GENJURÍDICO
Responsabilidade civil das plataformas digitais_ um dilema para o STF

32

Ínicio

>

Civil

>

Direito Digital

CIVIL

DIREITO DIGITAL

Responsabilidade civil das plataformas digitais: um dilema para o STF

RESPONSABILIDADE CIVIL

STF

Anderson Schreiber

Anderson Schreiber

19/04/2023

Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou audiência pública para discutir a responsabilidade civil das plataformas digitais pelos danos derivados da publicação por seus usuários de conteúdo ilícito. A controvérsia tem origem no artigo 19 da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), que afirma que as plataformas digitais só respondem por danos gerados pelo conteúdo de terceiro quando e se vierem a descumprir uma ordem judicial específica para a remoção do conteúdo.[1]

Essa espécie de blindagem das plataformas digitais tem sido criticada há anos em sede doutrinária por exprimir uma restrição excessiva à reparação de danos causados pela violação de direitos fundamentais.[2] Em 2017, o tema chegou ao STF, por meio do Recurso Extraordinário 1.037.396/SP, tendo sido reconhecida a repercussão geral do referido recurso no ano seguinte (Tema 987).

Presidida pelos ministros Luiz Fux e Dias Toffoli, a profícua audiência pública contou com mais de 40 exposições de entidades interessadas em se manifestar sobre o tema – como Google, Twitter e TikTok – e também de entidades independentes, como a Rede de Direito Civil Contemporâneo[3] e a Clínica de Responsabilidade Civil da UERJ (UERJ resp).[4]

Debates sobre a responsabilidade civil das plataformas digitais

De outro lado, situam-se aqueles que entendem, como o autor desta coluna, que o condicionamento da responsabilidade civil das plataformas digitais ao descumprimento de uma ordem judicial específica cria uma verdadeira fratura na ordem jurídica brasileira. Em nenhum outro setor econômico, o surgimento da responsabilidade civil está condicionado ao prévio descumprimento de uma ordem emanada do Poder Judiciário. Basta pensar nos veículos de imprensa, que também dão voz a terceiros, como entrevistados, autores de artigos de opinião e outros indivíduos, e que, à luz da jurisprudência brasileira, respondem juntamente com estes terceiros por danos causados em virtude destas publicações.[6] A exigência de prévio descumprimento de ordem judicial específica cria um privilégio que acaba por colocar as plataformas digitais em uma posição de imunidade perante danos individuais que se propagam pelo mau uso dos ambientes virtuais.

Acumulam-se na jurisprudência brasileira casos como aquele da professora que teve seu nome associado a uma comunidade criada apenas para ofendê-la[7] ou da mulher que teve todos os seus dados pessoais verdadeiros – incluindo o número de telefone da empresa onde trabalhava – reunidos em um perfil falso, que anunciava que, nas horas vagas, ela prestava serviços sexuais mediante remuneração.[8] São exemplos de pessoas que tentaram de tudo, em sede extrajudicial, para retirar essas publicações gravemente lesivas da rede, sem sucesso, restando-lhes a única via da propositura de ação judicial.

Artigo 19 do Marco Civil da Internet

O artigo 19 do Marco Civil da Internet acaba, nesse sentido, por converter o Poder Judiciário em um moderador de conteúdo. Fica a cargo de cortes judiciais já abarrotadas de trabalho avaliar o que é e o que não é ofensivo a direitos fundamentais antes mesmo de qualquer responsabilidade chegar a nascer para as plataformas digitais. Essa blindagem estimula naturalmente uma atitude passiva. Quem gozando de tamanha proteção faria mais do que simplesmente aguardar o recebimento de uma ordem judicial? Enquanto isso, o dano alastra-se pelo ambiente digital, tornando-se praticamente irreparável. À vítima resta propor ação de reparação de danos contra o usuário que criou o conteúdo, personagem que é quase sempre anônimo ou não pode ser rastreado.

O chamado “chilling effect” verifica-se, de fato, na prática, mas não sobre a liberdade de expressão no ambiente digital, e sim sobre a proteção dos direitos fundamentais. Cada vez mais, pessoas que sofrem danos nesses ambientes deixam de reagir, assumindo que a internet é mesmo um campo onde transita livremente o ódio, a violência e, muitas vezes, a discriminação. Muitos deixam de reagir a ofensas porque a reação pode levar a um contra-ataque ainda mais perverso, tudo sob o manto de uma genuína irresponsabilidade civil.

A verdade é que o artigo 19 do Marco Civil da Internet vem sendo contestado desde antes da publicação daquela lei. Sempre causou surpresa a opção do legislador: em um ambiente em que os danos se propagam de modo tão veloz, como optar por uma judicialização prévia, especialmente diante do tempo médio de duração dos processos na realidade brasileira? O remédio sempre soou pouco adequado para a doença. O que mudou, contudo, foi o entorno.

Se, antes, os danos sofridos pela publicação de conteúdo nas plataformas digitais eram eminentemente individuais, os acontecimentos dos últimos anos vieram sugerir uma nova ameaça: danos à coletividade. Sem prejuízo da sua imensa utilidade para a circulação de ideias, as redes sociais e aplicativos de mensagens acabaram se tornando um instrumento de compartilhamento de fake news, que, muito além de exemplos caricaturais como o chamado terraplanismo, trouxeram danos concretos à população, como se viu, em diferentes países do mundo, na desinformação sobre o tratamento da Covid-19 ou, ainda, na convocação para ataques à democracia nos Estados Unidos e, infelizmente, também no Brasil.

O exponencial crescimento das plataformas digitais e o desenvolvimento de novas tecnologias, como o uso de mecanismos robóticos de propagação de conteúdo ou a conjugação de técnicas de edição que permite a criação de vídeos em que se modifica a fala do orador de modo quase imperceptível a olho nu (o chamado deep fake),[9] converteram uma questão que dizia respeito a danos puramente individuais em uma genuína ameaça de danos coletivos de séria gravidade.

É nesse novo contexto que a discussão do artigo 19 do Marco Civil da Internet vem sendo retomada pelo STF. O papel desempenhado pela nossa Suprema Corte nas últimas eleições tem íntima relação com essa retomada, na medida em que o próprio STF foi vítima de ataques maciços no ambiente digital – e reagiu.[10] O dilema para a corte talvez venha precisamente de sua própria jurisprudência: após diferentes precedentes em que enalteceu, sem qualquer ressalva, um caráter preferencial da liberdade de expressão – consagrado na fórmula popular, mas juridicamente pouco densa do “cala a boca já morreu” –, o STF está sendo agora chamado a combater o exercício ilícito ou abusivo desta liberdade em uma realidade transformada pela difusão de hate speech e fake news, inclusive no que tange à própria Suprema Corte.

As plataformas digitais, registre-se, parecem ter também despertado para a necessidade de atuar mais ativamente na prevenção e no combate à violação de direitos fundamentais, como se viu de diferentes esforços adotados em resposta à demanda da Justiça Eleitoral no Brasil, tal como a restrição do número de destinatários para encaminhamento de mensagens no WhatsApp, ou à simples necessidade de evitar a propagação de inverdades, tal como nas restrições adotadas desde 2019 pelo Facebook para impedir a divulgação de fake news.[11] O problema, contudo, não diz respeito apenas à preservação do processo eleitoral ou da verdade científica, mas abrange diferentes e variadas violações a direitos fundamentais.

Nesse sentido, vale destacar que o próprio Marco Civil da Internet admite a responsabilização civil das plataformas digitais independentemente de prévio descumprimento de ordem judicial em, ao menos, uma hipótese: a divulgação de “cenas de nudez ou de atos sexuais”. Embora aluda a uma inusitada responsabilidade subsidiária, o artigo 21 do Marco Civil da Internet admite que a responsabilidade civil do provedor de aplicações seja deflagrada naqueles casos a partir de mera “notificação” por parte da vítima. A exigência de notificação, que representa também uma exceção às regras gerais de responsabilidade civil, impõe à vítima um ônus menos exacerbado e oferece resposta adequada ao argumento de que as plataformas digitais não têm como filtrar previamente todo o conteúdo publicado por seus usuários. Não à toa, tal orientação fez estrada na experiência estrangeira, a partir da chamada doutrina do notice and take down.

Condicionamento da responsabilidade civil ao envio de notificação

Há, ainda hoje, quem argumente que o condicionamento da responsabilidade civil ao envio de notificação – o que, repita-se, configura já uma exceção – produziria um efeito resfriador sobre o exercício da liberdade de expressão, pois as plataformas digitais teriam um incentivo irresistível para remover qualquer conteúdo mediante uma simples alegação de violação a direitos. Não é difícil perceber o exagero deste argumento: plataformas digitais tendem, natural e legitimamente, a não remover conteúdo, pois a divulgação de conteúdo consiste no verdadeiro núcleo da sua atividade. A remoção é e será sempre excepcional, como deve ser. O que se está discutindo é se as plataformas que possibilitam a publicação deste conteúdo, que possibilitam a sua difusão e que detém os únicos meios técnicos de impedir a sua propagação devem ou não ser chamadas a reparar os danos que daí podem derivar em caso de conteúdo ilícito. No plano teórico, é difícil sustentar que não.

O problema das exceções

O que parece ainda mais difícil explicar é por qual razão a divulgação de cenas de sexo ou nudez conta, no âmbito do próprio Marco Civil da Internet, com proteção mediante mera notificação (art. 21) enquanto a violação a todos outros direitos fundamentais exige o descumprimento prévio de uma ordem judicial específica (art. 19). O casuísmo torna-se ainda mais curioso à luz de casos concretos, como aquele já mencionado anteriormente em que o perfil falso de uma mulher lhe atribui a prestação de serviços sexuais mediante remuneração. Ali, as imagens não expõem a nudez da vítima, mas o texto associado a uma imagem verdadeira, ainda que vestida, causa danos semelhantes.

Não se quer com isso abrir as portas para outros casuísmos. A solução não parece estar em abrir exceções ao artigo 19 do Marco Civil da Internet, como fez o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao tratar do caso de conteúdo ofensivo envolvendo menores.[12] Eleger soluções casuísticas, sem preocupação com o caráter sistêmico da ordem jurídica, é sempre tentador, mas as exceções prometem se acumular. Em um país em que a Constituição não estabelece hierarquia entre direitos fundamentais, criar regimes de responsabilidade civil distintos para danos causados pela sua violação pode se tornar uma armadilha já no curto prazo.

Daí por que a melhor solução parece residir realmente na declaração de inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, com o retorno do temas às regras gerais de responsabilidade civil, ou, no mínimo, em uma interpretação do referido dispositivo legal em conformidade com a Constituição para que, em todo e qualquer caso de violação a direitos fundamentais, a responsabilidade civil das plataformas digitais independa de ordem judicial prévia, bastando para tanto a notificação extrajudicial, por via física ou eletrônica.

Com tal entendimento, o STF não apenas contribuiria de modo decisivo para tutela dos direitos fundamentais de natureza individual nos ambientes digitais, mas superaria uma imunidade que, além de inédita na ordem jurídica brasileira, não tem feito nenhum bem à tutela dos direitos no plano coletivo. É evidente que outras soluções podem advir, no futuro, dos numerosos projetos de lei que se dedicam à matéria, inclusive por meio de propostas de autorregulação pelas próprias plataformas digitais em conjunto com representantes da sociedade civil e da comunidade acadêmica, mas a construção e o amadurecimento destas soluções pedem tempo. E a reparação dos danos aos direitos fundamentais nos ambientes digitais pede o exato oposto. A sociedade tem cada vez mais pressa.

Fonte: Jota

Veja aqui os livros do autor!


LEIA TAMBÉM


NOTAS

[1] “Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.”

[2] Seja consentido remeter a Anderson Schreiber, A Responsabilidade Civil por Dano Derivado do Conteúdo Gerado por Terceiro, in Newton de Lucca et al. (org.), Direito e Internet III: Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), tomo II, São Paulo: Quartier Latin, 2015, v. 1, pp. 277-304. Ver, na mesma direção, Bruno Terra de Moraes, A Responsabilidade Civil na Lei 12.965/14: Uma Leitura sob a Perspectiva da Tutela da Pessoa Humana, in XXV Congresso do Conpedi, Florianópolis: Conpedi, 2016, pp. 26-44; e João Quinelato Queiroz, Responsabilidade Civil na Rede: Danos e Liberdade à Luz do Marco Civil da Internet, Belo Horizonte: Processo, 2019, pp. 147-153; entre outros.

[3] Pela rede de Direito Civil Contemporâneo sustentou, brilhantemente, Rodrigo Xavier Leonardo, cuja opinião é diametralmente oposta à minha neste tema, mas cuja exposição recomendo vivamente seja vista pelos interessados na matéria: https://youtu.be/pEFJYIqflGs?t=3965.

[4] Para mais detalhes sobre a Clínica de Responsabilidade Civil da UERJ, projeto de extensão desenvolvido no âmbito daquele Universidade pública, acesse: uerjresp.com. A exposição que realizei na audiência pública sobre o Marco Civil, em nome da Clínica, está disponível em: https://www.youtube.com/live/pEFJYIqflGs?feature=share&t=4575.

[5] Para a defesa destas posições, no todo ou em parte, recomendo a leitura de Carlos Affonso Pereira de Souza, Responsabilidade civil dos provedores de acesso e de aplicações de internet: evolução jurisprudencial e os impactos da Lei n° 12.695/2014 (Marco Civil da Internet), in George Salomão Leite e Ronaldo Lemos (coords.), Marco Civil da Internet, São Paulo: Atlas, 2014 e Marcel Leonardi, Marco Civil da Internet, Plataformas Digitais e Redes Sociais, in Gustavo Artese (org.), Marco Civil da Internet: Análise Jurídica sob uma Perspectiva Empresarial, v. 1, São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 277-298.

[6] Súmula 221/STJ: “São civilmente responsáveis pelo ressarcimento de dano, decorrente de publicação pela imprensa, tanto o autor do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação.” Na mesma direção, ver o seguinte julgado do STJ: “Deve ser observado que o entendimento consagrado, na verdade, é o de que a ação por danos morais advindos de matéria jornalística pode ser deflagrada, individualmente ou concomitantemente, à escolha do autor, tanto contra a empresa titular do veículo de comunicação, como ao jornalista diretamente responsável pela matéria, como contra aquele que a tanto deu margem, fornecendo à imprensa os elementos que, vindo servir de base à notícia lesiva, se verificaram inconsistentes, não verídicos.” (STJ, 4ª Turma, REsp 210.961/SP, Rel. Min. Massami Uyeda, j. 21.9.2006)

[7] Trata-se do caso no âmbito do qual houve a interposição do Recurso Extraordinário 1.057.258/MG, tomado como um dos casos paradigmas no STF para discussão da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet.

[8] TJRJ, 10ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível 0000036-60.2008.8.19.0033, Rel. Des. Ernani Klausner, DJe 3.9.2009.

[9] Para mais detalhes, ver Anderson Schreiber, Felipe Ribas e Rafael Mansur, Deepfakes: Regulação e Responsabilidade Civil, in Gustavo Tepedino e Rodrigo da Guia Silva (coords.), O Direito Civil na Era da Inteligência Artificial, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 611.

[10] Como restou evidente no conhecido caso Daniel Silveira.

[11] Confira-se a reportagem intitulada Facebook limita alcance de grupos que espalham notícias falsas (Tecnoblog, 11.4.2019).

[12]Provedor deve remover conteúdo ofensivo a menor na internet, mesmo sem ordem judicial (STJ Notícias, 16.12.2021).

Assine nossa Newsletter

Li e aceito a Política de privacidade

GENJURÍDICO

De maneira independente, os autores e colaboradores do GEN Jurídico, renomados juristas e doutrinadores nacionais, se posicionam diante de questões relevantes do cotidiano e universo jurídico.

Áreas de Interesse

ÁREAS DE INTERESSE

Administrativo

Agronegócio

Ambiental

Biodireito

Civil

Constitucional

Consumidor

Direito Comparado

Direito Digital

Direitos Humanos e Fundamentais

ECA

Eleitoral

Empreendedorismo Jurídico

Empresarial

Ética

Filosofia do Direito

Financeiro e Econômico

História do Direito

Imobiliário

Internacional

Mediação e Arbitragem

Notarial e Registral

Penal

Português Jurídico

Previdenciário

Processo Civil

Segurança e Saúde no Trabalho

Trabalho

Tributário

SAIBA MAIS

    SAIBA MAIS
  • Autores
  • Contato
  • Quem Somos
  • Regulamento Geral
    • SIGA