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Registro facultativo da união estável

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Registro facultativo da união estável no Registro Civil das Pessoas Naturais: como ficou após a Lei n. 14.382/2022

CASAMENTO

LEI N. 14.382/2022

REGISTRO CIVIL

REGISTRO FACULTATIVO DA UNIÃO ESTÁVEL

UNIÃO ESTÁVEL

Flávio Tartuce
Flávio Tartuce

22/09/2022

Trataremos, neste artigo, do registro facultativo da união estável no Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN) após o advento da Lei n. 14.382/2022, conhecida como Lei do SERP (Sistema Eletrônico de Registros Públicos).

Transcrevemos, desde logo, o art. 94-A da LRP, introduzido pela Lei do SERP, por ser o foco principal do assunto deste texto: 

“Art. 94-A. Os registros das sentenças declaratórias de reconhecimento e dissolução, bem como dos termos declaratórios formalizados perante o oficial de registro civil e das escrituras públicas declaratórias e dos distratos que envolvam união estável, serão feitos no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que os companheiros têm ou tiveram sua última residência, e dele deverão constar:     (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

I – data do registro;       (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

II – nome, estado civil, data de nascimento, profissão, CPF e residência dos companheiros;       (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

III – nome dos pais dos companheiros;       (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

IV – data e cartório em que foram registrados os nascimentos das partes, seus casamentos e uniões estáveis anteriores, bem como os óbitos de seus outros cônjuges ou companheiros, quando houver;     (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

V – data da sentença, trânsito em julgado da sentença e vara e nome do juiz que a proferiu, quando for o caso;      (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

VI – data da escritura pública, mencionados o livro, a página e o tabelionato onde foi lavrado o ato;     (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

VII – regime de bens dos companheiros;      (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

VIII – nome que os companheiros passam a ter em virtude da união estável.       (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

  • 1º Não poderá ser promovido o registro, no Livro E, de união estável de pessoas casadas, ainda que separadas de fato, exceto se separadas judicialmente ou extrajudicialmente, ou se a declaração da união estável decorrer de sentença judicial transitada em julgado.       (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)
  • 2º As sentenças estrangeiras de reconhecimento de união estável, os termos extrajudiciais, os instrumentos particulares ou escrituras públicas declaratórias de união estável, bem como os respectivos distratos, lavrados no exterior, nos quais ao menos um dos companheiros seja brasileiro, poderão ser levados a registro no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que qualquer dos companheiros tem ou tenha tido sua última residência no território nacional.       (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)
  • 3º Para fins de registro, as sentenças estrangeiras de reconhecimento de união estável, os termos extrajudiciais, os instrumentos particulares ou escrituras públicas declaratórias de união estável, bem como os respectivos distratos, lavrados no exterior, deverão ser devidamente legalizados ou apostilados e acompanhados de tradução juramentada.     (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)”. 

Natureza declaratória e facultativa do registro da união estável

A união estável é uma situação de fato com efeitos jurídico. Constitui-se com a presença dos requisitos legais fáticos do art. 1.723 do CC, sendo marcada por uma informalidade na convivência more uxorio do casal.

Essa característica de informalidade acaba gerando dificuldades operacionais práticas aos conviventes, especialmente para comprovar essa situação fático-jurídica perante entidades públicas e privadas para diversos efeitos. Citamos, como exemplos, as dificuldades para inserir o companheiro como dependente em plano de saúde ou em entidade previdenciária. 

Com o objetivo de atenuar essas dificuldades, mesmo sem previsão legal expressa, o Provimento n. 37/2014 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) havia autorizado o registro facultativo da sentença ou da escritura pública declaratória de união estável no Livro “E” do 1º RCPN do domicílio dos companheiros (art. 33, parágrafo único, da Lei de Registros Públicos – Lei n. 6.015/1973).

Esse registro não desfrutava de eficácia constitutiva, porque a constituição da união estável dá-se com a mera presença dos requisitos fáticos do art. 1.723 do CC. A eficácia do registro era apenas declaratória e prestava-se, na prática, a reduzir as dificuldades operacionais dos companheiros em provar a união estável perante terceiros.

O art. 94-A da LRP, introduzido pela Lei do SERP (Lei n. 14.382/2022), finalmente positiva em lei federal o que era permitido no supracitado ato infralegal do CNJ. Mas o faz com alguns ajustes adicionais, o que, inclusive, exigirá que o referido ato do CNJ venha a ser atualizado, na nossa opinião.

À luz da leitura sistemática dos arts. 33, parágrafo único, e 94-A da LRP com os arts. 1.723 e seguintes do Código Civil, podemos descrever o procedimento de registro da união estável. Houve lapsos cometidos pelo legislador do ponto de vista da técnica da redação legislativa, os quais podem ser contornados por meio da interpretação sistemática ora defendida.

Os companheiros têm a faculdade, e não um dever jurídico, de registrarem união estável no Livro “E” do 1º Ofício do RCPN. O motivo é que a união estável se constitui com a presença dos mencionados requisitos fáticos do art. 1.723 do CC e se extingue com o desaparecimento desses mesmos elementos, quais sejam a presença de uma relação pública – notória -, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. O registro lato sensu, portanto, é apenas declaratório. Nesse ponto, a redação do caput do art. 94-A da LRP foi atécnica por não deixar clara essa facultatividade, o que conduz o jurista a ter de lançar mão de uma interpretação sistemática com o art. 1.723 do CC.

Qualificação registral: impedimentos matrimoniais, causas suspensivas ou outros obstáculos

Os efeitos jurídicos do casamento devem ser estendidos à união estável, salvo naquilo que for incompatível em razão da natureza informal da união estável. Trata-se de um relativo paralelismo jurídico entre o casamento e a união estável. Essa é a diretriz do nosso ordenamento, à luz da jurisprudência e da doutrina brasileira. A esse propósito, destacamos o Enunciado n. 641, aprovado na VIII Jornada de Direito Civil, que traz a necessidade de diferenciação dos institutos em suas regras de formalidade ou solenidade: “a decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil não importa equiparação absoluta entre o casamento e a união estável. Estendem-se à união estável apenas as regras aplicáveis ao casamento que tenham por fundamento a solidariedade familiar. Por outro lado, é constitucional a distinção entre os regimes, quando baseada na solenidade do ato jurídico que funda o casamento, ausente na união estável”.

Por esse motivo, cabe ao RCPN, na qualificação registral do título declaratório de existência de união estável, avaliar se o casal incorre ou não em algum impedimento matrimonial, causa suspensiva ou outro obstáculo ao casamento, observadas as particularidades da união estável. Se houver impedimento matrimonial, o oficial deve negar o registro da união estável. Porém, existem duas ressalvas que merecem ser aqui destacadas. 

A primeira ressalva é para o caso de impedimento matrimonial ser o fato de um dos companheiros ser casado (art. 1.521, inc. VI, do CC[2]). Nessa hipótese, é preciso lembrar que esse impedimento não inviabilizará a caracterização da união estável na hipótese de esse companheiro casado estar separado de fato (art. 1.723, § 1º, CC)[1]. Todavia, como o registro público envolve uma situação de formalidade, o registro facultativo da união estável de pessoa casada só poderá ocorrer se ela estiver “formalmente” separada, seja por meio de uma separação judicial, seja por intermédio de uma separação extrajudicial, tudo devidamente averbado no assento de casamento. Mera separação de fato (sem a devida formalização) impede o registro facultativo. Por essa razão, o § 1º do art. 94-A da LRP autoriza o registro da união estável mesmo se qualquer dos companheiros for casado, desde que a separação esteja devidamente formalizada. Entendemos que, para efeitos de comprovação da separação judicial ou extrajudicial, é necessário comprovar que ela foi averbada no assento de casamento.

A segunda ressalva é que, nada obstante a existência de algum impedimento matrimonial, pode ocorrer de um juiz reconhecer a união estável. Por exemplo, um juiz reconhece a união estável entre um genro e uma sogra, apesar de tal situação ser considerada um impedimento patrimonial à luz de uma interpretação literal do art. 1.521, inc. II, CC. Nessa ilustração hipotética, o juiz pode ter adotado alguma interpretação teleológica ou ter seguido outro caminho argumentativo no caso concreto. Nessa situação, é forçoso respeitar a autoridade jurisdicional. Nenhum impedimento matrimonial eventualmente existente antes da data da sentença pode ser invocado como obstáculo à união estável, em respeito à autoridade da coisa julgada. 

Não há obrigatoriedade de a sentença ser expressa acerca do afastamento de eventual impedimento matrimonial, seja porque a coisa julgada recai sobre a parte dispositiva da sentença, seja porque a coisa julgada goza de eficácia preclusiva e, assim, faz presumir repelidas qualquer argumento de mérito em contrário (arts. 504 ao 508 do CPC/2015). Somente fatos supervenientes à sentença poderiam ser considerados não alcançados por ela, pois a coisa julgada limita-se ao cenário fático de sua época.

Por isso, entendemos ser cabível o registro da união estável com base em sentença que tenha declarado a existência de uma união estável. É vedado ao oficial recusar-se a esse registro a pretexto da existência de impedimento matrimonial nascido antes da data da sentença. A recusa só poderia ocorrer se o impedimento matrimonial tivesse surgido após a data da sentença declaratória. Imagine, por exemplo, que, após a sentença, um dos companheiros tenha casado com outrem. Nesse caso, não terão os companheiros o direito ao registro da união estável com base na sentença declaratória, pois, após a prolação dessa, surgiu um impedimento matrimonial. Essa é a inteligência do art. 94-A, § 1º, parte final, da Lei de Registros Públicos. 

Em havendo causa suspensiva do casamento, em uma das situações descritas no art. 1.523 do Código Civil, o registro da união estável poderá ser feito, com uma advertência, qual seja a de que o regime de bens necessariamente será o da separação legal ou obrigatória de bens (arts. 1.641, inc. I, e 1.723 do CC)[3]. Vale pontuar que a jurisprudência superior tem entendido pela aplicação do art. 1.523 do Código Civil também para a união estável. Nesse sentido: “a hipótese em que ainda não se decidiu sobre a partilha de bens do casamento anterior de convivente, é obrigatória a adoção do regime da separação de bens na união estável, como é feito no matrimônio, com aplicação do disposto no inciso III do art. 1.523 c/c 1.641, I, do CC/02. (…). Determinando a Constituição Federal (art. 226, § 3º) que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, não se pode admitir uma situação em que o legislador, para o matrimônio, entendeu por bem estabelecer uma restrição e não aplicá-la também para a união estável” (STJ, REsp n. 1.616.207/RJ, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 17/11/2020, DJe de 20/11/2020). 

Acresça-se que, se o registrador identificar outro óbice jurídico que comprometa a validade ou a eficácia da união estável, cabe-lhe negar o registro. Por exemplo, se um dos companheiros tiver quatorze anos de idade, seria vedada a caracterização de união estável, tendo em vista que a proibição de casamento infantil – o que envolve menor de 16 anos, nos termos do art. 1.520 do Código Civil -, seria extensível à união estável. A exceção é para o caso de o título ser uma sentença judicial declaratória de união estável envolvendo um suposto óbice jurídico existente antes da data dessa sentença, conforme já expusemos acima.

Registro, averbação e anotação envolvendo união estável

O caput do art. 94-A da LRP prevê o registro lato sensu abrange tanto a declaração da união estável quando a sua extinção. O termo “registro” empregado no referido dispositivo é na sua acepção ampla (lato sensu). Assim, registro lato sensu – que, por vezes, é mencionado também como “inscrição” (ex.: art. 33, parágrafo único, da LRP) – compreende, em regra, três espécies: o registro stricto sensu, a averbação e a anotação. 

O registro diz respeito a atos que constituem uma situação jurídico-registral e possuem natureza principal. Já a averbação ostenta natureza acessória, por destinar-se a alterar um registro anterior. A anotação, por fim, serve para lançar remissões recíprocas em diferentes assentos da mesma pessoa, a fim de permitir a notícia atualizada do estado civil da pessoa em qualquer dos seus assentos de registro civil.  É o que se retira da Lei de Registros Públicos  (arts. 97 ao 108; e art. 246 por analogia) e do Código Civil  (arts. 9º e 10).

Do ponto de vista da técnica registral, a declaração da união estável deverá ser objeto de ato de registro stricto sensu, porque cria uma situação jurídico-registral, ou seja, cria um assento de registro civil, qual seja o assento de união estável. 

A extinção da união estável, por sua vez, deverá ser objeto de averbação no assento de união estável, pois destina-se a alterar o registro anterior. 

A Lei do SERP foi atécnica em termos de redação legislativa, pois convinha que esse detalhamento tivesse sido deixado claro tanto no art. 94-A da LRP quanto em outros dispositivos correlatos – como no art. 100 da LRP e nos arts. 9º e 10 do CC -, o que acabou não ocorrendo.

Além disso, apesar do silêncio do legislador, é forçoso concluir que o registro da declaração de união estável ou a averbação de sua extinção sejam anotados nos assentos anteriores de cada um dos companheiros, como no assento de nascimento. 

Igualmente, fatos jurídicos-registrais posteriores – como eventual registro de óbito de qualquer dos companheiros -,  devem ser anotados no assento de união estável. Cabe ao registrador promover as comunicações devidas para tanto. 

O fundamento é a aplicação analógica dos arts. 106 e 107 da LRP, que tratam desse dever de anotação e de comunicação para o assento de casamento e que, por conta da semelhança, devem ser estendidos para o assento de união estável. A Lei do SERP padeceu de atecnia em termos de redação legislativa por não ter sido expresso nesse ponto.

Título inscritível

O caput do art. 94-A da LRP indica os títulos inscritíveis no RCPN envolvendo a união estável. Para o registro da declaração da união estável ou para averbação de sua extinção, admitem-se um título judicial e dois títulos extrajudiciais.

O título judicial é uma sentença declaratória. Essa sentença declarará a existência ou a extinção – dissolução – da união estável. Enfatize-se que a sentença tem natureza declaratória, pois a constituição e a desconstituição da união estável dão-se automaticamente com a presença ou o desaparecimento dos tão mencionados requisitos fáticos do art. 1.723 do CC.

Os títulos extrajudiciais podem ser uma escritura pública declaratória ou um termo declaratório. Esses títulos declararão a existência ou a extinção da união estável. Nesse ponto, consideramos atécnica o termo “distrato” utilizado pelo caput do art. 94-A do CC para se referir à extinção da união estável por consenso dos companheiros[5]. Isso, porque não se trata propriamente de um “distrato”, assim entendido o negócio jurídico bilateral por meio do qual as partes, por comum acordo, extinguem um contrato (art. 472 do CC). Cuida-se, na verdade, de um mero ato declaratório de ambos os companheiros declarando que os requisitos fáticos do art. 1.723 do CC desapareceram, o que acarretou automaticamente a extinção da união estável. 

A escritura pública declaratória de reconhecimento da união estável ou de sua dissolução é lavrada por qualquer tabelião de notas, de livre escolha dos companheiros (art. 8º da Lei n.  8.935/1994).[6]

O termo declaratório de união estável é a coleta, por escrito, pelo oficial de RCPN, da declaração de ambos os companheiros acerca da existência ou da extinção da união estável. 

Como se vê, os companheiros possuem a faculdade de lavrar uma escritura pública perante o Tabelião de Notas ou de comparecer diretamente ao RCPN para que o registrador colha, por escrito, a declaração de existência ou de extinção da união estável. 

É intuitivo concluir que as partes haverão de preferir declarar sua vontade diretamente perante o oficial de RCPN, que lavrará o pertinente termo declaratório. Além de menos burocrática, essa via tende a ser menos onerosa. Em princípio, esse ato não geraria o pagamento de emolumentos adicionais àqueles que são cobrados pelo registro da união estável, salvo previsão diversa na pertinente lei de emolumentos.

Isso, porém, não significa que a escritura pública declaratória tenda ao desuso. A expertise técnica do Tabelião de Notas em auxiliar as partes e a eventual preferência dos companheiros na portabilidade de uma escritura parecem-nos elementos indicativos de que muitos casais ainda haverão de lançar mão dos serviços do notário.

Conteúdo e dispensa de advogado nos títulos extrajudiciais

Os títulos extrajudiciais (escritura pública declaratória ou termo declaratório)  relativos à existência ou à extinção da união estável não dependem da assistência de advogado. Inexiste exigência legal a esse respeito.

No caso de título declaratório da existência da união estável, o seu conteúdo abrangerá, no mínimo, as informações essenciais à lavratura do registro. Este, por sua vez, obrigatoriamente deverá conter dados indispensáveis para a identificação: a) da data do registro (art. 94-A, inc. I, da LRP); b) dos envolvidos (art. 94-A, incs. II a IV, da LRP); c) da origem do título (art. 94-A, incs. V e VI, da LRP); d) do regime de bens (art. 94-A, inc. VII, da LRP); e e) do novo nome dos companheiros, se for o caso (art. 94-A, inc. VIII, da LRP).

No caso de título declaratório da extinção da união estável, entendemos que bastará haver a declaração dos companheiros, acompanhada das informações necessárias à identificação deles, com a qualificação dos declarantes.

Parece-nos ser conveniente que o título mencione expressamente os dados do assento da união estável. A falta dessa menção, porém, não impedirá a averbação desse título nesse assento, pois inexiste exigência legal dessa informação. 

Igualmente, não há obrigatoriedade de o título declaratório de extinção da união estável ter tratado de questões jurídicas conexas, como partilha de bens, alimentos, guarda de filhos, entre outrras consequências da dissolução. Além de algumas dessas questões poderem exigir decisão judicial – como a guarda de filhos menores -, inexiste dever legal de todas essas questões serem resolvidas no mesmo ato.

Títulos estrangeiros de união estável, problemas de adaptação de direito estrangeiro e casos de atos consulares

Como último tema deste texto, o registro lato sensu do título judicial ou extrajudicial de declaração da existência ou de extinção da união estável pode ser feito mesmo se tiverem sido lavrados no exterior, desde que qualquer dos companheiros seja brasileiro (art. 94-A, § 2º, da LRP). É o caso, por exemplo, de uma escritura pública lavrada perante um notário norte-americano nos EUA envolvendo, ao menos, um brasileiro como companheiro. Nesse caso, essa escritura pública estrangeira poderá ser levada a registro diretamente no Livro “E” do 1º Ofício de RCPN do domicílio atual de qualquer dos companheiros no Brasil ou do último domicílio que qualquer deles teve no Brasil.

Bastará que o título se submeta às seguintes formalidades (arts. 94-A, § 3º, LRP): a) a tradução juramentada; e b) a sua legalização ou, se se tratar de país signatário da Convenção da Apostila, o seu apostilamento.  Ademais, especificamente para o efeito de registro da união estável, a tradução desse título estrangeiro não precisará ser registrada no RTD, ao contrário do que sucede com os documentos estrangeiros em geral que serão utilizados para produzir efeitos no Brasil (art. 148, da LRP)[7].. O § 3º do art. 94-A da LRP é norma especial, a afastar a regra geral do art. 148 da LRP.

Alertamos que o registrador precisará estar atento para a natureza jurídica da “união estável” reconhecida no título estrangeiro. Se o título estrangeiro se referir à união estável disciplinada pela legislação brasileira, não haverá obstáculos. Todavia, se se referir à “união estável” da legislação estrangeira, o registrador deverá enfrentar um problema típico de Direito Internacional Privado e conhecido como adaptação lato sensu de direitos estrangeiros. Caberá ao registrador averiguar se a “união estável” da legislação estrangeira pode ou não ser equiparada à união estável da lei brasileira. 

Caso a resposta seja negativa, o registrador deve qualificar negativamente o título estrangeiro, ou seja, terá que negar o registro da “união estável estrangeira”. 

Por exemplo, a “união de fato” da legislação portuguesa pouca semelhança tem com a união estável brasileira. Em termos sucessórios, por exemplo, a união de fato portuguesa não confere quase nenhum direito ao convivente supérstite. Em um caso como esse de dessemelhança dos institutos, entendemos pela inviabilidade da adaptação lato sensu do direito estrangeiro e, por consequência, entendemos inviável o registro da união estável.

Para aprofundamentos acerca da adaptação de direitos estrangeiros – a qual pode ser feita pelos notários e registradores sem necessidade de decisão judicial, conforme defendido por um dos coautores[8] –, reportamo-nos à tese de doutorado de autoria do primeiro coautor deste texto e que contou com a presença do segundo coautor na banca examinadora: O princípio da harmonização internacional dos direitos reais: fundamento, adaptação de direitos reais estrangeiros, lex rei sitae, numerus clausus e outros desdobramentos.[9]

Por fim, não se pode confundir a hipótese exposta com a de títulos extrajudiciais lavrados em consulado brasileiro. Os consulados oferecem aos brasileiros que estão no exterior serviços notariais e registrais. Nesses casos, o consulado brasileiro atuará como um “verdadeiro” RCPN ou um Tabelionato de Notas perante o brasileiro que está no exterior. Terá, portanto, se isso for pedido pelo brasileiro, de lavrar escritura pública declaratória de união estável ou colher o termo declaratório de união estável. Terá de registrar a existência ou averbar a extinção da união estável.

Nesse ponto, pecou o legislador em não ter sido explícito sobre essa hipótese. Diante dessa omissão, entendemos que devem ser aplicadas, por analogia, mutatis mutandi,as regras previstas para casamento consular de brasileiro, o que atrairá a incidência do art. 32 da LRP, além de outras normas conexas.[10]

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LEIA TAMBÉM


NOTAS

 CC/2002. “Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1 A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente. § 2 As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável”.

CC/2002. “Art. 1.521. Não podem casar: I – os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II – os afins em linha reta; III – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV – os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V – o adotado com o filho do adotante; VI – as pessoas casadas; VII – o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte”.

 CC/2002. “Art. 1.523. Não devem casar: I – o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; II – a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; III – o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; IV – o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas. Parágrafo único. É permitido aos nubentes solicitar ao juiz que não lhes sejam aplicadas as causas suspensivas previstas nos incisos I, III e IV deste artigo, provando-se a inexistência de prejuízo, respectivamente, para o herdeiro, para o ex-cônjuge e para a pessoa tutelada ou curatelada; no caso do inciso II, a nubente deverá provar nascimento de filho, ou inexistência de gravidez, na fluência do prazo”.

 CC/2002. “Art. 1.520.  Não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste Código”. (Redação dada pela Lei nº 13.811, de 2019).

 Lei n. 6.015/1973. “Art. 94-A. Os registros das sentenças declaratórias de reconhecimento e dissolução, bem como dos termos declaratórios formalizados perante o oficial de registro civil e das escrituras públicas declaratórias e dos distratos que envolvam união estável, serão feitos no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que os companheiros têm ou tiveram sua última residência, e dele deverão constar”:   

 Lei n. 8.935/1994. “Art. 8º É livre a escolha do tabelião de notas, qualquer que seja o domicílio das partes ou o lugar de situação dos bens objeto do ato ou negócio”.

 Lei n. 6.015/1973. “Art. 148. Os títulos, documentos e papéis escritos em língua estrangeira, uma vez adotados os caracteres comuns, poderão ser registrados no original, para o efeito da sua conservação ou perpetuidade. Para produzirem efeitos legais no País e para valerem contra terceiros, deverão, entretanto, ser vertidos em vernáculo e registrada a tradução, o que, também, se observará em relação às procurações lavradas em língua estrangeira.                 

Parágrafo único. Para o registro resumido, os títulos, documentos ou papéis em língua estrangeira, deverão ser sempre traduzidos”.

 Veja este excerto da tese de doutorado de um dos coautores (OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de Oliveira. O princípio da harmonização internacional dos direitos reais: fundamento, adaptação de direitos reais estrangeiros, lex rei sitae, numerus clausus e outros desdobramentos. Tese de doutorado apresentado perante a Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: https://independent.academia.edu/CarlosOliveira32/Papers. Ano: 2022, p. 266): “Quem fara? a adaptac?a?o do direito real estrangeiro? Sera? o decisor nos termos da legislac?a?o local. No Brasil, por exemplo, pode ser um nota?rio (ao lavrar uma escritura pu?blica de inventa?rio e partilha), um registrador de imo?veis (ao qualificar um ti?tulo) ou um juiz (ao ser chamado a julgar uma causa).  Entendemos que na?o ha? necessidade de pre?vio pronunciamento judicial no Brasil por falta de exige?ncia legal: na?o ha? reserva de jurisdic?a?o para “traduzir” direitos reais estrangeiros. No ma?ximo, quando se tratar de adaptac?a?o stricto sensu, caso inexista consenso entre todos os interessados, pode-se exigir manifestac?a?o judicial. Isso, porque cabe ao Judicia?rio resolver liti?gios e porque a adaptac?a?o stricto sensu tende a alterar o conteu?do das regras internacionais envolvidas para eliminar contradic?o?es lo?gicas”.

 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de Oliveira. O princípio da harmonização internacional dos direitos reais: fundamento, adaptação de direitos reais estrangeiros, lex rei sitae, numerus clausus e outros desdobramentos. Tese de doutorado apresentado perante a Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: https://independent.academia.edu/CarlosOliveira32/Papers. Ano: 2022.

10  Lei n. 6.015/1973. “Art. 32. Os assentos de nascimento, óbito e de casamento de brasileiros em país estrangeiro serão considerados autênticos, nos termos da lei do lugar em que forem feitos, legalizadas as certidões pelos cônsules ou quando por estes tomados, nos termos do regulamento consular. § 1º Os assentos de que trata este artigo serão, porém, transladados nos cartórios de 1º Ofício do domicílio do registrado ou no 1º Ofício do Distrito Federal, em falta de domicílio conhecido, quando tiverem de produzir efeito no País, ou, antes, por meio de segunda via que os cônsules serão obrigados a remeter por intermédio do Ministério das Relações Exteriores. § 2° O filho de brasileiro ou brasileira, nascido no estrangeiro, e cujos pais não estejam ali a serviço do Brasil, desde que registrado em consulado brasileiro ou não registrado, venha a residir no território nacional antes de atingir a maioridade, poderá requerer, no juízo de seu domicílio, se registre, no livro ‘E’ do 1º Ofício do Registro Civil, o termo de nascimento. § 3º Do termo e das respectivas certidões do nascimento registrado na forma do parágrafo antecedente constará que só valerão como prova de nacionalidade brasileira, até quatro (4) anos depois de atingida a maioridade. § 4º Dentro do prazo de quatro anos, depois de atingida a maioridade pelo interessado referido no § 2º deverá ele manifestar a sua opção pela nacionalidade brasileira perante o juízo federal. Deferido o pedido, proceder-se-á ao registro no livro ‘E’ do Cartório do 1º Ofício do domicílio do optante. § 5º Não se verificando a hipótese prevista no parágrafo anterior, o oficial cancelará, de ofício, o registro provisório efetuado na forma do § 2º”.

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