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A responsabilidade civil da pessoa com deficiência psíquica e/ou intelectual

ARTS 186 E 927 DO CÓDIGO CIVIL

ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

INCAPAZ

INTELECTUAL

LEI 13.146/2015

MANIFESTAÇÃO DE VONTADE

PESSOA COM DEFICIÊNCIA

PSÍQUICA

RESPONSABILIDADE CIVIL

Caitlin Mulholland

Caitlin Mulholland

14/02/2017

Resumo: O presente artigo analisa os fundamentos da responsabilidade civil da pessoa com deficiência psíquica e/ou intelectual, tendo como alicerce normativo o Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei 13.146/2015. O objetivo do artigo é demonstrar que a obrigação de indenizar os danos causados por pessoas com deficiência psíquica ou intelectual se baseia em dois fundamentos. O primeiro se refere às pessoas com deficiência psíquica ou intelectual que possam exprimir sua vontade. Neste caso, a pessoa com deficiência será considerada plenamente capaz, de acordo com os artigos 6º e 84, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, e será a ela imposta a obrigação de indenizar os danos causados, com base nos artigos 186 e 927, do Código Civil. O segundo fundamento se refere às pessoas com deficiência psíquica ou intelectual que não possam exprimir sua vontade. Nesta hipótese, se aplica a regra de responsabilidade civil do incapaz enunciada no artigo 928, do Código Civil. Chega-se a esta conclusão a partir da consideração de que o deficiente psíquico e/ou intelectual que não possa exprimir sua vontade é pessoa relativamente incapaz, com base na redação dada ao art. 4º, III, do Código Civil. Pondera-se que a imputação de obrigação de indenizar a pessoa com deficiência psíquica e/ou intelectual deve analisar a sua capacidade de manifestação de vontade para se determinar se a responsabilidade será elaborado com base no artigo 927 ou no artigo 928, ambos do Código Civil.

Introdução. Da responsabilidade civil ao direito de danos.

Celso, pessoa acometida de “transtorno delirante persistente”1, levava uma vida normal  e pacata numa pequena cidade no interior de São Paulo. Administrava as atividades de seu sítio, produzia safras de limão e garantia o sustento de sua família. Celso jamais apresentou qualquer comportamento agressivo e era considerado como “socialmente adaptado”, razão pela qual seus familiares jamais propuseram a sua interdição. Eventualmente, Celso demonstrava ânimo alterado, sem que este fato transformasse sua relação social e familiar.  Sua esposa, Maria Aparecida, o  aconselhava  e  acompanhava a  consultas psiquiátricas.   Em 2016, Celso, num raro momento de alteração, destrói por completo um carro de propriedade de Rodrigo, ateando-lhe fogo.2

Nesta narrativa, quem deve arcar com o ônus do dano: a vítima ou o ofensor, pessoa com deficiência psíquica? A resposta adequada ao questionamento deve ser dada levando-se em consideração as regras e valores inerentes à determinada sociedade, historicamente localizada. Deve-se considerar, também, que esta indagação terá soluções variadas decorrentes muito mais de “escolhas político-filosóficas do que a evidências lógico-racionais, decorrentes da natureza das coisas”.3 Cinco respostas seriam viáveis de acordo com o período histórico-legislativo analisado: (i) a vítima ficaria irressarcida por ter sofrido dano causado  por pessoa inimputável; (ii) sendo Celso interditado, o seu curador seria responsabilizado por culpa presumida ou, ainda, objetivamente, pelo dano causado; (iii) sendo Celso interditado e seu curador não possuindo meios suficientes para arcar com a indenização ou não havendo da parte do curador a obrigação de indenizar, aquele responderia equitativamente; (iv) se Celso não fosse interditado, responderia direta e integralmente pelo dano, ou, ainda, equitativamente, a depender da possibilidade ou não de exprimir sua vontade.

Por esta narrativa se depreende que a responsabilidade civil surge como um primeiro impulso de punir o ofensor – realizando uma função retributiva, em que se analisa a imputabilidade – para transformar-se, a posteriori, num meio de reparar a vítima – efetivando um ideal de justiça distributiva, como, por exemplo, por meio da atribuição da obrigação de indenizar a um incapaz.  Segundo Luiz Díez-Picazo, a responsabilidade civil estava  destinada a moralizar as condutas individuais mais que assegurar às vítimas a reparação dos prejuízos.4 A sua função original era esta, mas a retomada de valores e princípios personalistas pelo ordenamento jurídico, por meio do Direito Civil contemporâneo, constitucionalizado, fez com que fosse possível a virada principiológica da responsabilidade civil.

Esta mudança de perspectiva traz uma série de consequências quanto à aplicação e interpretação das funções da responsabilidade civil. A principal delas, compartilhada conosco pioneiramente por Orlando Gomes5, se dá pelo giro conceitual em relação à justificativa da existência de um direito da responsabilidade civil. A obrigação de indenizar sempre foi associada à existência de um ato ilícito.  Este era seu fundamento primário e sua razão de  ser.

O ato ilícito, conceituado como toda conduta culposa contrária ao direito que gera um dano a outrem, possui um forte traço moralista, no sentido de que os danos causados por quem tenha agido contra o direito devem ser devidamente ressarcidos, desde que ao ofensor possam ser imputadas tais consequências. Nota-se aí que o foco de atenção é o ofensor, isto é, a  reparação do dano causado tem o objetivo de sancionar a conduta culposa do ofensor, quase que como uma punição pelo desequilíbrio sócio-patrimonial que gerou com sua atuação contrária ao direito.

Este panorama, contudo, muda integralmente quando se retira o foco ou o objetivo da responsabilidade civil deste participante ativo e passa-se a analisar o resultado gerado, e não a conduta propriamente. Em outras palavras, a conduta ofensiva perde relevância ante o dano sofrido. Esta inversão traz como consequência a alteração da perspectiva da responsabilidade civil do ofensor para a ótica da vítima.

Enxerga-se o dano injusto6  e não mais o ato ilícito; busca-se a plena reparação da vítima do dano injusto e não mais a punição daquele que age ilicitamente. A responsabilidade civil passa a cumprir uma renovada função, qual seja, a de reparar os danos sofridos pela vítima, muito mais do que o de obrigar o agente a indenizar por conta de sua conduta culposa. E isso se deve à tomada de consciência e ao sentimento coletivo a respeito da injustiça de deixar a vítima em uma posição desfavorável em relação ao dano que lhe foi ocasionado, mesmo consciente de que o autor do dano pode não ter agido de forma a causá-lo culposamente.7

Esta virada conceitual deveu-se principalmente à consolidação de um novo fator de imputação de responsabilidade concretizado por meio da teoria do risco na responsabilidade civil contemporânea e sua crescente aplicação, ao lado da culpa, em igualdade de valor e não mais como hipótese excepcional. A partir do momento em que estas duas fundamentações passam a ser tuteladas de forma equivalente, a função original da responsabilidade civil – sancionar a conduta culposa – abre espaço a um novo argumento, qual seja, a necessidade amparada socialmente – e constitucionalmente – de reparar os danos injustamente sofridos, sejam eles resultado de um agir culposo, sejam consequência de uma atividade lícita qualquer.

É neste sentido que a noção de responsabilidade civil é modificada com a nova concepção constitucionalizada do direito civil. Se antes, a obrigação de indenizar um dano tinha como principal – e senão, único – fundamento a culpa daquele que lesiona o direito subjetivo de outrem, na atualidade ela deve ser necessariamente reinterpretada no sentido de considerar-se também responsável aquele que proporciona um risco de dano, calcando-se esta responsabilidade no princípio da solidariedade social8 que deve estar presente em todas as relações sociais.

Os clássicos enunciados e institutos do direito privado estão sendo, desta forma, superados pelo tempo e se mostram, em não raras ocasiões, insuficientes para explicar as novas transformações pela qual passa o direito civil, mais notadamente a teoria da responsabilidade civil.  Afasta-se do âmbito tutelado pelo direito civil aquilo que representava a sua identidade – a proteção do indivíduo frente ao Estado – e transfere-se esta tutela para a Constituição Federal, modificando-se a função originária do direito civil.9 A busca da reparação  do  dano  sofrido  injustamente  pela  vítima  justifica-se,  desta  maneira,  por  dois fundamentos constitucionais: a proteção da dignidade da pessoa humana10 e o princípio da solidariedade social, justificadores da tutela preferencial do ofendido.

É dentro desta perspectiva renovada do Direito de Danos que se pretende desenvolver o tema da responsabilidade civil da pessoa com deficiência psíquica ou intelectual. Considerando as premissas apontadas acima, optou-se pela avaliação do tema da responsabilidade civil da pessoa com deficiência psíquica e/ou intelectual sob a luz da metodologia do direito civil constitucional, considerando-se a tutela das pessoas nesta condição de forma a proteger sua dignidade (art. 1º, III, da Constituição Federal) e promover  a igualdade (art. 3º, IV, da Constituição Federal), princípios estes que justificaram e fundamentaram as mudanças legislativas decorrentes do advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15) e, antes deste, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU pelo Brasil (ratificada e promulgada por meio do Decreto Presidencial nº. 6.949/2009).11

Busca-se com o desenvolvimento deste artigo verificar se os fundamentos da responsabilidade civil da pessoa com deficiência psíquica ou intelectual devem ser equiparados aqueles das pessoas que não possuam tal condição. Isto é, se a responsabilidade civil do deficiente deve ser baseada na regra geral da responsabilidade civil culposa por ato próprio, como se não houvesse uma situação peculiar a ser considerada (art. 18612 e 92713, do Código Civil), ou se deve ser respeitada a regra da responsabilidade civil equitativa prevista no artigo 928, do Código Civil14, que trata da responsabilidade civil do incapaz, com a previsão de subsidiariedade de responsabilidade dos representantes, como forma de tutela protetiva das pessoas que se encontram nessa peculiar situação. Ou, ainda, se essas duas formas de responsabilidade podem co-existir, a depender da avaliação da capacidade de manifestação de vontade da pessoa com deficiência psíquica ou intelectual.

Neste contexto, mostra-se indispensável analisar os pressupostos para a responsabilização da pessoa com deficiência psíquica ou intelectual tutelada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, quais sejam: (i) o conceito de deficiência psíquica ou intelectual; (ii) o conceito de discernimento e imputabilidade; (iii) o conceito de vulnerabilidade; e (iv) o conceito de culpa, fundamento da responsabilidade civil subjetiva.

Deficiência psíquica ou intelectual.

A análise normativa do Estatuto da Pessoa com Deficiência indica que a finalidade precípua de tal lei é a promoção, “(…) em condições de igualdade, (d)o exercício dos direitos  e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania” (artigo 1º). Trata-se de opção real pelos princípios da igualdade substancial (condições de igualdade e respeito à diferença15) e da igual dignidade social (inclusão social e cidadania) que permitirá que as pessoas com deficiência possam ser não só referidas juridicamente como capazes, como, ao mesmo tempo, tuteladas preferencialmente no que diz respeito à sua inclusão na comunidade em que vivem.

De acordo com a AAIDD – Associação Americana sobre Deficiência Intelectual do Desenvolvimento – a deficiência intelectual e/ou psíquica se caracteriza por um  funcionamento intelectual inferior à média, associado a limitações adaptativas em pelo menos duas áreas de habilidades (comunicação, autocuidado, vida no lar, adaptação social, saúde e segurança, uso de recursos da comunidade, determinação, funções acadêmicas, lazer e trabalho), que ocorrem antes dos 18 anos de idade.16

O Estatuto da Pessoa com Deficiência, em seu artigo 2º, acatou a definição ampla de pessoa com deficiência como “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. Para este estudo da responsabilidade civil, a compreensão de deficiência psíquica ou intelectual é necessária para identificar em que situações o Estatuto deve ser

aplicado, especialmente considerando-se que seu artigo 6o estatui que “a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa” e o artigo 84 esclarece que “a pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas”, o que gera uma mudança radical na teoria das incapacidades, com a revogação expressa do artigo 3º, I, II e III17, e revogação e modificação da redação do 4º, II e III, do Código Civil, que utilizavam o critério do discernimento como determinante para a declaração de incapacidade. Com isto, naturalmente, dúvidas surgem a respeito da validade de negócios jurídicos e da atribuição da obrigação de indenizar às pessoas deficientes psíquicas e/ou intelectuais.

O que se sustenta, portanto, é que a deficiência psíquica e/ou intelectual de per si não é mais determinante para a atribuição de incapacidade civil, presumindo-se a capacidade da pessoa com deficiência. Isso não significa que o discernimento da pessoa, concretamente, não deva ser avaliado no momento da realização de negócios jurídicos ou tomadas de decisão por parte daquelas pessoas deficientes psíquicas ou intelectuais. Mas a presunção será sempre a de pleno discernimento e capacidade de exercício. Segundo Joyceane Bezerra de Menezes, “(…) o discernimento é a baliza que orienta o exercício dessa capacidade, especialmente, quando as escolhas que se pode fazer trazem efeitos jurídicos para a esfera pessoal ou de terceiros. O foco, porém, está no discernimento necessário e não no diagnóstico médico de uma deficiência psíquica ou intelectual per si”.18 Não se confunde a deficiência psíquica ou intelectual com o conceito de doença mental, por não se tratar de transtorno médico. Muda-se assim a perspectiva para a análise da (in)capacidade civil: a regra passa a ser a capacidade da pessoa com deficiência psíquica ou intelectual, presumindo-se que ela possui discernimento necessário para a prática de certos atos civis, na medida da possibilidade de expressão de sua vontade. Ou seja, a pessoa com deficiência psíquica ou intelectual é, a princípio, presumidamente e para todos os fins, possuidora de discernimento e, portanto, capaz de fato.

É fundamental, deste modo, que haja uma identificação clara de quem é este deficiente, na medida em que tanto a Convenção, quanto o Estatuto, consideram que o tratamento conceitual da pessoa com deficiência psíquica ou intelectual como pessoa com transtorno medicamente identificado é inadequado. Também “não deve ser usada a palavra “portador” porque  pessoas  não  carregam  suas  deficiências”.19  A  inclusão  de  determinados  tipos de deficiência psíquica ou intelectual no CID10 também não é considerada acertada pela Convenção ou pelo Estatuto, na medida em que a patologização do deficiente psíquico ou intelectual gera, em não raras ocasiões, a diminuição ou afastamento de sua capacidade de  fato e de sua autodeterminação. Isto é, a conclusão de que determinadas deficiências psíquica ou intelectual devam ser tratadas como transtorno médico – que requer, por este motivo, o devido tratamento médico e sua eventual cura – é contraditória com o propósito da nova perspectiva de tutela jurídica da pessoa com deficiência, que visa, acima de tudo, autonomizar o  deficiente e  considerá-lo  apto  para  a prática de atos  da vida  civil,  tanto  os  de  natureza existencial20, quanto os de natureza patrimonial, na medida de sua  capacidade  de manifestação de vontade.

Contudo e ao mesmo tempo, o artigo 4º, III, do Código Civil21, reformado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, considera como relativamente incapaz “aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade”. Ainda que este artigo e seu inciso não façam menção à capacidade de discernir como elemento para a declaração de incapacidade relativa, a manifestação ou expressão da vontade – como forma de exercício de autonomia – passam a ser o limite para a atribuição de capacidade. Isto é, se uma pessoa não puder exprimir sua vontade, seja porque se encontra em situação transitória – por exemplo, embriaguez -, seja porque se encontra em situação permanente – por exemplo, submetido a algum tipo de deficiência psíquica e/ou intelectual severa (esquizofrenia, autismo, mal de Alzheimer), ela será considerada como relativamente incapaz.

Considerando que o tratamento jurídico dado à pessoa com deficiência psíquica e/ou intelectual deve priorizar a busca de uma igualdade substancial e a promoção do respeito à diferença, necessário é compreender como se dará esta função no campo da responsabilidade civil, objeto deste artigo. Para tanto, os conceitos de discernimento, imputabilidade e culpa são fundamentais na busca dos fundamentos da responsabilização do deficiente psíquico  e/ou intelectual.

Discernimento e imputabilidade.

A palavra discernimento tem origem no latim discernere, que significa dividir ou separar. Discernir é conhecer, avaliar, julgar, entender, estabelecer critérios, fazer a distinção entre duas ou mais coisas. O discernimento também pode ser classificado como um juízo que é usado para fazer a distinção entre várias coisas.

No Código Civil – antes do advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência – o termo discernimento era usado para a qualificação do grau de incapacidade de determinada pessoa, conforme o disposto nos artigos 3º e 4º. As que não tinham discernimento eram consideradas como absolutamente incapazes; e as que tinham o discernimento reduzido, consideradas relativamente incapazes. Ou seja, a capacidade de discernir era fundamento jurídico para a atribuição de aptidão para a prática de atos da vida civil. Contudo, com a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, a inaptidão de discernir não pode mais ser considerada como requisito para a constituição de incapacidades, na medida em que houve a revogação dos artigos 3º e 4º, do Código Civil, no que se refere a este parâmetro.

No direito penal, a capacidade de discernir é a medida para a imputabilidade, sendo “isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (artigo 26, do Código Penal). A imputabilidade também é utilizada pelo Direito Civil, mais especificamente pela responsabilidade civil, como elemento de identificação da culpa do causador do dano.

De acordo com Alvino Lima: “culpa é um erro de conduta, moralmente imputável ao agente e que não seria cometido por uma pessoa avisada, em iguais circunstâncias de fato”.22 Através da análise deste conceito da culpa, pode-se perceber que ligado ao significado de responsabilidade se encontram dois elementos: a imputabilidade e a culpabilidade. Uma pessoa só pode responder pelo dano que (i) pode ser imputado a ela (no sentido da capacidade de reconhecimento da ilicitude de seu ato), (ii) que se liga a sua conduta através de um liame de causalidade, e que, ao mesmo tempo, (iii) seja resultado de uma ação inconsequente ou impensada. Daí concluir-se que, na época do liberalismo e do individualismo – período em que foi interpretado e legislado sistematicamente o conteúdo da culpa – “o conceito de   culpa então dominante, a chamada culpa psicológica, era visto unicamente como proveniente da manifestação da vontade (autonomia) do agente, como o nexo psíquico, abstrato, fixo e igual em todos os casos, do qual derivava o juízo moral de condenação ao ofensor”.23

Estas duas noções – culpabilidade e imputabilidade – são, portanto, indispensáveis para o entendimento da atribuição de responsabilidade civil subjetiva no século XIX, período em que reinava o individualismo e a concepção da responsabilidade como consequência da atribuição de autonomia aos indivíduos. Por esta concepção psicológica, pois, a imputabilidade requeria o conhecimento sobre determinada situação juridicamente relevante e a maturidade intelectual suficiente para a percepção do seu potencial danoso. Mas não basta a esta concepção psicológica da culpa o reconhecimento do potencial danoso da conduta. Se junta a esta noção a necessária atuação em contrariedade ao direito. Tanto o primeiro significado – imputabilidade – quanto o segundo – contrariedade – formam, juntos, a base   de sustentação da culpa civil, sendo considerados, respectivamente, seus elementos subjetivo e objetivo.

Em resumo, esta culpa psicológica, também chamada de culpa subjetiva, importa na violação de um dever pré-existente, exigindo-se para sua caracterização o elemento subjetivo da vontade, isto é, a consciência da violação do dever (reprovabilidade social) e a previsibilidade do resultado danoso. Esta concepção clássica da culpa é, no dizer de De Page, a configuração do “individualismo de bom quilate, (d)o liberalismo integral”.24

Sendo assim, se analisarmos o conteúdo clássico da culpa, concluímos que somente aquele que age em falta a um dever genérico de conduta diligente, contrariando o estabelecido socialmente como sendo a conduta esperada daquela pessoa, é que seria obrigado a indenizar  o dano causado. Podemos afirmar, portanto, que para que haja a responsabilidade subjetiva são necessários os seguintes elementos: (i) falha no dever de conduta diligente (culpa lato sensu); (ii) imputabilidade (capacidade de reconhecimento da situação danosa); e (iii) contrariedade ao Direito. Considerava-se essencial pelos codificadores, embebidos na ideologia liberal-individualista, que a noção de culpa estivesse sempre associada a um comportamento objetivamente ilícito – porque contrário à lei – e ao mesmo tempo  moralmente reprovável, no sentido de ser possível ao autor do dano ter a capacidade de reconhecimento de suas ações e de suas potenciais consequências.

A imputabilidade refere-se a um elemento subjetivo de possibilidade concreta de reconhecimento social do ilícito ou do reprovável, independentemente de sua previsão expressa. As noções de maturidade, discernimento e autodeterminação constituem a imputabilidade. A contrariedade ao Direito, enquanto elemento objetivo da noção de culpa, é requisito que deve ser avaliado tanto concretamente, isto é, em relação à violação direta de uma regra (por exemplo, ao cometer um homicídio, tipifica-se a conduta prevista no artigo 121, do Código Penal), como também abstratamente, analisando-se os princípios e valores de determinada sociedade e a sua capacidade de sanção – e, portanto, responsabilização – ou superação – excluindo a responsabilidade – daquela conduta examinada.

A importância da imputabilidade foi se perdendo na nova teoria do Direito de Danos, na medida em que se permite, em inúmeros ordenamentos, inclusive o nosso, a responsabilização do indivíduo incapaz, portanto, inimputável, pelos danos causados a terceiros. Alvino Lima assevera que “no terreno doutrinário inúmeros são os autores que, sob vários fundamentos, proclamam a responsabilidade dos alienados, condenando a apreciação da culpa subjetiva, para atender somente a critérios de equidade, de ordem social, de segurança da vítima, de equilíbrio social, devendo recair sobre o alienado o peso do dano, não porque seja culpado, mas tão-somente porque o problema da responsabilidade civil deve ser encarado como uma simples relação patrimonial regulada pela ideia de concordância entre o fato e o dano”.25

Considerando-se que um dos elementos do conteúdo da conduta culposa – fundamento da responsabilidade civil subjetiva – é a imputabilidade, questiona-se se a pessoa com deficiência psíquica ou intelectual, por não ser mais considerada incapaz, deve ser qualificada como imputável e, portanto, responsável. Como expresso acima, o conceito de imputabilidade se liga a uma avaliação da possibilidade concreta de reconhecimento social do ilícito ou do reprovável.  Primeiramente,  o  conceito  de  imputabilidade  não  impõe  como     fundamento necessário o reconhecimento da capacidade de fato da pessoa. A atribuição pela lei desta capacidade de exercício faz presumir a imputabilidade e o discernimento. Contudo, pense-se numa hipótese de pessoa com deficiência psíquica ou intelectual, considerada legalmente capaz (artigo 6º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência), mas que concretamente não tenha a capacidade de reconhecer a ilicitude ou reprovabilidade de sua conduta, ou seja, é inimputável pelo conceito clássico. Esta pessoa poderia ser considerada inimputável – “irresponsável” -, ainda que capaz civilmente? Acredita-se que não, isto é, a pessoa com deficiência psíquica e/ou intelectual que não possua a plena capacidade de reconhecimento da ilicitude ou reprovabilidade de sua conduta será, ainda assim, responsável por indenizar danos por ela cometidos, na medida em que a atribuição de culpa, fundamento da responsabilidade civil subjetiva no Direito de Danos contemporâneo, requer uma avaliação em abstrato da conduta analisada. Daí a necessidade de investigar o renovado conteúdo da culpa para a atribuição de responsabilidade à pessoa com deficiência, isto é, a consideração de que a culpa não é mais aquela psicológica, subjetiva, mas ao contrário, objetiva e baseada em critérios abstratos de standards de conduta previamente conhecidos.

A culpa como fundamento da responsabilidade civil direta.

A análise do elemento culpa na responsabilidade civil é tida, comumente, como o pilar de sustentação da obrigação de indenizar e a justificativa para a existência de um direito da responsabilidade civil. A responsabilidade é atribuída a quem se conduz com culpa e não poderia imaginar-se, num primeiro momento, que se cominasse a obrigação de reparar o dano a alguém que não o tenha causado por conta de sua falta de diligência.26

Esta noção, tão trivialmente entranhada no senso comum da dogmática civil,  acompanha a evolução – e as revoluções – pelas quais passa o Direito de Danos de tal sorte que se mantém quase intacta, como um valor social que acompanha civilizações e justifica o porquê da responsabilidade.

Mas como toda noção juridicamente relevante, a culpa deve ser analisada de forma relativa e historicamente condicionada. Será a culpa de hoje a mesma consubstanciada no Código Napoleão? Como se deve valorar a negligência: de maneira abstrata, levando-se em conta um padrão abstrato de conduta, ou de acordo com o caso concreto, considerando-se o nível de conhecimento do agente causador do dano e sua conduta específica?  Qual  o standard de diligência razoável que deve ser adotado nas relações sociais – se é que podemos utilizar uma ideia de standard abstrato?

Percebe-se atualmente uma tendência em considerar somente a contrariedade ao Direito como requisito necessário para a configuração da obrigação de indenizar. Assim, quando existir a infração ao Direito, haverá a obrigação de indenizar o dano que daí provenha, não se questionando se a conduta que levou a esta contrariedade foi conscientemente prevista pelo autor   do   dano.       A   este   movimento podemos chamar de  “desculpabilização da responsabilidade civil”27, na medida em que não se busca mais uma análise subjetiva da conduta para se configurar a obrigação de indenizar, mas somente se aquela conduta gerou o dano que se busca reparar, sem qualquer análise a respeito da falha no agir.

Daí surge a concepção de culpa objetiva, aproximando-se a responsabilidade subjetiva cada vez mais de um conceito de análise objetiva.28 Esta segunda concepção da culpa, chamada também de normativa, sustenta-se na noção de erro de conduta, significando dizer que haverá a caracterização da culpa e, portanto, a imputação de responsabilidade toda a vez que for infringido o dever geral de não lesar a outrem (neminem laedere). A culpa é assim o desvio de um padrão esperado de conduta de alguém que age de boa-fé e diligentemente.

Questiona-se se a conduta danosa foi ou não razoável para afastar ou atribuir a obrigação de indenizar. Isto é, se a conduta foi conforme o direito ou não. Neste momento  não se analisa a previsibilidade do dano por parte do agente que o causou, mas realiza-se uma investigação objetiva da conduta: violou-se ou não o standard socialmente adequado de agir?

Note-se que a diferença principal entre estas duas concepções (subjetiva e objetiva) refere-se à análise da ilicitude. Evidentemente, tanto numa quanto noutra vertente teremos caracterizado o ato ilícito, base justificadora da responsabilidade civil por fato culposo. Mas a maneira como se analisa este ato ilícito e, portanto, a caracterização da responsabilidade, é  que se efetiva de forma diversa.  Enquanto pela primeira concepção é necessária a existência  a priori de uma norma a ser violada (seja contratual, seja extracontratual), na medida em que para haver culpa deve haver a violação de um dever preexistente; pela segunda, a culpa estaria caracterizada pela identificação, no caso concreto, da infração à boa-fé ou diligência    padrão, estabelecida de acordo com as circunstâncias típicas e adequadas do caso específico e conforme o que se espera como conduta média, socialmente aceita. 29

A culpa deixa, assim, de ser analisada através desta ótica tradicional, como sendo a omissão de diligência exigida num caso concreto. Pelo contrário, a concepção de culpa na atualidade é caracterizada através de duas hipóteses: 1) condutas antijurídicas realizadas através de uma negligência em sentido lato (hipótese clássica, mas agora utilizada sob a forma de culpa objetiva); ou 2) condutas diligentes e lícitas que geram um resultado danoso que impõem a desaprovação da ação, por ser a conduta socialmente reprovável.30 Tanto uma quanto a outra representam a atual objetivação do conceito da culpa, no sentido de atribuir à investigação deste elemento um aspecto estritamente jurídico, prático, despido de qualquer pretensão de reprovabilidade moral da conduta danosa.

A culpa é, assim, relativizada, de acordo com standards ou parâmetros que serão avaliados dentro de categorias de relações humanas para se configurar a existência ou não   de violação do padrão normal de conduta. A dimensão subjetiva da culpa, contudo, é restringida substancialmente na teoria contemporânea da responsabilidade civil. Questiona-se atualmente se a configuração da culpa necessita de todos esses requisitos expostos e como devem ser analisados. Quanto ao primeiro requisito – falta no dever de conduta – pergunta-se como  deve ser realizada a sua averiguação.

Por muito tempo o critério utilizado era o do homem médio ou do pater bonus familiae (reasonable man da common law). A investigação da conduta culposa, isto é, a investigação sobre se determinado sujeito agiu ou não com culpa, era realizada através da análise de um standard abstrato de conduta averiguado de acordo com o que se imagina ser esperado de  uma pessoa medianamente diligente. Evidentemente este critério, por demais subjetivo, possibilita ao magistrado, ao julgar o caso concreto, decidir com base em parâmetros individuais e referidos à sua formação sócio-cultural, na medida em que não se pode esperar que este conteúdo abstrato da diligência mediana seja eterna e universalmente o mesmo. Por conta disso, este primeiro requisito é reformulado constantemente e até mesmo abandonado em determinados casos.

A tendência, portanto, é a análise da culpa através da chamada “fragmentação  do modelo de conduta”31, levando-se em conta parâmetros diferenciados para cada conduta individualizada, isto é, standards específicos para cada caso concreto analisado. Assim, por exemplo, o erro médico é avaliado não conforme um parâmetro abstrato de conduta, mas através de um standard de condutas médicas adequadas, em que se analisam  os procedimentos adotados pela classe médica, naquela específica atuação (por exemplo, como agiriam outros anestesistas numa mesma situação).32 A culpa passa a ser investigada a partir  de critérios mais objetivos, livrando o magistrado da árdua tarefa de apontar a existência de uma culpa concretamente considerada.

Considerando essa renovada concepção da culpa, pode-se concluir que na investigação da conduta causadora do dano, realizada por pessoa com deficiência psíquica ou intelectual, há uma facilitação na identificação da culpa, na medida em que é levada em conta muito mais a contrariedade ao direito e a violação de standards abstratos de conduta, do que uma investigação psicológica da culpa, que leva necessariamente à avaliação da capacidade de reconhecimento da conduta culposa como potencial causadora do dano. A objetivação da culpa permite que a avaliação da conduta culposa da pessoa com deficiência seja realizada independentemente de uma perspectiva de culpabilidade e imputabilidade clássicas, psicológicas, o que, por sua vez, afasta a antes necessária análise da capacidade de discernimento em concreto.

Contudo, por ser pessoa em condição especifica de vulnerabilidade, questiona-se se esta obrigação de indenizar poderia sofrer algum tipo de limitação. Para realizar esta avaliação, necessário se faz investigar o conceito de vulnerabilidade da pessoa com deficiência psíquica ou intelectual.

Vulnerabilidade da pessoa com deficiência psíquica e/ou intelectual.

Ser vulnerável é apresentar uma determinada condição que gera uma desigualdade de fato entre pessoas que se encontram inseridas nesta “categoria” especial e as que não se encontram nesta situação. O conceito de vulnerabilidade para o direito é utilizado, pelo menos, em dois ramos do Direito que, por sua peculiaridade, impõem um tratamento diferente dado às pessoas que se enquadram nas qualificações determinadas por leis. Estas leis, por sua vez, têm um caráter amplamente protetivo e de tutela jurídica especial. Pense-se na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e no Código de Defesa do Consumidor (CDC), que em seus mais básicos fundamentos, impõem uma tutela protetiva às pessoas que concretamente têm uma característica própria que os qualifica como vulneráveis.33 O trabalhador é vulnerável em relação ao empregador, porque ao ser desprovido dos meios de exploração do trabalho, a ele se subordina por necessidade de subsistência, muitas vezes em situações que são atentatórias a sua própria dignidade. De outro lado, o consumidor, por não possuir conhecimento técnico sobre o produto ou serviço fornecido, nem tampouco o controle sobre os meios de produção, se qualifica como vulnerável por estar em condições não igualitárias de contratação.

Questiona-se se o conceito de vulnerável pode – ou deve – ser utilizado para qualificar as pessoas em condição de deficiência psíquica ou intelectual. Se concretamente a pessoa com deficiência psíquica ou intelectual não é “igual” a uma pessoa sem a deficiência, esta “diferença” justificaria um tratamento também “diferente” pelo Direito? Em outras palavras, deve o Direito considerar a pessoa com deficiência psíquica ou intelectual como vulnerável  do ponto de vista jurídico e dar a ela um tratamento jurídico diverso ao dado às pessoas sem a deficiência psíquica ou intelectual, no sentido de tutelar as diferenças?

Estes questionamentos podem levar a uma resposta que será fundamental para determinar se a responsabilidade civil da pessoa com deficiência psíquica ou intelectual – não mais incapaz civilmente – será estabelecida pela análise de sua conduta culposa e levará a  uma obrigação de indenizar integralmente os danos causados, ou se a responsabilidade civil  da pessoa com deficiência psíquica ou intelectual será baseada no princípio da reparação equitativa e subsidiária que rege a obrigação de indenizar dos incapazes.34

Parece que o enquadramento dos deficientes psíquicos dentro do campo da vulnerabilidade justificaria um tratamento jurídico protetivo, tal como ocorre nas hipóteses de tutela do trabalhador e do consumidor. Mas para qualificar a pessoa com deficiência psíquica ou intelectual como vulnerável é necessário identificar qual o conteúdo jurídico de tal expressão jurídica. Segundo Carlos Nelson Konder, “a vulnerabilidade como categoria  jurídica insere-se em um grupo mais amplo de mecanismos de intervenção reequilibradora do ordenamento, com o objetivo de, para além da igualdade formal, realizar efetivamente uma igualdade substancial”.35 O autor constrói uma diferenciação entre vulnerabilidade  patrimonial – típica da desigualdade contratual – e a vulnerabilidade existencial – relativa a um minus que afeta a personalidade da pessoa. Segundo o autor, a vulnerabilidade existencial

“diferencia-se da vulnerabilidade patrimonial, que se limita a uma posição de inferioridade contratual, na qual o titular fica sob a ameaça de uma lesão basicamente ao seu patrimônio, com efeitos somente indiretos à sua personalidade. Diante disso, a intervenção reequilibradora do ordenamento no caso de vulnerabilidade patrimonial costuma ser viabilizada com recurso aos instrumentos jurídicos tradicionalmente referidos às relações patrimoniais, como a invalidade de disposições negociais e a responsabilidade, com imposição da obrigação de indenizar”.36

A vulnerabilidade existencial imporia a utilização de instrumentos jurídicos de reequilíbrio social, tais como leis de tutela da personalidade e do direito à diferença ou de tratamento diferenciado – como, por exemplo, a adoção de instrumentos de ação afirmativa. Para esses fins, vale lembrar a fórmula conhecida de Boaventura de Sousa Santos, invocada para auxiliar na contextualização do que se entende por vulnerabilidade: “(…) temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”.37

O Estatuto da Pessoa com Deficiência, ao reconhecer a capacidade plena de exercício  de direitos e obrigações por pessoas com deficiência psíquica ou intelectual, realiza uma função de tratamento igualitário de pessoas que são essencialmente diferentes. Ao atribuir capacidade à pessoa com deficiência psíquica ou intelectual, o Estatuto busca proteger a autonomia daquele que antes não era sequer consultado para a tomada de decisões que refletem diretamente em sua personalidade e existência, como por exemplo, direitos reprodutivos e o direito a tratamento médico. No âmbito da proteção e tutela existencial, o Estatuto buscou uma ampliação da autonomia da pessoa com deficiência, cumprindo uma função de promoção da igual dignidade social38, constitucionalmente garantida. Já no âmbito da proteção e tutela dos interesses patrimoniais, o Estatuto pode ter, em algumas situações concretas, diminuído – ou até mesmo excluído – uma proteção que seria recomendada para o alcance de uma igualdade substancial. No que diz respeito à responsabilidade civil, por exemplo, a atribuição de plena capacidade civil impõe, ao mesmo tempo, a tutela da autonomia privada – livre agir – e a consequente imputação integral da obrigação de indenizar. Atribuir autonomia/liberdade representa conferir, na mesma proporção, responsabilidade.

Contudo, pode-se ponderar que responsabilizar a pessoa com deficiência psíquica ou intelectual nos mesmos moldes que se atribui a responsabilidade civil a pessoas que não se encontram nesta mesma situação concreta, seria aplicar de forma equivocada o princípio da igualdade. Isto porque, apesar da atribuição de capacidade civil aos deficientes psíquicos ou intelectuais de forma abstrata, isto é, ampla e genericamente, em concreto, às pessoas com deficiência psíquica ou intelectual falta, em não raras ocasiões, uma plena consciência dos efeitos que seus atos possam causar aos direitos de terceiros – reconhecimento e previsibilidade da conduta danosa. A consideração deste “minus”, por sua vez, caracteriza uma  específica  vulnerabilidade,  de  natureza  existencial.  A  diferença  de desenvolvimento psíquico ou intelectual justificaria uma tutela diferenciada no que diz respeito à obrigação de indenizar que, em último sentido, é calcada na ideia de plena autonomia.

Mas como tutelar de forma diferente pessoas que abstratamente são iguais e que foram “igualadas” por lei com a atribuição de plena capacidade de exercício de direitos e  obrigações? É certo que sendo a pessoa com deficiência psíquica ou intelectual plenamente capaz, ela deverá ser plenamente responsável, aplicando-se no caso, a regra da responsabilidade civil subjetiva, normatizada nos artigos 186 e 927, caput, do Código Civil? Sendo vulnerável – no sentido de apresentar uma determinada condição que gera uma desigualdade concreta – à pessoa capaz com deficiência psíquica ou intelectual poderia ter estabelecida a obrigação de indenizar de maneira proporcional ou mitigada? São estes questionamento que pretende-se explorar a seguir.

A responsabilidade civil da pessoa com deficiência psíquica e/ou intelectual: por uma interpretação sistemática dos artigo 927, caput e 928, parágrafo único, do Código Civil.

Com a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência surge a necessidade de verificar qual o fundamento da obrigação de indenizar os danos causados por pessoas com deficiência psíquica ou intelectual: o artigo 928, do Código Civil – fundamento excepcional da responsabilidade civil do incapaz – , ou o artigo 927, do Código Civil – regra geral de responsabilidade civil subjetiva.

O artigo 928, do Código Civil, trata expressamente da responsabilidade civil do incapaz – situação que, a princípio, não mais se aplica aos deficientes psíquicos ou intelectuais, tendo em vista o disposto nos artigos 6º e 84, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, e a consequente revogação do artigo 3º e modificação da redação do artigo 4º, ambos do Código Civil.

Via de regra, as pessoas que estão sujeitas ao poder familiar, tutela ou curatela são inimputáveis, sendo que por elas respondem civilmente os pais, tutores e curadores, isto é, seus representantes legais, de forma objetiva, conforme os ditames dos artigos 932, II39 e 93340, do Código Civil. Contudo, se as pessoas responsáveis pelo incapaz não tiverem obrigação de indenizar ou não dispuserem de meios suficientes para tal, aplica-se a regra complementar do artigo 928, do Código Civil, imputando-se a obrigação de reparar o dano ao incapaz, de forma subsidiária ao artigo 932, do Código Civil.41  Isto é, a aplicação do artigo 928 será efetivada se não puder ser aplicada a regra dos artigos 932 e 933, que estabelecem as obrigação, independentemente da prova de culpa, aos responsáveis: responde o incapaz somente se o seu responsável – pais, tutores ou curadores – não puder ou não for obrigado a responder. Já a responsabilidade civil do incapaz tem natureza excepcional e fundamenta-se na culpa, ainda que não haja a configuração do elemento subjetivo da imputabilidade – como reconhecimento da conduta anti-jurídica realizada, conforme já ponderado. Segundo Marco Aurélio Bezerra de Melo, para estabelecer a obrigação de indenizar por parte do incapaz,

“(…) o ofendido deverá provar os requisitos genéricos do nexo causal e do dano, além dos específicos, quais sejam: (a) a incapacidade absoluta ou relativa do  ofensor; (b) que o inimputável ofensor, no prisma naturalístico, não tem quem o represente ou que é impossível obter a reparação da pessoa que o representa; (c) que a fixação de eventual indenização não privará o incapaz de uma subsistência digna, respeitando-se a diretriz ética e jurídica que se deve tutelar os interesses dos incapazes, respeitando sua dignidade com absoluto rigor em razão  da vulnerabilidade mais intensa (arts. 1º, 3º e 227 da Constituição da República)”.42

Ainda em relação à caracterização da conduta culposa, Mario Moacyr Porto ensina que:

“O exame ou avaliação das condições físicas e psíquicas do autor do dano – idade, educação, temperamento etc. – vale para informar ou identificar as razões determinantes do seu comportamento anormal, mas não para subtrair da vítima inocente o direito de obter reparação dos prejuízos sofridos em seus interesses juridicamente protegidos. […] Resulta daí que a conduta do agente deverá ser apreciada in abstracto, em face das circunstâncias ‘externas’, objetivas, e não em conformidade   com   a   sua   individualidade   ‘interna’,   subjetiva.   Se   um   dano é ‘objetivamente ilícito’, é ressarcível, pouco importando que o seu agente seja inimputável. A culpa – nunca é demais repetir – é noção social, pois o objetivo não é descobrir um culpado, mas assegurar a reparação de um prejuízo”.43

Em relação à natureza da obrigação de indenizar – se solidária ou subsidiária relativamente aos responsáveis do incapaz –, apesar da regra do parágrafo único do artigo  942, do Código Civil, estabelecer que “são solidariamente responsáveis com os autores os co- autores e as pessoas designadas no art. 932”, quais sejam, os incapazes e aqueles que por ele respondem, a regra do artigo 928 e parágrafo único, do Código Civil, remete a uma responsabilidade subsidiária. Tem-se que uma leitura sistemática destas normas leva à conclusão de que por tratar-se de situação excepcional deve ser considerada primeiro a regra da responsabilidade indireta de pais, tutores e curadores, para na sua impossibilidade, atingir o patrimônio do incapaz, de forma equitativa.44

Quanto aos deficientes psíquicos ou intelectuais, capazes (artigos 6º e 84, do Estatuto da Pessoa com Deficiência) e, portanto, imputáveis, na medida em que podem atuar no âmbito civil, nã há a necessidade de qualquer intervenção na sua autonomia. Em não havendo responsáveis pela pessoa capaz com deficiência psíquica ou intelectual, esta responde direta e integralmente pelos danos a que der causa, e não mais subsidiariamente, com base na regra geral de responsabilidade subjetiva prevista no caput do artigo 927, do Código Civil. Já os deficientes psíquicos ou intelctuais, relativamente incapazes, serão responsáveis pelos danos que causarem, subsidiariamente e com base na regra equitativa do parágrafo único, do artigo 928, do Código Civil, com o objetivo de proteger a subsistência e manutenção do incapaz.

Apesar das críticas recebidas por parte da doutrina à admissão de responsabilidade civil do incapaz45, o caráter equitativo de tal regra é evidente, na medida em que se permite reparar a vítima do dano causado de forma a resguardar não só aquele que sofreu o dano – com a devida indenização – mas também conservar os meios de subsistência do incapaz de forma a não privá-lo de seu sustento. Trata-se de uma regra que busca o equilíbrio entre a indenização do dano injusto sofrido e a preservação da dignidade do incapaz, reconhecidamente vulnerável.

Esta indenização será equitativa, em expressa exceção ao princípio da reparação integral (art. 944, do Código Civil46), como forma de possibilitar a proteção da pessoa incapaz em sua especial situação de vulnerabilidade. De acordo com o enunciado 39, das Jornadas de Direito Civil do STJ, “a impossibilidade de privação do necessário à pessoa, prevista no art. 928, traduz  um  dever  de  indenização  equitativa,  informado  pelo  princípio  constitucional     da proteção  à  dignidade  da  pessoa  humana.  Como  consequência,  também  os  pais,  tutores e curadores serão beneficiados pelo limite humanitário do dever de indenizar, de modo que a passagem ao patrimônio do incapaz se dará não quando esgotados todos os recursos do responsável, mas se reduzidos estes ao montante necessário à manutenção de sua dignidade”.

Em resumo, a aplicação do artigo 927, do Código Civil, aos casos de danos cometidos por pessoa com deficiência psíquica ou intelectual, capaz, implicaria em sua  responsabilização direta e integral, levando-a a indenizar os danos de forma idêntica a uma pessoa sem qualquer deficiência psíquica ou intelectual, não sendo a ela aplicada os benefícios da subsidiariedade e da equitatividade na reparação. Quando a pessoa com deficiência psíquica ou intelectual não tiver possibilidade de exprimir sua vontade, ou seja,  for considerada relativamente incapaz, com base na redação dada ao artigo 4º, III, do Código Civil, o artigo 928 deverá ser aplicado e será responsabilizada de forma subsidiária a seus responsáveis e de maneira equitativa.

Em complementação, e considerando que, apesar de capaz, a pessoa com deficiência psíquica ou intelectual é vulnerável, conforme afirmado em item acima, sustenta-se a possibilidade de atribuir-lhe diretamente a obrigação de indenizar por fato próprio (artigo 927, do Código Civil), sendo a quantificação do dano ponderada de forma equitativa (parágrafo único, do artigo 928, do Código Civil), com fins de permitir a plena proteção da dignidade da pessoa com deficiência. Considerar o deficiente psíquico ou intelectual como vulnerável é medida que não diminui a sua capacidade, mas promove a teleologia do Estatuto da Pessoa com Deficiência, qual seja, a de proteção de sua dignidade social e da igualdade substancial, tônica da nova legislação.

Conclui-se que, apesar de fundamentos distintos na aplicação das regras dos artigo 927  e 928, do Código Civil, o resultado prático será semelhante, na medida em que tanto no caso do deficiente capaz, quanto no do deficiente relativamente incapaz, haverá atribuição de responsabilidade civil por fato próprio, fundamentada na culpa – analisada de forma objetiva, isto é, abstratamente – e com indenização equitativamente alcançada, para fins de proteção e tutela da pessoa vulnerável. O ponto diferencial será a natureza subsidiária da responsabilidade civil do incapaz.

Perceba-se que a presunção será a de que a pessoa com deficiência psíquica é plenamente capaz e, portanto, responderá direta e integralmente pelo dano causado. A prova de que o deficiente não pode manifestar a sua vontade – e por este motivo será considerado relativamente incapaz – deverá ser realizada pela pessoa com deficiência, ré da ação indenizatória, como forma de permitir a atração da regra do artigo 928, do Código Civil, a possibilitar não só a redução equitativa da indenização devida, mas também a aplicação da subsidiariedade de sua responsabilidade, prevista expressamente no parágrafo único desta norma.

Conclusão

I. A pessoa portadora de deficiência psíquica e/ou intelectual é presumida e plenamente capaz de fato, de acordo com os artigos 6º e 84, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, seguindo orientação já consolidada na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU.

II. Em consequência, às pessoas com deficiência psíquica e/ou intelectual é atribuída plena autonomia para o exercício de situações jurídicas subjetivas, tanto de natureza existencial quanto patrimonial.

III. Considerando a plena capacidade da pessoa com deficiência psíquica ou intelectual – com a revogação de parte dos artigos 3º e 4º do Código Civil – há a presunção de discernimento e imputabilidade dessas pessoas que se encontram nesta específica condição.

IV. As pessoas com deficiência psíquica e/ou intelectual são imputáveis, na medida em que é atribuída plena capacidade, sendo, portanto, responsáveis por atos causadores de danos. A imputabilidade é consequência direta da atribuição de autonomia.

V. Contudo, serão consideradas relativamente incapazes as pessoas com deficiência psíquica ou intelectual que não possam exprimir ou manifestar sua vontade, conforme o disposto no artigo 4º, III, do Código Civil.

VI. A pessoa portadora de deficiência psíquica ou intelectual, seja capaz, seja relativamente incapaz, é responsável pelos danos que causar, baseando-se esta obrigação de indenizar na análise da culpa.

VII. A culpa, elemento para a atribuição de responsabilidade, deve ser analisada de forma objetiva, isto é, considerando standards de conduta avaliados de maneira abstrata, sendo que a culpa subjetiva, psicológica, deve ser afastada para fins de atribuição de responsabilidade à pessoa com deficiência psíquica ou intelectual.

VIII. A responsabilidade civil da pessoa com deficiência psíquica ou intelectual e impossibilitada de manifestar sua vontade (artigo 4º, III, CC) será analisada com base no artigo 928, do Código Civil. A responsabilidade do deficiente psíquico ou intelectual relativamente incapaz será estabelecida de forma subsidiária a de seus responsáveis, e determinada de forma equitativa.

IX. A responsabilidade civil da pessoa com deficiência psíquica ou intelectual, capaz, será baseada nos artigos 186 e 927, do Código Civil, respondendo o deficiente por culpa.

X. A principal, senão única diferenciação entre os dois tipos de responsabilidade – a do artigo 927 e a do artigo 928, do Código Civil – refere-se à subsidiariedade da obrigação de indenizar. Na primeira hipótese – responsabilidade do deficiente capaz – haverá obrigação de indenizar de forma direta. No segundo caso – responsabilidade do deficiente relativamente incapaz – haverá a obrigação de indenizar de forma subsidiária.

XI. Ainda que o artigo 944, do Código Civil estabeleça o princípio da reparação integral, considera-se que o deficiente psíquico ou intelectual plenamente capaz pode ter a obrigação de indenizar equitativamente reduzida, fundamentando-se na sua característica de vulnerabilidade.

XII. A qualificação da pessoa com deficiência psíquica ou intelectual como pessoa vulnerável é justificada pela necessidade de tutela e promoção da sua dignidade e da sua igual dignidade social, o que importa no respeito às diferenças e na efetivação do princípio da igualdade substancial.


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Notas

1 De acordo com o site http://www.cid10.com.br/, “a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, frequentemente designada pela sigla CID (em inglês: International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems – ICD) fornece códigos relativos à classificação de doenças e de uma grande variedade de sinais, sintomas, aspectos anormais, queixas, circunstâncias  sociais  e  causas  externas  para  ferimentos  ou  doenças”.  Consultado  em:  29.03.2016. Na classificação CID10, o transtorno delirante persistente é encontrado sob o código F22. Este tipo de transtorno é caracterizado pela ocorrência de uma ideia delirante única ou de um conjunto de ideias delirantes aparentadas, em geral persistentes e que por vezes permanecem durante o resto da vida. O conteúdo da ideia ou das ideias delirantes é muito variável. Neste  sentido, ver: http://www.psiqweb.med.br/site/DefaultLimpo.aspx?area=ES/VerClassificacoes&idZClassificacoes=399. Consultado em 13.04.2016.
2 Texto inspirado e adaptado da decisão proferida pelo TJSP, 10a. Câmara de Direito Privado, AC. 2013.0000250307, Rel. Des. Carlos Alberto Garbi, j. 30.04.2013.
3  BODIN MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 21.
4 DÍEZ-PICAZO, Luiz. Derecho de daños. Madrid: Civitas, 1999, p. 85.
5  GOMES, Orlando. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. In: DI FRANCESCO, J. R. P.   (Org.). Estudos em homenagem ao professor Sílvio Rodrigues. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 296.
6 O dano injusto constitui uma cláusula geral, através da qual os aplicadores do direito – mais especificamente, os juízes – concretizam as situações de dano ressarcível, analisando não mais a conduta culposa como parâmetro de identificação do ilícito, mas agora a concreta violação do dever de não lesar, criando assim a possibilidade da atipicidade dos atos ilícitos e ampliação das hipóteses de reparação. Rodotà afirma que “(…) l’aver posto in diretta relazione danno ed ingiustizia fa passare in primo piano il fatto obiettivo della lesione, danno così forma tecnica al ricordato spostamento di attenzione dall’agente alla vittima; e si risolve in un più generale processo di obiettivizzazione del dato in rapporto al quale va pronunciato il giudizio di responsabilità”. RODOTÀ,  Stefano. Il problema della responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1967, p. 107-108. (Trad.: “(…) o estabelecimento de uma relação direta entre dano e injustiça passou o fato objetivo da lesão para o primeiro plano, dando, assim, uma aparência técnica à referida transferência de atenção do agente para a vítima; e se resolve em um processo mais geral de objetivação do fato com relação ao qual se pronuncia o juízo de responsabilidade”).
7 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana.  Op. cit., p. 180.
8 O princípio da solidariedade social é trazido ao nosso ordenamento por meio do artigo 3º, I e III, da Constituição Federal, que enumeram dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a erradicação da pobreza e da marginalização social, por meio da redução das desigualdades sociais e regionais. Segundo Maria Celina Bodin de Moraes, “a expressa referência à solidariedade, feita pelo legislador constituinte, longe de representar um vago programa político   ou algum tipo de retoricismo, estabelece em nosso ordenamento um princípio jurídico inovador, a ser levado em contanão só no momento da elaboração da legislação ordinária e na execução de políticas públicas, mas também nos momentos de interpretação e aplicação do direito, por seus operadores e demais destinatários, isto é, por todos os membros da sociedade”. BODIN DE MORAES, Maria Celina. “O princípio da solidariedade social”,  In: Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional, Rio de Janeiro:Renovar, 2010, ps. 239-240.
9 Sobre o chamado Direito Civil Constitucional, Maria Celina Bodin de Moraes ensina que “(…) as normas do direito  civil  necessitam  ser  interpretadas  como  reflexo  das  normas  constitucionais.  A  regulamentação    da atividade privada (porque regulamentação da vida cotidiana) deve ser, em todos os seus momentos, expressão da indubitável opção constitucional de privilegiar a dignidade da pessoa humana”. BODIN DE MORAES, Maria Celina, “A caminho de um direito civil constitucional”, In: Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional, Rio de Janeiro:Renovar, 2010, p. 15. Neste mesmo sentido, ver passim, TEPEDINO, Gustavo. “Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil”. In: Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
10 Para Maria Celina Bodin de Moraes, “o substrato material da dignidade (…) pode ser desdobrado em quatro postulados: i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência de outros como sujeitos iguais a ele; ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade livre, de  autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado. São corolários desta elaboração os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral – psicofísica –, da liberdade e da solidariedade”. BODIN DE MORAES, Maria Celina, “O princípio da dignidade da pessoa humana”, In: Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.
11 A convenção foi aprovada por meio do Decreto n.186/2008, com quórum qualificado de três quintos, nas duas casas do Congresso Nacional, em dois turnos, conforme instrui o art.5º, §3º, da Constituição Federal, alcançando
desta forma o status de norma constitucional. Ver sobre a Convenção, MENEZES, Joyceane Bezerra de. O direito protetivo no Brasil após a convenção sobre a proteção da pessoa com deficiência: impactos do novo CPC e do estatuto da pessoa com deficiência. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 4, n. 1, jan.- jun./2015. Disponível em: 22.03.2016, p. 3.
12 Artigo 186, do Código Civil: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
13 Artigo 927, do Código Civil: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.
14 Artigo 928, do Código Civil: “O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis  não tiverem obrigação  de  fazê-lo  ou não dispuserem de  meios  suficientes. Parágrafo  único.   A indenização prevista neste artigo, que deverá ser equitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem”.
15 Sobre o chamado “direito à diferença”, ensina Maria Celina Bodin de Moraes que “esta ideia parte do  princípio de que, em lugar de se reivindicar uma “identidade humana comum”, é preciso que sejam contempladas, desde sempre, as diferenças existentes entre as pessoas, evidência empírica facilmente comprovada: os homens não são iguais entre si (…)”.BODIN DE MORAES, Maria Celina, “O princípio da dignidade da pessoa humana”, In: Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 88.
16 Para demais conceitos sobre deficiência intelectual, ver: https://aaidd.org/intellectual- disability/definition#.VvLOJ_krKUm. Consultado em 23.03.2016.
17 Artigo 123, do Estatuto da Pessoa com Deficiência: “Revogam-se os seguintes dispositivos:  II – os incisos I,  II e III do art. 3º da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002”.
18 MENEZES, Joyceane Bezerra de. O direito protetivo no Brasil após a convenção sobre a proteção da pessoa com deficiência: impactos do novo CPC e do estatuto da pessoa com deficiência. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 4, n. 1, jan.- jun./2015. Disponível em: 22.03.2016, p. 7.
19 Confira: http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/viversemlimite/perguntas-respostas. Consultado em 29.03.2016.
20 Ver sobre o tema da autonomia existencial, MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.
21 Artigo 4º, do Código Civil: “São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: III – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade”.
22 LIMA, Alvino.Culpa e risco. 2. ed. – atualizada por Ovídio Rocha Barros. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 69.
23 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana. Op. cit., p. 208.
24 DE PAGE, Henri. Traité élementaire de droit civil belge. t. II, 1934, n. 930, Apud LIMA, Alvino. Culpa e risco. Op. cit., p. 70.
25  LIMA, Alvino. Culpa e risco. Op. cit., p. 156.  O Código Civil brasileiro adota a responsabilidade do   incapaz como espécie de responsabilidade subsidiária no artigo 928 (“o incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem a obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes”).
26 Os contratualistas do século XVIII cunharam esta concepção. Fundamentada na ideologia liberal, entende-se que somente pode ser imputada a obrigação de indenizar àquele que com sua ação consciente  e  culposa (derivada da atribuição de autonomia da vontade) causou danos a terceiros. Podemos destacar, dentre muitos, DOMAT, Les lois civiles dans leur ordre naturel. Livro II, Tit. VIII, Sect. IV, p. 153, Paris, 1776 (Apud SILVA PEREIRA, Caio Mário. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 6ª ed., 1995, p. 6); POTHIER, Robert J. Tratado das obrigações.  Campinas: Servanda, 2002, pp. 139 e seguintes.
27 Jhering, considerado um dos ferrenhos defensores da culpa, afirmava que “a história da ideia da culpa se resume em sua abolição constante”. Apud MELO DA SILVA, Wilson. Responsabilidade sem culpa e socialização dos riscos. São Paulo: Saraiva, 1974, p. 22.
28 O conceito de culpa objetiva foi defendido bravamente pelos irmãos Mazeaud que sustentavam que a análise da culpa deveria se dar através de um standard abstrato, sem se levar em conta as condições subjetivas do autor do dano, nem seu estado de consciência, na medida em que esta investigação “subjetiva” da culpa significaria, em última instância, a individualização e concretização de sua análise. Por esta teoria, pouco importa o elemento da imputabilidade moral e o estado de ânimo e psicológico do agente para a configuração da culpa, na medida em que haverá a obrigação de indenizar se houver o desvio do padrão médio de conduta, independentemente do agente ser ou não imputável moralmente, isto é, ter ou não a consciência da previsível danosidade de sua conduta.  Para maiores detalhes sobre a teoria da culpa objetiva, ver, por todos, LIMA, Alvino. Culpa e risco.  Op. cit., ps. 61-68.
29  Ibid., p. 60.
30 DÍEZ-PICAZO, Luiz. Derecho de daños. Op. cit., p. 28.
31 SCHREIBER, Anderson. Novas tendências da responsabilidade civil brasileira. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro. n. 22, jul./set. 2005, p. 52.
32  Sobre a responsabilidade médica, ver, por todos, BARBOZA, Heloísa Helena.  Responsabilidade civil médica  no Brasil. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro. v.5. n.19. pp.49-64. jul./set. 2004.
33 De acordo com Maria Celina Bodin de Moraes, “(num) ambiente, de renovado humanismo, a vulnerabilidade humana será tutelada, prioritariamente, onde quer que se manifeste. Terão precedência os direitos e as prerrogativas de determinados grupos considerados, de uma maneira ou de outra, frágeis e que estão a exigir, por conseguinte, a especial proteção da lei. Nestes casos estão as crianças, os adolescentes, os idosos, os portadores de deficiências físicas e mentais, os não-proprietários, os consumidores, os contratantes em situação de inferioridade, as vítimas de acidentes anônimos e de atentados a direitos da personalidade, os membros da família, os membros de minorias, entre outros”. BODIN DE MORAES, Maria Celina, “O princípio da dignidade da pessoa humana”, In: Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 84.
34 Ver artigo 928 e parágrafo único, do Código Civil.
35 KONDER, Carlos Nelson. Vulnerabilidade patrimonial e vulnerabilidade existencial: por um sistema diferenciador. Revista de Direito do Consumidor, vol. 99, Mai – Jun / 2015, p. 102.
36 Idem, idem. P. 107.
37 SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 56.
38 Segundo Pietro Perlingieri, a noção de igual dignidade social é “instrumento que “confere a cada um o direito ao ‘respeito’ inerente à qualidade de homem, assim como a pretensão de ser colocado em condições idôneas a exercer as próprias aptidões pessoais, assumindo a posição a estas correspondentes”. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. 2ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 37.
39 Artigo 932, do Código Civil: “São também responsáveis pela reparação civil: II – o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições”.
40 Artigo 933, do Código Civil: “As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos”.
41  Ver, neste sentido, decisão do Recurso Especial 1.101.324-RJ, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado  em 13/10/2015, no qual se entendeu que “os pais de portador de esquizofrenia paranoide que seja solteiro, maior de idade e more sozinho temresponsabilidade civil pelos danos causados durante os recorrentes surtos agressivos de seu filho, no caso em que eles, plenamente cientes dessa situação, tenham sido omissos na adoção de quaisquer medidas com o propósito de evitar a repetição desses fatos, deixando de tomar qualquer atitude para interditá-lo ou mantê-lo sob sua guarda e companhia” (…). Dessa forma, ao portador de esquizofrenia paranoide que comumente tem surtos psicóticos é aplicável a expressão “maiores incapazes”, no sentido de não estar apto a praticar, sozinho e indistintamente, todo e qualquer ato da vida civil em todos os momentos. Isso porque o esquizofrênico que sofra, reincidentemente, surtos psicóticos e pratique atos agressivos – como no caso em análise – é, realmente, incapacitado, total ou parcialmente, para a prática de atos da vida civil, mesmo que não oficialmente interditado, demandando cuidados especiais por parte daqueles que estão cientes do problema psiquiátrico, cuja obrigação decorre da lei e da relação de parentesco – genitores, cônjuge, companheiro, filhos etc. -, tudo para proteger o doente e terceiros. Ele deve ser enquadrado, no mínimo, como relativamente incapaz, nos termos do art. 4º, II, do CC (segundo o qual são relativamente incapazes “os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido”), tendo em vista que possui momentos intercalados de sanidade, sendo-lhe possível, em tese, praticar atos da vida civil, até mesmo desacompanhado, durante os períodos de lucidez. Ademais, dependendo do grau de evolução da doença mental, poderá o enfermo ficar impossibilitado, total e permanentemente, de praticar sozinho quaisquer atos da vida civil, passando a se qualificar como absolutamente incapaz, a teor do disposto no art. 3º, II, do CC (de acordo com o qual são absolutamente incapazes “os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos”). Além do mais, no tocante à possibilidade de o genitor estar sujeito a indenizar os danos causados pelo filho maior incapaz, interpretando sistematicamente o art. 932, I e II, do CC com as normas que disciplinam as obrigações dos pais em relação aos filhos, tem-se que os trechos a) “estiverem sob sua autoridade e em sua companhia” e b) “curatelados, que se acharem nas mesmas condições” são aplicáveis, também, aos casos em que os pais – seja com o propósito de isentar-se deresponsabilidades, seja por simples omissão quanto aos deveres de guardar, proteger, vigiar e educar – deixam de impor sua autoridade sobre os maiores reconhecidamente incapazes, de trazê-los para junto de si, de interditá-los e de assumir, oficialmente, o papel de curador quando deveriam tê-lo feito por força das circunstâncias e da lei. Nesse caso, a obrigação dos genitores não depende de interdição judicial, decorrendo de uma situação de fato, qual seja, a sabida deficiência mental instalada. Além disso, dispõe o art. 942 do CC que “Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação. Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os coautores e as pessoas  designadas no art. 932”. Diante disso, como, no caso aqui analisado, caberia aos genitores tomar cuidados para, ao menos, tentar evitar que seu filho, portador de esquizofrenia paranoide, cometesse agressões contra terceiros – tratando-se, inclusive, de diligência recomendada como forma de protegê-lo de revides -, revela-se flagrante a omissão da mãe no cumprimento das suas obrigações como genitora do incapaz, o que a obriga a indenizar os danos causados pelo seu filho”.
42 Bezerra de Melo, Marco Aurélio. Curso de Direito Civil, volume IV. Responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2015, pp. 60 e 61.
43 PORTO, Mário Moacyr, “O caso da culpa como fundamento da responsabilidade civil”, In: Doutrinas Essenciais, coor. Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. I, p. 50.
44 Historicamente, as raízes do princípio da equidade se encontram na filosofia clássica aristotélica. Aristóteles entendia por eqüidade a expressão do justo natural  . Para o filósofo grego, equidade seria a expressão da  justiça individualizada em relação ao caso particular. A lei, necessariamente desenvolvida em termos gerais, não  poderia abarcar todas as hipóteses sociais em que seria possivelmente aplicável, devendo, portanto, o juiz atuar de forma a “fazer justiça ao caso concreto”, através de uma interpretação da lei nos termos de efetivar a real intenção do legislador. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, Livro V, Capítulo 5.5.
45 Veja-se, neste sentido, STOCCO, Rui, Tratado de responsabilidade civil. Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, tomo I, p. 1049.
46 Artigo 944, do Código Civil: “A indenização mede-se pela extensão do dano”.

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