. ed. Paris: Montchrestien, 1965, t. I, n° 219, p. 273-279; Chartier, Yves. La réparation du préjudice dans la responsabilité civile. Paris: Dalloz, 1983, p. 31-53; Pradel, Xavier. Le préjudice dans le droit civil de la responsabilité. Paris: LGDJ, 2004, p. 237-244.
[9] Chabas, François. La perte d’une chance en droit français. In: Guillod, Olivier (coord.). Développements récents du droit de la responsabilité civile. Zurique: Schulthess, 1991, p. 131-143.
[10] Para uma análise mais aprofundada dos elementos comuns a estes litígios, cf. minha dissertação La perte d’une chance: l’álea et la technique, op. cit., p. 27-34.
[11] Civ. 2a, 18 jan. 1973, Bull. civ. II, n° 27, p. 20; Civ. 3a, 9 jan. 1991, AJDI 1992, p. 28; Civ. 2a, 5 julho 2001, Bull. civ. II, n° 135, p. 91; Civ. 3a, 22 out. 2002, RD imm. 2003, p. 91, nota P. Malinvaud; Civ. 2a, 23 jan. 2003, Bull. civ. II, n° 20, p. 16.
[12]Traité de la responsabilité civile en droit français, op. cit., n° 601; v. também, Tourneau, Philippe le. Droit de la responsabilité et des contrats, 6. ed. Paris: Dalloz, 2006, n° 1309 e s., p. 366-367.
[13] Trata-se de uma incerteza contrafatual, cf. Carnaúba, Daniel Amaral. La perte d’une chance: l’álea et la technique, op. cit., p. 34-35.
[14] Jourdain, Patrice. Sur la perte d’une chance. RTD civ. 1992, p. 109.
[15] Cf. Carnaúba, Daniel Amaral. La perte d’une chance: l’álea et la technique, op. cit., p. 5-19.
[16] Sobre a ideia de perda de uma chance como um deslocamento da reparação, v. Bacache-Gibeili, Mirreille. Traité de droit civil: les obligations – la responsabilité civile extracontractuelle. Paris: Economica, 2007, t. V, n° 317, p. 348, e n° 389, p. 432.
[17] Viney, Genieviève, e Jourdain, Patrice. Traité de droit civil: les conditions de la responsabilité. 3. ed. Paris: LGDJ, 2006, n° 280, p. 92; Boré, Jacques. L’indemnisation pour les chances perdues: une forme d’appréciation quantitative de la causalité d’un fait dommageable, op. cit., n° 3; Chartier, Yves. La réparation du préjudice dans la responsabilité civile, op. cit., n° 23, p. 33. Cf. também: Silva, Rafael Peteffi da. Responsabilidade civil pela perda de uma chance, op. cit., p. 10.
[18] Req., 17 julho 1889, S.1891, I, p. 399.
[19] Trib. com. Seine, 3 julho 1913, Gaz. Pal. 1913, II, p. 406.
[20] Cf. a transcrição da decisão em CA Limoges, 24 março 1896, D. 1898, 2, p. 259.
[21] CA Rouen, 8 agosto 1903, D. 1904, II, p. 175.
[22] CA Paris 5a câm., 24 maio 1938, D.H. 1938, p. 392. “Sem ignorar que, segundo o conjunto probatório produzido, o noivado da Srta. Gaillard com o Sr. Mole deveria, muito provavelmente, resultar em casamento, não seria válido contudo afirmá-lo com toda certeza e considerar como verdadeiro que, sem o acidente fatal que atingiu o Sr. Mole, o casamento teria sido celebrado em breve; que, por não demonstrar que o acidente lhe tenha provocado um prejuízo atual e certo, seu pedido de reparação não deve ser acolhido”.
[23] Trib. civ. Meaux, 29 jan. 1920, D. 1920, I, p. 137, nota H. Lalou. “Considerando que Langelot, o pai, afirma ainda que, já idoso e em estado de saúde precário, ele poderia esperar que, num futuro mais ou menos remoto, seu filho lhe providenciaria a assistência alimentar legalmente prevista; Mas considerando que, neste ponto, trata-se de um prejuízo puramente eventual e por consequência incerto, o qual não pode servir de fundamento a uma ação de perdas e danos”.
[24] Trib. civ. Oran, 22 out. 1932, S. 1933, II, p. 239.
[25] Civ. 2a seç., 14 nov. 1958, Gaz. Pal.1959, I, p.31. “Considerando que consta no julgado recorrido que o tenor Dassary fora contratado por Camerlo [autor da demanda], diretor da Ópera de Lyon, para atuar em um papel em uma série de apresentações da opereta Chanson Gitane cuja 1ª representação deveria ocorrer em 19 de novembro de 1953; que em 9 de outubro de 1953, Dassary foi vitimado em um acidente automobilístico pelo qual Dameyer foi declarado responsável; […] que as receitas obtidas pela representação desta obra forem muito inferiores em 1953 se comparadas a 1952; que Camerlo, atribui esta diferença à ausência de Dassary, que teve de ser substituído por um artista de menor renome […]; Considerando que a partir destas constatações e enunciações hipotéticas, a Corte de Apelação não poderia ter concluído pela prova de um prejuízo certo; por este motivo – cassa-se a decisão”.
[26] Sobre a relação entre incerteza do prejuízo e o nexo de causalidade, cf. Carnaúba, Daniel Amaral. La perte d’une chance: l’álea et la technique, op. cit., p. 71-75.
[27] Mazeaud, Henri, Mazeaud, Léon, e Tunc, André. Traité théorique et pratique de la responsabilité civile délictuelle et contractuelle, op. cit., n° 219, p. 276; Mazeaud, Henri, Mazeaud, Jean, Mazeaud, Léon, e Chabas, François. Leçons de droit civil: obligations – théorie générale. 9. ed. Paris: Montchrestien, 1998, t. II, vol. I, n° 412, p. 416.
[28] Em algumas situações, o Direito não apenas pode, como deve ignorar a lesão a certos interesses aleatórios. É o que ocorre, notadamente, quando a chance perdida não é real ou séria. v. infra.
[29] A Corte de Apelação de Angers empregou precisamente este argumento naquele que seria o primeiro caso de reparação de chances em matéria de responsabilidade dos profissionais de justiça: “Considerando que o Dr. X [avoué contra o qual se pleiteava reparação] sustenta que a indenização por evicção requerida por Langlais [seu antigo cliente] era apenas eventual, e que por isso ele não teria causado qualquer prejuízo ao seu cliente com a perda do prazo para a propositura da ação; Considerando que este argumento não pode ser acolhido; que não se pode admitir que o autor de um ato culposo sustente, para se exonerar de qualquer responsabilidade, que a vantagem a ser obtida por meio da ação que ele deixou prescrever era incerta, quando foi precisamente em razão do ato culposo deste responsável, que a existência e a medida desta vantagem não podem ser verificadas”. CA Angers 1a câm., 19 maio 1931, Gaz. Pal. 1931, II, p. 218, S. 1931, II, p. 190.
[30] Ghestin, Jacques, Goubeaux, Gilles, e Fabre-Magnan, Muriel. Traité de droit civil:introduction générale. 4. ed. Paris: LGDJ, 1994, n° 717, p. 699.
[31] Terré, François. Introduction générale au droit. 5. ed. Paris: Dalloz, 2000, n° 492, p.520.
[32] Flour, Jacques, Aubert, Jean-Luc, Flour, Yvonne, e Savaux. Eric. Les obligations: le rapport de l’obligation. 5. ed. Paris: Sirey, 2007, n° 60, p. 40.
[33] Ghestin, Jacques, Goubeaux, Gilles, e Fabre-Magnan, Muriel. Traité de droit civil:introduction générale, op. cit., n° 637, p. 608 ; Terré, François. Introduction générale au droit, op. cit., loc. cit.
[34] Aubert, Jean-Luc. Introduction au droit. 10. ed. Paris: Armand Colin, 2004 , n° 73, p. 59.
[35] O huissier é o equivalente francês de nosso “oficial de justiça”. Porém, há uma importante diferença entre o oficial de justiça e o huissier: este é um profissional liberal contratado diretamente pelas partes do processo, agindo em nome e por conta destas. Por isto, as falhas ou atrasos por ele praticados serão imputados àquele que o contratou, tal como as do advogado são imputadas ao seu cliente.
[36] Sobre este método, o julgado mais antigo que tivemos acesso foi proferido em 1875 pela Corte de Apelação de Grenoble – CA Grenoble, 25 junho 1875, D. 1876, II, p. 147. Há, porém, citações convergentes a um julgado mais antigo, da Corte de Apelação de Caen, do ano de 1864: CA Caen, 16 março 1864, S. 1865, II, 213.
[37] Em alguns julgados, os juízes condenaram o advogado ou o huissier a devolver ao cliente apenas os honorários e despesas processuais incorridos por este com o ato declarado nulo: CA Bordeaux, 18 junho 1886, D. 1888, II, p. 189; CA Riom, 30 dez. 1890, D. 1892, II, p. 227; CA Paris 1a câm., 11 jan. 1895, D. 1895, II, p. 489; CA Nancy 1a câm., 6 fev. 1909, Gaz. Pal. 1909, II, p. 440.
[38] CA Grenoble, 25 junho 1875, D. 1876, II, p. 147; CA Besançon, 23 fev. 1880, D. 1880, II, 225; CA Limoges, 10 fev. 1888, D. 1889, II, 261; CA Bordeaux, 18 junho 1886, D. 1888, II, p. 189; CA Bourges, 15 abril 1889, D. 1891, II, p. 43.
[39] A posição foi confirmada em três acórdãos posteriores: Civ., 26 nov. 1890, D. 1891, I, p. 18; Req., 30 junho 1902, S. 1907, I, p. 434, D. 1903, I, p. 569, Gaz. Pal.1902, II, p. 279; Civ., 27 março 1911, D. 1914, I, p. 225, nota H. Lalou, S. 1914, I, p. 137.
[40] Req., 17 julho. 1889, S.1891, I, p. 399.
[41] Boré, Jacques. L’indemnisation pour les chances perdues: une forme d’appréciation quantitative de la causalité d’un fait dommageable, op. cit., n° 3; Chartier, Yves. La réparation du préjudice dans la responsabilité civile, op. cit., n° 23, p. 33; Viney, Genieviève, e Jourdain, Patrice. Traité de droit civil: les conditions de la responsabilité. op. cit., n° 280 , p. 92.
[42] V. o acórdão da Corte de Apelação de Limoges, que estava sendo questionado perante a Corte de Cassação: CA Limoges, 10 fev. 1888, D. 1889, II, p. 261: “Sobre os argumentos de Loze [diretor da Caixa Comercial], que pleiteava que Rives o indenizasse de qualquer condenação que fosse imputada a ele, principal e acessórios: – Considerando que, para resolver esta questão, é necessário inquirir se, por meio de uma apelação válida, o julgamento teria ou não sido reformado, pois, em caso a afirmativo Rives deve a indenização requerida e em caso negativo ele não a deve; – Considerando que a fundamentação empregada pelos primeiros juízes [que tinham condenado a Caixa Comercial na ação proposta por Sigé] é válida e que sua adoção é de rigor”. Em suma, considerando que a sentença não seria reformada, a Corte de Apelação constatou que não havia qualquer prejuízo experimentado pela Caixa.
[43] Foram os irmãos Mazeaud os primeiros a citar o acórdão em questão, na seção de seu tratado em que abordam o tema da perda de chances (op. cit., n° 219). Contudo, naquele trecho, os autores fazem menção a litígios nos quais seria possível reparar as chances perdidas, o que não significa que os juízes tenham efetivamente feito uso da técnica nas decisões citadas. Tanto que os autores concluem exposição, sem poupar ironia: “as pessoas precedentemente mencionadas conseguiriam ver sua chance realizada? Não se sabe e jamais se saberá. Devemos então considerar que, em todas estas hipóteses, o dano a ser reparado é puramente hipotético e que, por consequência, o tribunal não pode levá-lo em conta? Seria uma conclusão precipitada”. O objetivo dos juristas não era propriamente o de oferecer precedentes jurisprudenciais aos seus leitores, mas sim demarcar a abrangência do conceito e seu potencial de aplicação. Em nosso ver, o equívoco cometido pela doutrina, francesa e brasileira, que considera acórdão de 1889 como o primeiro julgado sobre a perda de chance, decorre da irresponsável prática da citação indireta (por vezes, nem mesmo explicitada com a menção apud), que permite que este tipo de mal entendido seja perpetuado.
[44] Civ., 26 nov. 1890, D. 1891, I, p. 18.
[45] Trata-se de um patrono do jurisdicionado, cuja função é representá-lo perante os tribunais de apelação. A profissão foi extinta pela reforma de 25 de janeiro de 2011, que fundiu as funções de avoué e avocat a partir de 1º de janeiro de 2012.
[46] Além dos julgados de 1889 e de 1890, a Corte confirmaria este entendimento em dois outros acórdãos: Req., 30 junho 1902, S. 1907, I, p. 434, D. 1903, I, p. 569, Gaz. Pal. 1902, II, p. 279; Civ., 27 março 1911, D. 1914, I, p. 225, nota H. Lalou, S. 1914, I, p. 137. O julgado de 1902 continha a seguinte redação: “Considerando que, depois de declarar nula, em razão da negligência do huissier C…, a apelação que ele havia interposto a pedido do Sr. Poulain, a Corte de Rennes pôde legalmente rejeitar a ação de reparação proposta diretamente perante ela contra o referido oficial de justiça, argumentando que ela teria rejeitado o recurso, se não o tivesse anulado em razão de seu defeito formal, e que, por consequência, a nulidade em questão não causou ao apelante qualquer tipo de prejuízo; que de um lado, com efeito, a negligência constatada somente ensejaria a responsabilidade do réu caso tivesse provocado um dano; que, de outro, cabia aos juízes de instância inferior apreciar soberanamente a existência ou não existência do prejuízo, e que, como a referida decisão dependia necessariamente do resultado que a apelação poderia produzir, eles estavam assim obrigados a apreciar o mérito desta apelação”.
[47] Cf. Medina Alcoz, Luis. La teoría de la pérdida de oportunidad, op. cit., p. 316.
[48] Civ., 22 out. 1934, Gaz. Pal. 1934, II, p. 821; Civ. 1a, 4 abril 2001, JCP 2001, II, 10640 nota C. Noblot; Civ. 1a, 4 abril 2001, Bull. civ. I, n° 101, p. 64; Civ. 1a, 30 out. 2008, D. 2009, p. 995, nota Y. Avril.
[49] A evolução da aplicação das presunções aos casos de responsabilidade de advogados, avoués e huissiers é analisada com maior detalhe em m dissertação, Carnaúba, Daniel Amaral. La perte d’une chance: l’álea et la technique, op. cit., p. 104-109.
[50] Mazeaud, Henri, Mazeaud, Léon, e Tunc, André. Traité théorique et pratique de la responsabilité civile délictuelle et contractuelle, op. cit., n° 219, p. 278-279.
[51] Sallet, Frédérique. La perte d’une chance dans la jurisprudence administrative relative à la responsabilité de la puissance publique. Paris: LGDJ, 1994, p. 1; Chartier, Yves. La réparation du préjudice dans la responsabilité civile, op. cit., n° 22, p. 32.
[52] Em sua nota ao acórdão Civ., 27 março 1911, D. 1914, 1, p. 225.
[53] “Considerando que Langelot, o pai, afirma ainda que, já idoso e em estado de saúde precário, ele poderia esperar que, num futuro mais ou menos remoto, seu filho lhe providenciaria a assistência alimentar legalmente prevista; Mas considerando que, neste ponto, trata-se de um prejuízo puramente eventual e por consequência incerto, o qual não pode servir de fundamento a uma ação de perdas e danos”. O tribunal então isentou o réu da reparação deste prejuízo considerado eventual, Trib. civ. Meaux, 29 jan. 1920, D. 1920, 1, p. 137, nota H. Lalou.
[54]Idem, loc. cit.
[55]La responsabilité civile: principes élémentaires et applications pratiques. Paris: Dalloz, 1928 – denominado Traité pratique de la responsabilité civile, a partir da 3ª edição.
[56]Comp. com o papel exercido por Chaplin v. Hicks ([1911] 2 KB, 786) na jurisprudência inglesa; ou pelo julgado Show do Milhão no Direito brasileiro (STJ, REsp n° 788.459/BA, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 08.11.2005).
[57] Esse foi, ao menos, o mais antigo julgado francês que pudemos encontrar no curso de nossa pesquisa. É curioso notar que, se esta informação for procedente, deve-se refutar a ideia tradicional de que a perda de chance é um conceito de origem francesa. É que a primazia caberia à jurisprudência inglesa, que teria então admitido a reparação de chances no julgado Chaplin v Higs de 1911, supra.
[58] Req., 26 maio 1932, S. 1932, I, p. 387.
[59] “Considerando que o Dr. X [avoué contra o qual se pleiteava reparação] sustenta que a indenização por evicção requerida por Langlais [seu antigo cliente] era apenas eventual, e que por isso ele não teria causado qualquer prejuízo ao seu cliente com a perda do prazo para a propositura da ação; Considerando que este argumento não pode ser acolhido; que não se pode admitir que o autor de um ato culposo sustente, para se exonerar de qualquer responsabilidade, que a vantagem a ser obtida por meio da ação que ele deixou prescrever era incerta, quando foi precisamente, em razão do ato culposo deste responsável, que a existência e a medida desta vantagem não podem ser verificadas, que, em todo caso, há uma certeza, visto que, proposta no prazo previsto em lei, a ação poderia resultar em uma decisão favorável, conquanto, intentada depois do prazo ela estaria fatalmente fadada ao fracasso; que o Dr. X não pode portanto alegar que, em razão de sua negligência, a situação de seu cliente não piorou; […] Considerando que os juízes de primeira instância constataram corretamente: 1º a negligência imputável ao Dr. X na execução de seu mandato ad litem; 2º um nexo de causa e efeito entre esta negligência e o dano efetivamente experimentado por Langlais; que, do mesmo modo, eles puderam com exatidão avaliar o referido dano. Por estes motivos, confirma-se o julgamento proferido; declara-se o Dr. X desprovido em todos os seus pedidos, objetivos e conclusões, denegando-os”, CA Angers 1a câm., 19 maio 1931, Gaz. Pal. 1931, II, p. 218, S.1931, II, p. 190.
[60] Civ., 22 out. 1934, Gaz. Pal. 1934, II, p. 821. Trata-se sem dúvida de uma mudança de entendimento jurisprudencial. O recorrente pleiteava a reforma da decisão de segunda instância, visto que esta teria condenado o avoué, sem, contudo, “examinar se a demanda [cuja apreciação fora impedida por culpa do avoué] teria obtido um resultado útil se fosse proposta no prazo”. A crítica do recorrente fora claramente extraída de um julgado proferido pela mesma câmara da alta corte, em 1890 (Civ., 26 nov., 1890, D. 1891, I, p. 18, na qual a referida câmara afirmara: “Considerando que seria necessário, para justificar a condenação em perdas e danos, que o tribunal verificasse se o pedido que fora omitido por culpa do advogado [avoué] poderia resultar em uma demanda jurisdicional útil, e que o tribunal afirmasse a utilidade desta demanda”). Nada obstante, em 1934 a Corte de Cassação entendeu que esta verificação não seria necessária: “Considerando que a existência de um prejuízo pôde ser claramente auferida das constatações do julgado, segundo as quais Langlais foi, em razão da negligência do avoué, privado da possibilidade de formular suas pretensões na justiça, conquanto, intentada no prazo legal, sua ação, tal como conclui o acórdão ora recorrido, poderia levar a um resultado favorável; Considerando, por outro lado, que a apreciação do montante do prejuízo é matéria de fato, decidida soberanamente pelos juízes de instância inferior [que não pode ser reapreciada pela Corte de Cassação]; assim, decidindo desta forma, a Corte de Apelação motivou legalmente sua decisão e não violou as normas mencionadas no recurso. […] Por estes motivos, rejeita-se o recurso”.
[61] Trib. cor. Chalons-sur-Marne, 16 junho 1934, Gaz. Pal. 1934, II, p. 367; Req., 30 abril 1940, Gaz. Pal.1940, II, p. 37, D. 1941, som. p. 4; Trib. civ. Bordeaux, 16 jan. 1950, D. 1950, p. 122.
[62] CA Rouen, 9 julho 1952, D. 1953, p. 13.
[63] Crim., 18 jan. 1956, JCP 1956, 9285, nota J. Carel.
[64] Chartier, Yves. La réparation du préjudice dans la responsabilité civile, op. cit., n° 35, p. 50.
[65] Bénabent, Alain. La chance et le droit. Paris: LGDJ, 1973, n° 237, p. 179-180. O autor afirma que a técnica de presunções deve ser empregada para resolver este tipo de problema.
[66] Chartier, Yves. La réparation du préjudice dans la responsabilité civile, op. cit., n° 27, p. 38; Vacarie, Isabelle. La perte d’une chance. Rev. de la Rech. Jur. 1987, vol. 3, p. 923.
[67] O problema da causalidade na perda de uma chance despertaria a atenção dos juristas a partir de 1965, quando a jurisprudência francesa aplicou pela primeira vez esta técnica à seara da responsabilidade médica (Civ. 1a, 14 dez. 1965, JCP 1966, II, 14753, nota R. Savatier, D. 1966, p. 453, RTD civ. 1967, p.181). Cf. Carnaúba, Daniel Amaral. La perte d’une chance: l’álea et la technique, op. cit., p. 148-162.
[68] Ruellan, Caroline. La perte de chance en droit privé. Rev. de la Rech. Jur. 1987, vol. 3, p.741.
[69] Civ. 1a, 2 abril 1997, D. 1997, p. 101; Civ. 1a, 8 julho 1997, RTD civ. 1998, p. 126, nota P. Jourdain; Civ. 1a, 8 julho 1997, RDSS 1998, p. 67, nota L. Dubouis; Civ. 1a, 18 julho 2000, D. 2000, p. 853, nota Y. Chartier.
[70] Chartier, Yves. La réparation du préjudice dans la responsabilité civile, op. cit., n° 558, p. 686-688; Ruellan, Caroline. La perte de chance en droit privé, op. cit, n° 46, p. 751; Fabre-Magnan, Muriel. Droit des obligations: responsabilité civile et quasi-contrats. Paris: PUF, 2007, n° 34, p. 104.
[71] Civ. 1a, 9 maio 1973, JCP 1974, II, 17643; Civ. 1a, 2 maio 1978, JCP 1978, II, 18966, nota R. Savatier; Civ. 1a, 16 julho 1998, JCP 1998, II, 10143, nota R. Martin; Civ. 1a, 9 abril 2002, Bull. civ. I, n° 116, p. 89; Civ. 1a, 7 dez. 2004, D. 2005, p. 403, nota J. Penneau; Civ. 1a, 14 fev. 2008, Bull. civ. I, n° 51; Civ. 2a, 9 abril 2009, Bull. civ. II, n° 98.
[72] A doutrina é também unânime neste ponto: Mazeaud, Henri, Mazeaud, Jean, Mazeaud, Léon, e Chabas, François. Obligations: théorie générale, op. cit., p. 429; Tourneau, Philippe le. Droit de la responsabilité et des contrats, op. cit., n° 1419, p. 388-390; Viney, Genieviève, e Jourdain, Patrice. Traité de droit civil: les conditions de la responsabilité. op. cit., n° 284, p. 102.
[73] Viney, Genieviève, e Jourdain, Patrice. Traité de droit civil: les conditions de la responsabilité. op. cit., n° 283, p. 98-102.
[74] “A concretude da probabilidade deve ser estatisticamente avaliável por meio de juízo sintético que afirme que o perigo de não verificação do evento favorável, independente da conduta ilícita, seria inferior a cinquenta por cento”. Cons. St., 7 fev. 2002, n° 686.
[75] No Brasil, este método foi defendido por Savi, Sergio. Responsabilidade civil por perda de uma chance, op. cit., p. 61. É de se ressaltar que a solução não foi adotada pela jurisprudência. V. notadamente, STJ, REsp nº 788.459/BA, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 08.11.2005. O acórdão, que é, aliás, o leading case brasileiro sobre o tema, concedeu reparação à vítima que havia perdido 25% de chances de se obter um prêmio. V. também, STJ, AgRg no REsp n° 1.220.911/SP, j. 17.03.2011, Rel. Min. Castro Meira e o enunciado 444 da V Jornada de Direito Civil.
[76] Mesmo na Itália, os juízes por vezes se afastam do referido critério. Em um julgado proferido em 22 de abril de 1993, a Corte Suprema de Cassação Italiana afirmou que bastava à reparação de chances “a razoável certeza da existência de uma não ignorável probabilidade favorável (não necessariamente superior a 50%)”. C. Supr. Cass., 22 abril 1993, n° 4725. No mesmo sentido, v. Chindemi, Domenico. Il danno da perdita di chance. Milano: Giuffrè, 2007, p. 156-157.
[77] Para uma proposta um pouco mais elaborada, fundada em vários parâmetros numéricos (15%, 80%), v. L. Medina Alcoz. La teoría de la pérdida de oportunidad, op. cit., p. 315-318.
[78] Nesse mesmo sentido, Higa, Flávio da Costa. A perda de uma chance no direito do trabalho, op. cit., p. 84-88.
[79] Crim., 15 junho 1982, Bull. crim., n° 159; Crim., 11 março 1986, Bull. crim., n° 103, p. 265; Crim., 6 junho 1990, RTD civ. 1991, p. 121, RTD civ. 1992, p. 109, nota P. Jourdain; Crim., 4 dez. 1996, Bull. crim., n° 445, p. 1301; Civ. 1a, 4 abril 2001, JCP 2001, II, 10640 nota C. Noblot; Civ. 1a, 9 nov. 2004, não publicado, pourvoir n° 02-19.286; Civ. 3a, 1 dez. 2004, RD imm. 2005, p. 43, nota C. Morel; Civ. 1a, 7 fev. 2006, não publicado, pourvoir, n° 05-13.958.
[80] De origem jurisprudencial, o requisito recebeu a aprovação unânime da doutrina: Viney, Genieviève, e Jourdain, Patrice. Traité de droit civil: les conditions de la responsabilité. op. cit., n° 283, p. 98-102; Chartier, Yves. La réparation du préjudice dans la responsabilité civile, op. cit., n° 36, p. 50-51; Tourneau, Philippe le. Droit de la responsabilité et des contrats, op. cit., n° 1418, p. 388; Ruellan, Caroline. La perte de chance en droit privé, op. cit., n°15 e s., p. 736-737; Vacarie, Isabelle. La perte d’une chance. cit., p. 924-926.
[81] Crim., 11 março 1986, Bull. crim., n° 103, p. 265; Civ. 1a, 8 julho 2003, Bull. civ. I, n° 164, p. 128; Civ. 3a, 1 dez. 2004, RD imm. 2005, p. 43, nota C. Morel; Civ. 1a, 7 fev. 2006, não publicado, pourvoir n° 05-13.958.
[82] Civ. 1a, 4 abril 2001, JCP 2001, II, 10640 nota C. Noblot. V. também: Civ. 1a, 7 maio 2008, Gaz. Pal. 2008, n° 330, p. 18, nota É. Mulon.
[83] Crim., 6 junho 1990, RTD civ. 1991, p. 121, RTD civ. 1992, p. 109, nota P. Jourdain; Crim., 4 dez. 1996, Bull. crim., n°445, p. 1301.
[84] Chartier, Yves. La réparation du préjudice dans la responsabilité civile, op. cit., n° 31, p. 42-43.
[85] Civ. 2a, 12 maio 1966, D. 1967, p. 3. V. também: Civ. 2a, 10 out. 1973, Bull. civ. II, n° 254, p. 203.
[86] Civ. 2a seç., 17 fev. 1961, Gaz. Pal. 1961, I, p. 400.
[87] Crim., 24 fev. 1970, D. 1970, p. 307, nota P. Le Tourneau, JCP 1970, II, 16456.
[88] Crim., 15 junho 1982, Bull. crim., n° 159.
[89] Crim., 11 março 1986, Bull. crim., n° 103, p. 265.
[90] Flávio Higa observa que os termos, real e sério, não são sinônimos, e que há uma hierarquia entre os dois, visto que o segundo pressupõe a existência do primeiro: “é possível estabelecer uma escala hierárquica entre os requisitos: a realidade antecede a seriedade, embora somente a conjunção de ambos torne a vítima apta a pedir a reparação do dano. É possível haver uma chance real que não seja séria, mas não é possível cogitar de uma chance séria, que não seja real. Retomando os exemplos anteriores, o enfermo cientificamente condenado não possui uma chance real, logo, ela não é séria; já o possuidor de um bilhete com uma chance em 50 milhões possui uma chance inegavelmente real – tanto assim que adquire o bilhete mediante paga – mas que, para efeitos jurídicos, não pode ser considerada séria”. A perda de uma chance no direito do trabalho, op. cit., p. 87.